Prédica: João 8.31-36
Leituras: Isaías 62.6-7 e Romanos 8.19-28
Autor: Valdim Utech
Data Litúrgica: Dia da Reforma
Data da Pregação: 31/10/1992
Proclamar Libertação – Volume: XVII
1. Observações exegéticas
1.1. Contexto
A nossa perícope pertence ao contexto da Festa das Tendas (Jo 7.1-10.21). A Festa das Tendas era também conhecida como Festa da Colheita (Êx 23.16), quando os judeus lembravam-se das cabanas em que viveram, como símbolo de provisoriedade, quando saíram do Egito (Lv 23.42s). No capítulo 7 de João, Jesus discute com a multidão. Já a partir do capítulo 8, os fariseus tomam a palavra. Os fariseus, dentre os judeus, são um grupo que procura abreviar o fim, cumprindo rigorosamente a lei de Moisés. Jesus os ofende, dizendo que eles devem crer na sua pessoa (Jo 7.37; 8.24). Ora, anteriormente Jesus já havia dado a tónica da controvérsia: Moisés não vos deu a lei? No entanto, nenhum de vós pratica a lei (Jo 7.19). Para ouvidos puristas, estas palavras atingem o cerne de suas crenças.
Aqueles que procuravam viver a lei ao pé da letra não podiam ouvir estas palavras sem sentir uma revolta imediata: Como é que este carpinteiro tem a petulância de dizer que não cumprimos a lei?
Está colocada a polêmica. No meio das discussões, alguns chegam a crer nele (7.31,41; 8.30). Jesus, agora, dirige-se a estes últimos, em especial, e os exorta a guardar sua palavra. Ele questiona até o fundo a decisão dos judeus que nele creram. Para eles, era possível conciliar a Tora com a mensagem de Jesus. Para este, no entanto, não há condições de conciliação. É o rompimento total entre o velho e o novo. Não há solução intermediária.
Para Jesus, não é uma questão de simpatia. Não é possível crer nele como se crê em alguém que simplesmente nos traz uma mensagem diferente da que estamos acostumados a ouvir. A mensagem de Jesus não é modismo passageiro. Jesus é a mensagem. Por isso, crer nele e continuar com a fé antiga não é possível. Ou é tudo novo, ou então nada mudou…
1.2. Texto
31 — Aquele que permanece na palavra, é verdadeiro discípulo, e
32 — conhece a verdade libertadora.
33 — Os judeus são descendência de Abraão — nunca foram escravos.
34 — O que comete pecado é seu escravo.
35 — Escravo não permanece na casa, mas o filho sim.
36 — Filho liberta de forma definitiva.
O texto forma uma unidade progressiva que aponta para os vv. 37ss., que não necessitam ser abordados pelo pregador ou pregadora.
V. 31 — Jesus radicaliza: Só pode ser meu discípulo aquele que crê na minha palavra. Nisto Jesus é diferente dos demais mestres, pois ele ensina com autoridade (Mt 7.28s.). Para ser discípulo de Jesus é necessário muito mais do que uma admiração superficial. É preciso permanecer na sua palavra, abandonando toda outra crença. Seguir a Jesus é uma opção de vida que só pode ser tomada por aquele que está disposto a abandonar seu velho estilo de vida. O paralelismo entre meinete e alethos indica que só é verdadelro discípulo aquele que crê firmemente nas palavras de Jesus. O discípulo de Jesus não pode ser volátil, seguindo-o como a uma filosofia de vida, sem um comprometimento maior. O discípulo deve permanecer com Jesus, pois não há outro. Jesus tem a palavra da vida eterna (Jo 6.68). Esta é a confissão do verdadeiro discípulo.
V. 32 — Do que a verdade liberta?
a. Certamente, do formalismo da lei.
b. Da inutilidade de viver a vida de forma casuística.
c. Da falsa compreensão da lei.
A verdade de Deus, que é o Cristo, liberta de toda obrigação de viver a vida de uma forma falsa. Deus não quer que suas filhas e filhos fiquem prisioneiros da lei, pois a lei sem amor de nada aproveita (Gl 5.14s.). A vida deve ser vivida em serviço para o outro. O amor é o cumprimento da lei. Quem ama já não se preocupa, pois a lei ficou para trás, já está cumprida (Rm 13.10). Portanto, quem ama compreende que a lei foi necessária durante um certo tempo para anunciar aos seres humanos os seus pecados (Gl 1.9), não conseguindo, porém, melhorar a humanidade (Hb 7.18s.). O discípulo verdadeiro não se confunde: ele sabe que a razão da lei é apontar a Cristo, que a cumpriu completamente, de uma vez por todas, com sua morte (Rm 10.4; I Pé 3.18).
