Prédica: 1 Timóteo 6.6-16
Leituras: Amós 6.1-7 e Lucas 16.19-31
Autor: Martin Norberto Dreher
Data Litúrgica: 19º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 18/10/1992
Proclamar Libertação – Volume: XVII
1. Da delimitação de perícopes
Muitas vezes tenho a impressão de que diversas perícopes foram delimitadas por pessoa que, sentada em um cavalo, tinha uma Bíblia em uma mão e o lápis na outra. Cada vez que o cavalo pisava em um buraco, o lápis descia sobre o texto bíblico, e estava delimitada nova perícope. Pode ser lenda, mas na presente delimitação, certamente é realidade. A arbitrariedade mais flagrante deixou o lápis cair sobre a primeira epístola a Timóteo e adequou parte do capítulo 6 aos textos de Amos 6.1-7 e Lucas 16.19-31. Casualmente nos três capítulos aparece o número 6, o que dá a interessante constelação do 666, sobre a qual, em caso de necessidade, também se poderia pregar. Os ecuménicos que juntaram os três textos tiveram uma intenção: arrumar uma coleção, baseada na qual se pudesse deitar o pau no rico e na riqueza. Mas … às vezes, a coisa é um pouquinho diferente e não dá para ajeitar o texto bíblico tão bem!
O texto da Primeira Epístola a Timóteo segue um esquema muito simples e muito fácil de ser considerado em aulas de conhecimentos bíblicos: depois de breve saudação inicial, seguem-se três blocos de advertência frente a mestres de falsas doutrinas e três blocos de admoestação a Timóteo por causa dos mestres de falsas doutrinas.
A perícope que nos foi sugerida para pregação no 19° Domingo após Pentecostes faz parte do terceiro bloco de advertências e admoestação. No capítulo 6, temos, em 3-10, advertência frente a mestres de falsas doutrinas e, em 11-19, admoestações a Timóteo por causa dos mestres de falsas doutrinas. Pode-se considerar 17-19 uma admoestação isolada, o que realmente é. Por isso, seria de bom alvitre ficarmos com a intenção mais original do autor das palavras e delimitar nosso texto com 6.3-16. Isso naturalmente altera a ideologia da composição das três perícopes para o presente domingo. Nossa perícope fala menos dos membros da comunidade e mais de seus pastores.
2. O texto (6.3-16)
Pela terceira vez, a epístola volta a discutir com mestres de falsas doutrinas (cf. 1.3-11; 4.1-11). Os falsos mestres são agora pessoas que abandonaram as palavras de Jesus, as únicas que nos podem manter sãos, e se afastaram da doutrina da Igreja (o ensino segundo a piedade). São falsos mestres, porque são pessoas convencidas de si mesmas (Almeida: enfatuado). Nada têm de inspiração especial, como gostariam de poder afirmar. Seu convencimento se expressa numa tendência doentia a promoverem especulações e debates que destroem a comunhão. Dessa tendência brotam uma série de problemas: há inveja; discórdia; há difamação, quando a razão não tem mais argumentos; há suspeição em relação aos motivos do adversário; provoca constantes brigas. Isso não se deve considerar motivo para espanto, pois o convencimento inibe a razão e afasta-nos, necessariamente, da terna verdade de Deus, semelhantemente ao que consta em Rm 1.22: Inculcando-se por sábios, tornaram-se loucos. Em tais situações, pessoas como essas podem fazer da religião um negócio: (…) supondo que a piedade é fonte de lucro (l Tm 6.5). O texto sublinha esse pecado dos falsos mestres com toda a clareza possível.
Aparentemente, esses falsos mestres cobravam um bom dinheiro pelo anúncio que estavam fazendo e exploravam seus adeptos. O pior desse pecado deve ser expresso com as palavras: com sua ação colocam Deus a serviço do pecado. Deus não é mais verdade, mas mentira!
