Prédica: 1 Timóteo 1.12-17
Leituras: Êxodo 32.7-14 e Lucas 15.1-10
Autor: Marcos Bechert
Data Litúrgica: 17º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 04/10/1992
Proclamar Libertação – Volume: XVII
1. Contexto
A carta primeira a Timóteo faz parte das assim chamadas cartas pastorais, que têm este título por causa de suas características. É que eles — os escritos — contêm instruções e exortações para o desempenho do cargo pastoral da direção da Igreja e sobre a delimitação entre doutrina verdadeira e falsa, prescrições essas que demandam validade geral. (Lohse.)
O autor destas cartas provavelmente não é Paulo, pois dados, linguagem e até elementos teológicos apresentam aspectos diferentes dos escritos de Paulo, sendo que elas devem ser posteriores ao apóstolo. No entanto, o autor se faz passar por Paulo, l Timóteo traz recomendações sobre a ordem das igrejas e polêmicas contra hereges (combate à doutrina falsa). Após a saudação (1.1-12), o primeiro trecho fala da defesa contra os hereges — onde está incluída a perícope ora em estudo — seguindo-se questões relativas à ordem na comunidade (caps. 2 e 3).
2. Texto
Esta perícope é o relato vocacional das cartas pastorais. Ela está delimitada claramente e aponta para o centro desta carta: 1.3-20, onde o autor pede a Timóteo para que admoeste a comunidade quanto ao ensino da vã doutrina.
V. 12: Ao autor (Paulo?) foi confiada a pregação do evangelho da glória do Deus bendito (v. 11). Ele então agradece a Jesus Cristo que o julgou fiel e fê-lo seu servidor.
Vv. 13-14: Nestes dois versículos é colocado o contraste entre a vida de Paulo antes e depois da conversão. Questiona-se se os termos blasfemo, perseguidor e insolente servem para a sua biografia. Paulo se reconhece, em todo o caso, como perseguidor dos cristãos. O que importa aqui é o contraste (contradição) na vida do apóstolo. Paulo foi alcançado pela graça de Deus. Esta palavra de esperança vale para muito além da própria experiência de Paulo: a graça de Deus vale para todos os pecadores.
O perseguidor da comunidade encontrou misericórdia, pois ele agia por ignorância, na incredulidade. Este termo, que no NT é usado quando se refere aos gentios, expressa a possibilidade de misericórdia. Todavia também inclui o elemento da culpa, para o qual aponta a incredulidade e, no v. 15, os pecadores dos quais eu sou o primeiro. O caráter da graça da conversão de Paulo, e com isto a transformação de sua incredulidade, são acentuados no v. 14: a graça superabundou para com o perseguidor das comunidades. Ainda visualizamos aqui que com a dádiva da graça, o apóstolo é contemplado com a f é e o amor — que caracterizam agora um posicionamento diante de Deus e do semelhante.
Vv. 15s.: Aqui a perícope alcança o seu centro concreto e teológico, e isto exatamente no dito cristológico: Cristo Jesus veio ao mundo para salvar os pecadores… Este dito é introduzido por uma fórmula que encontramos em outros contextos nas cartas pastorais (3.1; 4.9; 2 Tm 2.11; Tt 3.8): Fiel é a palavra e digna de toda aceitação. Esta fórmula é usada para chamar a atenção para a citação que provavelmente já é conhecida pelos leitores.
A confissão de que o apóstolo é o primeiro dos pecadores deve remontar ao próprio Paulo. Sendo ele o primeiro, foi assim também a ele que Cristo por primeiro manifestou a graça e o redimiu, como o típico representante da misericórdia que o pecador pode experimentar. O envio de Jesus Cristo ao mundo — na sua tarefa de salvar os pecadores e levá-los à fé — foi experimentado pelo apóstolo. Aqui reside o fundamento da real esperança para todas as pessoas: que Deus não desiste de ninguém. Este é o evangelho, esta é a boa-nova confiável do apóstolo. Vale a pena preservá-la, em contraposição especialmente ao ensino do cada um para si e Deus para todos, que aprendemos no mundo moderno.
V. 17: A perícope iniciou com um agradecimento a Jesus, que transformou o perseguidor em apóstolo (v. 12), e encerra com uma doxologia festiva, provavelmente de origem litúrgica. Ela ressalta que Deus é o rei supremo que governa todas as eras desde a criação do mundo até o fim dos tempos. Os termos incorruptível ou a sua variante da Vulgata imortal são de origem grega, enquanto que invisível e único são de tradição judaica. O amém tem seu lugar original na sinagoga, sendo pronunciado em assentimento às doxologias ou bênçãos do sumo sacerdote.