V. 33 — Escandalizados, os judeus argumentam formalisticamente: a filiação a Abraão garante a liberdade frente aos povos. Ora, para João era preciso mostrar que se amava a Jesus, pois a filiação por si nada dizia (Mt 3.8s.). Por outro lado, a liberdade argumentada pelos fariseus é a liberdade de quem está ligado à lei, e não se mancha com heresias. Neste aspecto, para os judeus era possível ser livre, mesmo debaixo do maior jugo escravocrata político. Talvez esteja aqui a liberdade metafísica que alguns autores evocam. Uma liberda.de bem farisaica.
Ora, para Jesus liberdade significava crer no Cristo, que era o próprio Deus. Esta fé excedia em muito a simples observância da lei, e ia adiante, vencendo o pecado. Se os fariseus cumpriam a lei para evitar o pecado, os discípulos de Cristo já haviam vencido o mundo (Jo 16.33). Desta forma, o discípulo sentia-se impulsionado a viver o evangelho, levando outros a conhecerem o Cristo Libertador.
V. 34 — Jesus aponta para a causa maior da escravidão: o pecado. Para Jesus não há meio termo: ou o pecado e a morte, ou a fé e a vida eterna. Neste sentido, nem Abraão foge à regra: Abraão era um homem e, como tal, -pecador. Por isto, ele não pode ser nem objeto de fé, nem garantia de salvação. Porque aquele que é filho do pecado nada mais sabe fazer além de pecar. Por isto, torna-se escravo do pecado. Por mais que se tente libertar, não tem forças, pois o pecado está enraizado no mais íntimo do ser humano, e ele está amaldiçoado desde o princípio (Gn 3.17; SI 51.5). O ser humano está, todo ele, inclinado ao pecado, e peca mesmo naquilo que gostaria de fazer bem (Rm 7.18-21).
V.35 — Jesus usa a figura do escravo, contraposta à do filho. Este tem direitos na casa do Pai, ao passo que o escravo é um mero objeto, podendo ser vendido, trocado ou mandado embora à hora que fosse necessário. Portanto, como escravos de pecado, os judeus não têm parte na casa de Deus. Mas Abraão creu, e por isto foi justificado (Gn 15.6).
Contudo, os judeus não conseguem crer, e, por isto, estão em pecado (Jo 8.40). Desta forma, o Filho pode libertá-los, pois ele permanece na casa, ao contrário dos escravos. No entanto, os judeus não crêem em Jesus por se considerarem filhos e não escravos (Jo 8.33,39,41). Esta é a atitude do escravo: não consegue ver sua real situação.
V.36 — Assim, só o Filho tem condições de libertar o escravo de sua condição e dar-lhe também a condição de filho, com uma liberdade verdadeira e palpável, concretizável na realidade. Por isto, aquele que é verdadeiramente discípulo do Filho, também é verdadeiramente livre. Isto significa agora dar uma reviravolta na própria vida: o advérbio ontos denota que a mudança não é passageira e superficial, mas sim real e profunda. O Filho possui a chave da casa, e pode conduzir o escravo para o seu interior, modificando sua condição.
Jesus provoca um rompimento. Ele não aceita nem a aparência da liberdade nem a falsa e hipócrita adesão ao seu ensino. Ser verdadeiramente discípulo inclui ter a verdadeira liberdade, abandonando-se a antiga conduta pecaminosa.
2. Meditação
Nesta época da celebração do Dia da Reforma os luteranos gostam de pregar sobre a justificação pela fé, as noventa e cinco teses, evocar a figura batalhadora de Lutero ou falar dos seus Catecismos: Maior e Menor. Para muitos luteranos tornou-se prioridade atacar a postura e comportamento da Igreja Católica na Idade Média, sem ver a possibilidade de parceria entre as igrejas na atualidade, observando que a Igreja Católica muito se reformou ao longo dos últimos séculos.
Nosso texto bíblico em questão, poderíamos dizer, é profundamente luterano. Trata do discipulado libertador, ou o discípulo livre sobre todas as coisas. Somos desafiados aqui a conhecer a palavra de Jesus Cristo como premissa para a verdade, verdade que liberta!
Aqui o próprio Martim Lutero pode ajudar-nos na compreensão da verdade libertadora de Jesus Cristo. Lutero modificou o antigo conceito de um cristianismo passivo e contemplativo para unta religião ativa e realizadora no sentido social.
Diz Lutero em seu tratado Da Liberdade Cristã:
Um cristão é senhor livre sobre todas as coisas e não está sujeito a ninguém. Um cristão é servidor de todas as coisas e está sujeito a todos (p. 11).
E mais adiante, o cristão
terá sua mira posta só em servir aos demais, sem pensar em outras coisas que nas necessidades daqueles a cujo serviço deseja colocar-se. Este modo de obrar para com os demais é a verdadeira vida do cristão e a f é atuará com amor e satisfação (p. 44).
O cristão é livre, sim, mas deverá tornar-se de bom grado servo, a fim de ajudar a seu próximo, tratando-o e obrando com ele, como Deus tem feito com ele mesmo por meio de Cristo. (P. 46.)