O v. 6 aproveita-se desse desvirtuamento da fé, transformada em fonte de lucro, para afirmar que a fé traz lucro. Mas que lucro? A fé torna a pessoa rica não só em termos de bens eternos, mas também em termos terrenos, pois sua vida se encontra sob a mão protetora de Deus. Essa riqueza, no entanto, só se tem quando liberta da ganância por dinheiro, quando há contentamento com aquilo que Deus concede. A palavra traduzida por Almeida com contentamento, no original grego é autarquia, um conceito que não tem raízes cristãs, mas estóicas. Aqui está entrando na fé cristã uma forma de pensamento filosófico estranha ao judaísmo e aos primórdios do cristianismo. O estoicismo advoga a harmonia da razão universal. Esta harmonia só pode ser alcançada quando não murmuramos, quando não nos rebelamos ante as dores, quando aguentamos tudo em silêncio. Nesse pensamento não cabe a imagem de Jó que murmura e discute com Deus, nem cabe a imagem de Jesus que luta com o Pai no Jardim das Oliveiras, na noite de Quinta-Feira Santa. O estoicismo pagão foi fonte e origem de uma fé cristã resignada. Essa leitura estóica, que encontramos aqui em l Timóteo, mostra que a fé cristã começa a se reler com base nos conceitos filosóficos de seu ambiente. Exemplo disso é a formulação dos vv. 7 e 8 onde temos uma leitura estóica de passagens bíblicas como Jó 1.21, Lc 12.20. A pregação estóica sempre acentuou: tendo sustento e com que nos vestir, estejamos contentes. Tais pensamentos podem fazer parte da interpretação cristã, mas já apontam para um perigo: pode-se fazer toda uma leitura resignada do evangelho de Jesus Cristo. Exemplo disso é a leitura estóica que se faz da prece do Pai-Nosso: Seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu. Tomada independentemente, a prece pode ser entendida no contexto da resignação estóica: já que não dá de outro jeito, que se faça a tua vontade! A prece, porém, é recitada logo depois da prece que diz: Venha o teu Reino! O Reino é a vontade de Deus. Tal vontade deve impedir resignação.
O v. 9, porém, não nos permite tomar as afirmações dos w. 7 e 8 isoladamente e corrige a própria influência estóica que sofre o autor da epístola. A epístola estóica está sendo usada, aqui, como argumento contra a ganância pelo dinheiro, raiz da heresia que está sendo combatida. O autor da epístola vai um passo adiante e mostra que aquilo que é raiz da heresia para os falsos mestres também é raiz de toda a maldade de que é capaz o ser humano, também o cristão, sendo-lhe causa de ruína e perdição. Quando a ganância pela riqueza se apossa do ser humano, este se vale de todos os meios para fazer dinheiro. Por isso, o v. 10 vai se valer de um dito popular da época, quando diz: O amor do dinheiro é raiz de todos os males. Não está dizendo que não existam ainda outras causas do pecado, mas a ganância do dinheiro torna o ser humano insensível e capaz de tudo. Essa pode ser a experiência da comunidade: inclusive pregadores tiveram sua fé esfriada pela ganância do dinheiro, caindo na heresia. Ganância pelo dinheiro é incompatível com a piedade evangélica. O dinheiro não dá a felicidade prometida, mas tormento com muitas dores.
Os vv. 11-16 trazem uma admoestação a Timóteo, acompanhada de uma doxologia. Timóteo é chamado de homem de Deus. Ë pessoa a serviço de Deus e seu instrumento a exemplo dos homens de Deus do Antigo Testamento (2 Rs 12.22). Como homem de Deus deve fugir da ganância pelo dinheiro, assim como foge a todo grande perigo. Ele tem um objetivo maior. Deve correr, como o ginasta grego, em busca da justiça em relação aos seres humanos, da piedade, isto é, da fé que vem de Deus. Ele deve correr em busca de três principais virtudes cristãs: fé, amor e paciência (cf. Tt 2.2), acrescida da mansidão. O que é essa mansidão? É a capacidade de suportar com um amor incansável e capaz de perdoar os erros e os pecados dos irmãos. O troféu (v. 12) para essa luta fortalecida pela fé é a vida eterna. Esse troféu não é algo inalcançável, pois a vocação, dada por Deus a Timóteo, é a garantia. Quando de seu batismo, Timóteo confessou-se publicamente a essa vocação divina (o v. 12 não está falando de ordenação). Estaria o v. 13 trazendo parte da confissão batismal feita por Timóteo? Essa confissão batismal fala de Deus que dá a vida a todas as coisas. (Aqui a tradução de Almeida deve ser corrigida; seu verbo preservar não reproduz a intenção da criação de vida, contida no original grego.) Deus é visto como o criador e como o redentor. O Deus que dá a vida não é apenas o criador, é sempre também o redentor. Diante deste Deus e diante do Cristo crucificado, Timóteo fez sua confissão. O v. 14 lembra-o e admoesta-o para que comprove esta sua confissão e cumpra o mandamento de Deus (não mandato como traduz Almeida, dando uma concepção ministerial ao texto) em uma vivência imaculada e irrepreensível até a manifestação de Jesus Cristo.
