Nós somos filhos e filhas da cruz da boa palavra, ore Kurusu ñe'engatu ra'y, Kurusu ñe'engatu rajy. Nós somos filhos do enfeite do universo, ore arajegua-ka ra'y.
Quem fala é o velho Lauro, índio Kaiová da aldela de Panambizinho, MS. Sentado com sua família debaixo de uma árvore, nos convida para uma conversa, ñañe'eta, para pôr Deus entre nós, ñamoïta Tupã.
Em apenas sessenta hectares vivem 300 pessoas nesta aldeia.
Elas são as moradoras mais antigas desta região. Na reforma agrária de Getúlio Vargas, suas terras se reduziram a dois lotes. Não-índios compraram e venderam, mesmo assim, esses lotes sem nunca conseguir ocupá-los. Mas, hoje, os últimos moradores pedem a reintegração de posse sobre a terra e a retirada dos índios. Lauro se lembra dessa ameaça e diz: Quem plantou essas bananeiras? Estas batatas? Quem bebeu dessa água? Quem aqui se animou tantas vezes? Nós, na luz do sol, aqui plantamos batata, cana, feijão, banana; na luz do sol bebemos água; vivemos bem, na luz do sol; como do tempo de Pa'i Chiquito, aqui nos alegramos, na luz do grande sol.
Irremediavelmente, Lauro volta para o tempo em que tudo tem seu começo e seu fim: Ke'y (Ñandery Ke'y, nosso irmão maior) fez a terra. Agora ele acha que a terra está cansada, por isso vai desmanchar a cruz que sustenta e equilibra a terra. A terra vai começar a tremer, para onde iremos nós? Quando a cruz for retirada, vai parar de chover e a terra vai ficar seca. Nós vamos morrer, as crianças também, de sede. Somente se rezarmos vamos ser livres. Então Deus virá em nossa busca e nós não teremos preguiça para libertar-nos.
Dolícia, que escutava atentamente, começa a cantar: Quem me dera ser levantada! Quem nos dera ser levantada! Entregou-se, depois, a uma efusiva proclamação:
Quem nos dera que fôssemos levantados até Tupã,
que lhe apresentássemos o modo de ser vazio
da nossa flor, o modo de ser vazio do nosso
cinto, o modo de ser vazio do nosso diadema!
Lauro nos diz: Ela também quer ir para cima, ela também quer ser livre. Dolícia, como seu povo, quer se livrar; quer voltar ao princípio, por isso ela canta: começa a flor, começam todos os enfeites, começa a flor da Palavra e manifesta-se, assim, a boa Palavra de um menino! Dolícia fica tão bela, enfeita-se inteiramente com seu canto. Ela expressa a irresistível saudade-esperança de um povo que caminha e que não chega.
Há mais de 450 anos, conquistadores espanhóis, aventureiros do mundo inteiro, jesuítas, bandeirantes, epidemias, bugreiros, guerras, missões religiosas, descendentes dos antigos colonizadores, novos colonos e os Estados do Rio da Prata acabaram forjando o povo pessimista que é o guarani falado pelo outro. Mas o povo guarani, como os outros povos indígenas, tem sua própria história, história que é teografia a ser escutada, sentida e compreendida por nós que amamos a cruz da boa palavra, acreditamos na ressurreição e clamamos a Deus: Venha a nós o teu reino.
Via crucis na América sem verbo
No primeiro dia do Diário de Colombo, os índios são caracterizados como gente pobre, nua e pouco entendida em negócios. Inaugura-se a relação etnocêntrica e pré-conceituosa que perdura até hoje. A nudez foi tomada como metáfora da pobreza, os enfeites não diziam nada aos conquistadores.
O gesto de dar, tão típico às populações indígenas, levou Colombo a dizer que os índios aceitavam qualquer coisa dos espanhóis que eles eram liberais no vender.
Estes três juízos de Colombo representam ideologicamente toda a Europa conquistadora. Quem diz o pobre é o rico, quem diz o pagão é o cristão, quem julga o dom e a reciprocidade é a avidez pelo ouro e a economia de mercado.
A identidade dos índios foi percebida por Colombo e pelos outros conquistadores, mas não lhes serviu para estabelecer uma relação de igualdade; levou-lhes à indiferença, à negação do outro. (Todorov, pp. 33-47). No lugar da máscara, da pessoa, forja-se uma caricatura, em cujo kaiz vai surgir sério debate antropológico. Afinal, quem são os índios da América? São humanos ou não? (Cf. o conflito entre Las Casas e Sepúlveda no século XVI.)