Liberdade cristã não tem seu fim em si mesma. Sua propriedade consiste no testemunho do ato de libertação por parte de Deus e Jesus Cristo. Este testemunho consiste em duas coisas: evangelização ou proclamação do amor de Cristo pelo ser humano através de palavras; e, serviço, ou proclamação do amor de Cristo pelo ser humano através de atos de amor.
Quando formos abordar a concepção, liberal de liberdade reinante nos discursos de poder entre nós, vamos ter que buscar a dura crítica social. O cristão, na sua proclamação do amor de Cristo por evangelização e serviço, atua e convive com uma tremenda tensão no fio de sua vida. Pois falar de liberdade como proposta de Cristo é atacar aqueles que a tratam como defesa do interesse individual, a não-interferência de quem quer que seja nos negócios privados, seja quais forem as consequências destes. Liberdade se tornou o direito de desobedecer a lei e ao mesmo tempo o direito de não querer reformá-la. Liberdade se tornou sinónimo de privilégio!
Como luteranos pregamos que a liberdade deve estar em função da coletividade, deve ser concedida a todos. Não há como fugir da discussão com a comunidade sobre a liberdade de expressão de alguém que nunca teve a oportunidade de ir na escola. Perguntar qual a liberdade de participação política de alguém que não possui nem o suficiente para a alimentação.
Qual a liberdade de imprensa de um meio de comunicação de massa atrelado a interesses de oligarquias? Onde está o direito à propriedade de setenta milhões de brasileiros considerados miseráveis?
A verdade libertadora de Jesus Cristo não é contemplativa ou passiva, é ação de amor.
3. Pistas para a pregação
1. Ressaltar a importância da história e acontecimentos da Reforma, tanto para os luteranos como para a Igreja universal, mas sem ufanismo.
2. Ler o texto bíblico da pregação. Experimente distribuir cada versículo, com antecedência, para leitura de diferentes leitores. Use a versão de Almeida. Em seguida faca a leitura corrente numa linguagem atualizada.
3. Destaque as palavras centrais do texto, como: palavra, discípulo, verdade, libertação, liberdade, escravo, pecado, Filho. Aqui existe a possibilidade para dialogar com os ouvintes.
4. Procure descobrir com a comunidade onde os luteranos estão presos à lei na atualidade. Seriam certas tradições ainda cultivadas? A contribuição obrigatória? O Batismo sem compromisso? Celebração de muito cérebro e pouco corpo e sangue? Descompromisso no engajamento social? Instituição muito burocrática?
5. Avaliar a proposta de libertação que o Filho apresenta.
6. A Reforma trouxe uma mensagem de liberdade. De que forma ela ainda se manifesta na comunidade atual?
7. Desafiar para o testemunho tanto na evangelização como no serviço.
4. Subsídios litúrgicos
1. Confissão de pecados: Senhor Deus, nosso juiz e amigo. Confesso diante de ti e de nossos irmãos que em meio a meu trabalho atuo como se tu não existisses. Olho para o mundo com meus olhos. Confio integralmente neles. Restrinjo tua ação, Senhor, à hora do culto, à Igreja. Esqueci que és o Criador. Não me lembro, em meu dia-a-dia, de que a história está em tuas mãos. Tem piedade de mim e de nós, Senhor!
2. Oração de coleta: Senhor, tua palavra é a fonte para o nosso entendimento e agir. Queiras renová-la conosco agora. Dá-nos o necessário entendimento para compreendê-la, aceitá-la e colocá-la em prática. Motiva-nos na fé em tua ressurreição para que pratiquemos o teu evangelho. Anima-nos a colocarmos nossas vidas a serviço de teu Reino. Encoraja-nos pelo teu Espírito e sê conosco. Por Jesus Cristo, o único Senhor. Amém.
3. Oração final: Senhor, nosso Deus, teu mundo tem muitas feridas e dores. Tu no-lo deste intacto e íntegro; nós, seres humanos, não entendemos a incumbência que nos deste, e agora experimentamos as consequências das guerras, os temores e solidão, os erros e desesperos. O mundo tem muitas feridas e dores, e em toda a parte seres humanos esperam por esperança, pão e amor, aqui em nosso país e lá fora, em outros países. Permite que tua Igreja se transforme em mensageira de anil lio: junto às crianças excepcionais, junto às vítimas da sociedade, junto aos solitários, idosos e doentes, junto aos que não podem ter paz e que estão em perigo, junto aos famintos e aflitos. Permite que também em nossa comunidade surjam forças e ideias, para que participemos, nos oferecendo para encontrar caminhos para nosI colocar a serviço do Reino. Senhor, pedimos-te: concede-nos teu Espírito Santo, por Jesus Cristo, teu Filho, a quem queremos seguir. Amém.
5. Bibliografia
LÖWE, H. Meditação sobre João 8.31-36. In: Neue Calwer Predigthilfen. Ano 5:79-86. Stuttgart, 1982.
LUTHER, M. Da Liberdade Cristã. São Leopoldo, Sinodal, 1968.
SCHWEITZER, W. Liberdade para Viver. São Leopoldo, Sinodal, 197.1.