3. Meditando
Cristo Jesus veio ao mundo para salvar os pecadores — este parece-me ser o centro do nosso texto. Torna-se, então, imediatamente necessário perguntar pela compreensão do pecado. A sociedade burguesa estabelece a categoria do pecado ao nível moral — e assim também muitas comunidades cristãs. A Igreja certamente colaborou para que isso fosse assim. Biblicamente, porém, o pecado tem raízes bem mais profundas, que leva em conta o fato de que o ser humano quer construir sua vida sem a presença de Deus ou mesmo contra ele. Não tendo compromisso com Deus, toda a responsabilidade do ser humano para com a criação e especialmente com a vida é nula. O homem e a mulher vão construir a história e o dito progresso à revelia de Deus, do seu semelhante e da natureza. Naturalmente o campo de ação do pecador com a sua rebeldia diante de Deus é enorme, sendo que as consequências funestas de tais ações são piores ainda, ultrapassando, pois, as questões de ordem moral.
À medida em que vamos adentrando o significado do pecado é que vamos também entendendo a novidade que o texto traz, quando diz que Jesus Cristo veio para salvar os pecadores. De maneira geral, quando ouvimos Paulo, ou mesmo nos círculos luteranos onde se fala muito na justificação pela fé pela graça de Deus, tendemos a esquecer a concreticidade da remissão. Quando eu ouvia sobre o assunto sermões que falavam da grande graça de Deus, isto sempre me parecia mais um jogo de palavras para coisas que aconteceriam na outra vida. Lembro, no entanto, o que significou o encontro dos pecadores com Jesus: significou vida concreta também neste mundo. Lembremos: o perdão dos pecados significou saúde para os doentes (Mc 2.1-12), convivência social e familiar para doentes e desprezados, vida para a mulher adúltera (Jo 8.1-22)…
Chamo a atenção para esta concreticidade, pois só assim consigo entender a radicalidade do perdão. Só assim entendo o poder renovador do qual fala a perícope. Isto não significa nada menos do que a libertação do ser humano.
Neste contexto destaco os agentes e os passivos dentro do texto. A perícope é escrita sob a mão do apóstolo (ou alguém posterior a ele), aparecendo, no entanto, no texto na forma passiva. O autor da ação é Cristo, sendo que o autor é vítima da ação. Resta-lhe agradecer, o que ele faz no início e no final da perícope. Além do agradecimento, é no final do v. 12 que vemos as consequências da transformação que Paulo sofre, e que nós naturalmente visualizamos concretamente na ação do apóstolo: tomando-me para o seu serviço.
O processo de libertação do pecado no encontro com Cristo é um processo passivo: é Cristo quem age, não chegando a ser algo fenomenal, cujo fato possa ser comprovado em si mesmo. O ponto de partida é o grande amor de Deus e a sua misericórdia para com as pessoas. E Deus tem tido muita paciência com elas. A percepção da mudança vai se dar no serviço. Não que isso seja algo exigido ou obrigatório; nada disto, antes pelo contrário, é gratuito, é espontâneo: é motivo de agradecimento o ter sido escolhido para o seu serviço (v. 12).
A carência da graça pode ser comparada a uma criança recém-nascida, dependente de tudo quando nasce: precisa de leite, precisa de cuidados de ordem física, precisa de carinho. Ela naturalmente não sobrevive caso não obtiver esses cuidados. E depois só pode é agradecer pelo cuidado que recebeu, e a sua prática certamente será espontânea a partir daquilo que recebeu.
Assim como a criança não nasce do nada, a ação de Deus também não cai qual relâmpago dos céus. É verdade que a ação de Deus não prescinde de coisa alguma. A caminhada de libertação se dá, contudo, num caminhar. É preciso entender que sou pecador. Quando faço a percepção de que Deus agiu por mim, passo ao processo de libertação, mesmo ainda sem agir sobre ele. Mas já tenho a potencialidade de pensar no novo construir. Ao lado da percepção da fé, percebo a contradição do movimento do processo econômico e político e de toda a construção ideológica contraditória que o momento me deixa enxergar. Percebendo-os, a partir do processo da reflexão, adquiro personalidade, passando a ser alguém face ao outro, e começo a participar efetivamente do processo histórico da salvação.
Qualquer pessoa é uma totalidade e tem uma explicação para tudo. O processo educativo da fé e o testemunho da palavra bíblica é o encontro de duas totalidades. Sendo assim, o testemunho da fé tem que acontecer junto com a prática, porque no encontro com o outro o testemunho tem que ser convincente. Concomitantemente é necessária a participação comunitária, porque é a este nível que o sujeito chamado por Deus pode reconhecer a face concreta do seu irmão, da sua irmã.
É preciso ter consciência de que a fé cristã com seus elementos constitutivos e simbólicos como a Bíblia, os sacramentos, os rituais, cerimoniais, sermões e teólogos tem um projeto de vida com o qual explica a realidade que envolve o crente.