O protótipo greco-latino de homem não dava brechas para o outro. E o outro continua aguardando o tempo propício para desvelar-se nesta América sem Verbo, como bem expressa Leopoldo Zea.
Hoje, quando nos aproximamos dos 500 anos do início da conquista, não seria o tempo bom para escutarmos a palavra dos índios e das índias, cujas histórias e utopias não são a história e a utopia dos conquistadores? Não seria tempo bom para confrontar-nos com Deus, desconhecido em sua encarnação indígena, em sua paixão e cruz ameríndias?
No início do contato com os espanhóis, a população guarani pode ser estimada entre 150 mil a 200 mil habitantes, espalhados em vários grupos, dentro de uma geografia que hoje corresponde à região oriental do Paraguai, nordeste argentino, oriente boliviano e os Estados meridionais do Brasil.
Em muitos documentos da época, como o de um aventureiro alemão, presente na fundação de Assunção, fala-se da divina abundância em que os guaranis recebem os famintos conquistadores (Schmidt, p. 54).
Os espanhóis são presenteados, recebem mulheres, tornam-se parentes dos nativos. Os guaranis constroem uma fortaleza mui grande, até pouco a pouco fazer uma cidade: Asunción! (Monumenta Brasiliae, Vol. I: 474-5).
Mas, o dom não foi compreendido. Os conquistadores nada entendiam de reciprocidade! O dom tinha que produzir uma terceira realidade que superaria a insuficiência dos dois. O dom era dar-se fundamentalmente, e não dar o que possui: les traímos nuestras cosas, cuñas, cuchillos y anzuelos (Monumenta Brasiliae, Vol. I).
A economia guarani produz não só o que vai ser comido, mas também os bens simbólicos, o que vai ser cantado e dançado! O dom puro da sociedade guarani teve em resposta não a reciprocidade, mas a apropriação egoísta do dom, ao qual logo reagem os guarani, sobretudo a partir de 1556, quando é institucionalizada a ruptura da amizade e aliança guarani-espanhola, com as encomiendas. Até aqui a economia índia era perfeitamente adequada para a subsistência dos seus produtores, mas se mostrou demasiadamente débil para permitir a extração de um suplemento destinado ao enriquecimento de terceiros (Necker). Com isto fica cada vez mais a caricatura guarani como mão-de-obra preguiçosa e rebelde, ideologia que tenta legitimar a opressão colonial. Em resposta, ergue-se uma série de movimentos proféticos de libertação:
O antigo Paraguai habitado pelos índios foi durante dois séculos a terra preferida de messias e profetas indígenas. Nenhuma outra região conta com tantos movimentos de libertação mística… Sua multiplicação no momento em que os conquistadores e os jesuítas estabelecem seu domínio e se esforçam para destruir a antiga civilização se explicaria pelo desespero que se apoderou dos tupinambá e dos guarani. Este desespero os teria animado a escutar os profetas que se levantavam entre eles e lhes ofereciam como solução a fuga para a terra-sem-mal ou vinda próxima de uma idade de ouro (Metraux, 23).
Em 1575, a situação torna-se desastrosa. A população guarani contactada, que entre 1537 e 1555 se reduzira à metade (de 200 mil a 100 mil), não chegava a 65 mil vinte anos mais tarde. Os outros morreram em consequência das guerras de pacificação. Sem levar em conta que durante este mesmo tempo, outros subgrupos eram contactados.
Para os espanhóis, com os índios desaparece a principal riqueza da colónia. Era urgente conter a resistência indígena sem matar mais nenhum índio sequer. Os franciscanos, desde 1580, e os jesuítas, desde 1609, se encarregariam disso. Nas palavras de uma testemunha, se os padres não tivessem começado as reduções, os índios se teriam acabado pelos contínuos levantes e rebeliões, pois os espanhóis quiseram reduzi-los a força de armas e de ferro (citado por Necker, p. 132). A propósito, o mérito inegável de franciscanos e jesuítas é a eficácia das suas reduções na estabilização da população guarani a partir do século XVII.
Assim, durante o caminho da cruz na época colonial, os guarani que não passaram pela mestiçagem biológica e cultural foram reduzidos a povoados. Com a desintegração destes povoados nos séculos XVIII e XIX, seus habitantes tornaram-se membros do Estado que os assimila e lhes impõe, mais uma vez, outro processo de redução, até a condição de camponês pobre. (Meliá, p. 296).
Contudo, alguns grupos guarani, que vivendo na selva, relativamente afastados dos centros de população colonial, podem ter sobrevivido livres do sistema colonial ou tê-lo conhecido na sua decadência.