Os vv. 15 e 16 mostram-nos para onde toda a reflexão teológica deve levar: para a adoração de Deus. Depois de tê-lo advertido frente a heresia, depois de instruir a Timóteo e, através dele, sua comunidade, chega a adoração, alvo de todo nosso meditar e pensar Deus. Olhando e esperando a consumação, reverencia e adora a Deus, valendo-se da terminologia da sinagoga helenista. Rejeita a divinização da humanidade, contida na adoração do imperador romano, louvando a Deus como Rei dos reis e Senhor dos senhores. Rejeita a auto-salvação do gnosticismo, ao declarar a inacessibilidade da glória de Deus ao esforço humano. Deus só se torna acessível àqueles a quem quer se revelar, aos que deu coração puro (Mt 5.8). A esse Deus que se doa, o apóstolo adora, convidando à adoração.
Nos vv. 17-19 temos ainda uma orientação sobre como Timóteo deve orientar ricos no uso correio de sua propriedade.
3. Para meditação e pregação
Creio que deve ter ficado claro ao longo da análise do texto que a junção proposta para o presente domingo nos três textos não é a mais feliz. Nosso texto está falando da tentação herética que existe para o pregador do evangelho, que transforma seu ministério em fonte de dinheiro. Diz, depois, que fonte de lucro é a fé que busca amor, paciência e mansidão. Tal fé é dádiva de Deus. Esse Deus é quem nos dá vida, que nenhuma riqueza consegue dar. Esse Deus deve ser o objeto de nossa adoração.
O pregador faria bem se nesse domingo tomasse a liberdade de refletir sobre seu ministério e sua vocação diante da comunidade e com ela. Deveria falar abertamente da tentação herética que significa também para ele a riqueza. Seria muito barato apontar apenas para o bispo Edir Macedo, da Igreja Universal do Reino de Deus! Examinando-se publicamente (cuidado para não apresentar justificativas banais!), deveria perguntar-se com a comunidade qual o objetivo, qual o alvo de seu ministério, e verificar como o dinheiro tem buscado afastá-lo desse alvo. Mais importante, porém, seria apontar para o alvo da fé e, diante deste alvo maior, convidar a comunidade para a adoração do Deus que se revelou em Jesus Cristo.
Esta pregação não vai ser fácil, mas pode tornar o pregador transparente diante de sua comunidade. Pode auxiliar a comunidade a verificar em seu pregador como se pode confessar culpa diante de Deus. Pode auxiliar a comunidade a confessar a própria culpa. Pregador e comunidade poderão aprender a respeito da necessidade que têm de viverem da graça de Deus. Poderão em conjunto chegar, novamente, ao louvor de Deus. Esta caminhada poderá acontecer na forma da homilia, correndo ao longo do texto.
4. Subsídios litúrgicos
1. Confissão de pecados: Senhor, temos dificuldades em sermos fiéis a ti. Sempre seguimos a outros deuses. Eles nos escravizam, tiram-nos a liberdade e levam-nos a escravizar o nosso próximo. Tem misericórdia de nós, Senhor, volta-te novamente para nós e permite que possamos ser novas criaturas, para que tenhamos vida a partir de ti.
2. Coleta: Senhor, todo-poderoso e eterno Deus, nós te pedimos: dá-nos uma fé que vence o mundo e que deposite a sua confiança completamente em ti. Permite-nos reconhecer a Jesus Cristo como o verdadeiro redentor. Ouve-nos por Jesus Cristo, que contigo e com o Espírito Santo constrói teu Reino neste mundo. Todo-poderoso Deus, tu és o princípio e o fim do tempo, de eternidade a eternidade. Amém.
3. Oração final: Aqui, liturgo e comunidade deverão ser convidados a formular, a partir do que tiverem ouvido da palavra de Deus para este domingo.
5. Bibliografia
JEREMIAS, J. Die Briefe an Thimotheus und Titus. In: Das Neue Tèstament Deutsch. Vol. 4, Göttingen, 1968.
SCHLATTER, A. Erlãuterungen zum Neuen Testament. Tomo 2. Die Briefe dês Pau-lus. Stuttgart, Calwer, 1909.