Ao lado da Igreja existem numerosos projetos e explicações, como os dos meios de comunicação social com sua classe média alta carioca, a escola, a justiça, o governo, etc. A nossa realidade é tremendamente conflitiva no trabalho, na produção econômica, na relação com a terra e também na política. As consequências práticas vemos nos assaltos, nos golpes e falcatruas, etc. Como vamos .trabalhar os valores cristãos neste conflito? O Papa João Paulo II lançou a 1° de maio de 1991 uma nova encíclica, a Centésimas Annus, tratando das questões sociais. Vamos de carona?
Saulo, como fariseu, foi um repressor da nova fé cristã que estava se expandindo entre as comunidades e que não se colocava sob o Imperador como o seu deus. Sendo atingido pelo chamado de Deus e a sua misericórdia, tornou-se ele mesmo um sujeito da história da fé cristã. Daí a sua transformação de Saulo em Paulo, de repressor em agente multiplicador do Reino de Deus.
Hoje não temos que encobrir conflito algum. Tampouco nos podemos conformar quando outras instituições o fazem. A fé cristã nos leva a cavocar um pouco mais fundo, procurando pelas raízes das separações e conflitos. Só assim poderão ser superados.
4. Prédica
4.1. Em rápidos traços retomei o texto a partir dos personagens atuantes: Deus, Cristo, Paulo, pecadores.
4.2. Comentei algo sobre o significado da graça de Deus com os pecadores.
4.3. Tentei mostrar que o mundo carece a cada dia mais e mais da graça de Deus. É preciso investir sempre nas pessoas, para contar com elas. Para isto é preciso ir ao encontro delas.
4.4. Contei um exemplo concreto para ilustrar as relações nossas onde uma mãe pôde fazer a experiência da misericórdia. Ela mora na Vila Jockey Club e tem quatro filhos excepcionais. Embora não seja luterana, alguns membros da comunidade do núcleo se incluem entre os que ajudam com doações e visitas, que permitem que os cinco não só tenham as condições físicas de vida, mas que a vida (que é muito maior do que saúde) deles possa ter um gostinho também de felicidade, de solidariedade e de amor.
5. Subsídios litúrgicos
1. Confissão de pecados: Bondoso e querido Deus, estamos reunidos neste culto em teu nome. Confessamos-te que, apesar de renovadas tentativas, nem sempre conseguimos viver apenas de tua graça. Procuramos construir a nossa segurança e o nosso futuro por nossa própria conta e vamos formando uma casca dura tal qual à da tartaruga ao redor de nós mesmos. E aí não sobra espaço para ouvirmos da gratuidade que tu nos ofereces. Por isto chegamos a ti para suplicar que a tua misericórdia nos alcance. Tem piedade de nós, Senhor.
2. Oração de coleta: Senhor, as motivações que nos trouxeram aqui são diversas. Reunimo-nos sob um mesmo teto e somos-te gratos por esta comunhão de irmãos e irmãs. Pedimos-te que transformes a casca dura que nos envolve em ouvidos, que estejam abertos para a tua palavra. Venha a nós o teu Espírito Santo, e fala-nos. Teus servos escutam. Amém.
3. Oração de intercessão: Eu fiz xerox das três orações abaixo e distribuí as cópias entre pessoas da comunidade. Nos núcleos, onde a participação espontânea é mais viável, delxei também um espaço aberto para a oração livre. Ao final de cada oração a comunidade intercedeu em conjunto: Senhor, ouve a nossa oração.
a) Senhor, ao final deste culto queremos lembrar-nos daqueles carentes que necessitam experimentar a bondade e a misericórdia para sobrevivência e motivação de suas vidas. Pedimos a tua intervenção e a tua presença, fazendo de nós os próximos daquelas pessoas. Suplicamos-te:
C.: Senhor, ouve a nossa oração.
b) Senhor, sabemos que muitos querem construir a sua vida em cima dos ensinamentos do nosso mundo que calcula tudo em méritos. Ouvimos hoje do testemunho de Paulo de que tu vens às pessoas sem perguntar por este mérito, mas gratuitamente. Envia-nos, Senhor, ao mundo como agentes desta graça. Suplicamos-te:
C.: Senhor, ouve a nossa oração.
c) Lembramo-nos daqueles que te ouviram e estão lutando para melhorar as condições de vida do povo desta pátria. Dá a eles resistência, que pedimos também para os doentes, enlutados e abandonados. Suplicamos-te:
C.: Senhor, ouve a nossa oração.
6. Bibliografia
GRIJP, K. v. d. In: Proclamar Libertação. Vol. 3, pp. 74-78.
LOHSE, E. Introdução ao Novo Testamento. Ed. Sinodal, São Leopoldo.
MOSER, M. l Tim l,.12-17. In: Neuer Calwer Predigthilfen. Ano 2, pp. 64-70, Calver Verlag, Stuttgart.