Mas quem são estes que hoje se consideram filhos e filhas da Cruz da Boa Palavra, filhos do enfeite do universo?
A boa palavra da cruz ameríndia
São aproximadamente cem mil índios e índias identificados em 4 grupos: pai-tavyterã ou kaiova; ava-katuate, chiripa ou ñandéva, mbya e chiriguanos. Ocupam parte do seu território tradicional em pequenas aldeias ou reservas, no Brasil, e em áreas mais extensas na Bolívia, na Argentina e no Paraguai. Especialmente no Brasil, há um número considerável de despejados (índios sem terras), em consequência do avançado das fazendas sobre os habitantes indígenas originários. Sobre a origem destes filhos e filhas da Cruz da Boa Palavra, não conhecemos o suficiente. Conhecemos apenas um pouco da sua boa palavra; Palavra-com-vivência que confunde a história com seus caminhos de cruz e de mortes.
Para os guarani, a palavra é cantada! Paulito e Mariana dizem que Deus não fala, ele canta! O canto é a sua boa palavra, iñe'engatu. Ele não fica quieto quando canta, por isso a palavra também deve ser dançada e caminhada! Apykarendy, rezador do Paraguai, diz que a palavra é o resplendor da coisa boa! mba'ekatu rendy. Cantando Lauro chama a Deus. Venho da frente do rosto de meu pai, che ru rovakéqui aju, testemunha de si a palavra que põe Deus entre nós:
Já levanta os nossos pés, o resplendor do Bem
Para nos levar embora, o resplendor do Bem
já nos faz voar, o resplendor do Bem.
Então já chegamos ao céu, o resplendor do Bem.
A palavra foi cantada por Mariana, que como Dolícia também quer se livrar, quer ir embora. Bem é a tradução de aquije, que quer dizer perfeição. Para ela estão vocacionadas todas as coisas, as pessoas, e a Terra! Para Mariana está claro que a perfeição não está nesta terra, mas na outra! No yvyaraguije, terra do tempo-espaço perfeito.
Na terra perfeita há lugar para todos, para muito mais gente do que vivem hoje aqui. Como não haveria se lá ninguém morre e nem fica doente? (Lauro). A mata lá é verde-azul, tudo o que tem lá é perfeito. Há muita lenha e dela não sai fumaça, só chama (Paulito).
Numa aldeia de sessenta hectares, cercada de plantação extensiva e completamente desprovida de lenha, o desejo pela mata-verde-azul e por lenha boa tem mais que sentido.
A busca da terra boa é um projeto inviável aos guarani contemporâneos. Eles estão cercados pela soja, pelo pasto, pelas vacas, pelas cidades e pelas fazendas. Assim, alguns saem pelas estradas, acampam em pontos favoráveis para trocar sementes. (Plantar seu milho tradicional e permanecer ali até recolher a semente nova). Enquanto aguardam, fazem artesanatos e olham a terra passar pela estrada. Para um mbya, hoje é a terra que caminha, oguata e tão velozmente que o guarani não consegue acompanhá-la. Mas entre outros, a busca da terra boa passou a expressar-se e a significar-se ritualmente.
De todos os modos, os males na terra acrescidos consideravelmente desde a chegada dos espanhóis e hoje quase incontroláveis impedem a busca da terra boa. Antigamente não era assim. Os males, as maleças motivaram a caminhada. A dança era uma transposição religiosa de uma vivência real de caminhada, de busca e de encontro de uma, terra boa, de um espaço onde mudaram os frutos « as pessoas, onde a terra é terra perfeita, yvyraguije e onde da plantação se colhe comida, festa, comunhão e palavra inspirada. A palavra que põe Deus entre nós.
Foi com cantos e danças que, na época colonial, os guarani, burlados em seu dom, empreenderam os movimentos proféticos de libertação. Fugiam em grande número para as matas e nela, enquanto puderam, ficaram isolados. Hoje o canto-dança, que ritualiza a busca da terra onde o dom é recíproco, é o espaço onde o guarani busca sua liberdade do sistema neocolonial envolvente. É a floresta simbólica onde resiste e preserva sua identidade. Porque toda terra se converteu em mal… (o guarani) teme o dia em que só haverá mal sem terra. Seria o desterro total'' (Meliá, p. 346).
Mas a Cruz da Boa Palavra também incentiva a perfeição nesta terra. Aliás, a diferença que Hipólito encontra entre sua reza e a do branco é que a dele tem terra e a do branco só papel, sendo, por isso, reza fechada.
Preocupado com a guerra do Golfo e com os suicídios, Paulito nos ensinou esta reza para desanimar a violência das pessoas:
Meu Pai: o nosso mútuo corpo esfria, alegra a terra
a nossa mútua fala (alma) esfria, alegra a terra
a braveza-violência esfria, alegra a terra
o que está pegando fogo esfria, alegra a terra
o lugar onde se senta a nossa mútua fala esfria, alegra a terra
a nossa mútua fala se abrindo em chamas, esfria a terra
o sangue furioso da nossa mútua fala esfria, alegra a terra
finalmente, que sejamos sempre o corpo perfeito e bom!
A petição pela alegria da terra é constante. O mesmo que
pelo enfeite, pelo entendimento, pela felicidade, pelo entrosamento
entre as coisas, as pessoas e os donos de seu modo de ser.
A boa palavra da cruz expressou seu apreço pela perfeição
que na terra se pode alcançar, diante de uma criança que
estava doente. Assim falou o rezador:
Não é só a mãe que cuida da criança, ela é cuidada pelo
dono do seu ser que também repara se os seus pais cuidam
bem da criança ou se lhes fazem sofrer.
Quando a mãe briga ou bate, a alma da criança pode assustar-se
porque é um pássaro afoito, por isso não devemos
bater em ninguém nem brigar na frente delas.
As crianças são como as plantas são como as sementes. Os
pais e padrinhos devem cuidar dos filhos para que cresçam
felizes como o pé de milho e de arroz quando são beijados
e lançados pelo vento.
Enquanto crianças crescerem no mundo há esperança… mas
quando isto não mais acontecer, pode se plantar milho que não
vai dar fruto, pode-se engravidar que não se vai parir. Nossos
desejos já não serão tão fortes para poder acontecer. Sem crianças
o mundo vai acabar. Criança é a nossa vida.
Kurusu ñe'engatu e nossa caminhada
A boa palavra da cruz é uma palavra primeira, vivida, não escrita. Ela deve ser escutada, aguardada, sonhada, ritualizada, caminhada! É palavra que tem terra.
A boa palavra da cruz é como a palavra primeira da história contada nas Sagradas Escrituras. É a palavra sem rei e sem escribas, é como uma memória histórica da vida tribal que foi e que no fim voltará a ser (Meliá, in Acción, 1987:48); conhecê-la pode nos ajudar a compreender a utopia bíblica que é utopia de povo errante e sofrido, a busca de terra boa:
Meu pai era arameu errante que desceu ao Egito e ali peregrinou com pouca gente; porém, ali cresceu até vir a ser nação grande, e poderosa e numerosa. Mas os egípcios nos maltrataram e nos afligiram, e sobre nós puseram uma dura servidão. Então chama-mós ao Senhor Deus de nossos pais: e o Senhor ouviu a nossa voz, e atentou para a nossa miséria, e para o nosso trabalho, e para a nossa opressão. E o Senhor nos tirou do Egito com mão forte, e com braço estendido, e com grande espanto, e com sinais e com milagres. E nos trouxe a este lugar, e nos deu esta terra, terra que mana leite e mel. (Dt 26.5-9)
Conhecer a Cruz da Boa Palavra é ser falada por ela. Como diz Lauro em sua reza; é ser adornada por ela:
A primeira cruz me enfeita, me enfeita
A alegria espumante da primeira cruz me enfeita.
Os 500 anos do início da conquista é tempo bom e agradável para deixar-se falar pela Cruz da Boa Palavra!
Bibliografia
ACCIÓN, Revista Paraguaya de Reflexión y Diálogo, III, Ano XIX: N° 84. 1987.
GUARANIS DE MS, relatos e cantos recolhidos por Graciela Chamorro. Material não publicado, no acervo do Centro de Pesquisa sobre a Questão Indígena, COMIN, São Leopoldo. 1989-91.
MELIÁ, B. El guarani conquistado reclucido. 2. ed., Asunción, CEADUC, 1988. O rosto índio de Deus. Petrópolis, Vozes, 1989.
METRAUX, A. Religions et magies indienes d'Améríque du Sud, Paris, 1967.
NÉCKER, L. índios guaramés y chamanes franciscanos. Asunción, CEADUC, 1990.
SCHMIDT, U. Derrotero y viaje a España y los índios. 2. ed., Buenos Aires/México, Esposa/Calpe, 1947.
SUSNIK, B. Los aborígenes del Paraguy (VI). Asunción, Museo Etnográfico Andrés Barbero, 1984/5
Idem. Etnohistoría de los guaramés; época colonial. Asunción, 1979-80.
TODOROV, T. A conquista da América; a questão do outro. São Paulo, Martins Fortes, 1983.