Prédica: Lucas 10.38-42
Leituras: Gênesis 18.1-10a ( 10b-14) e Colossenses 1.21-28
Autor: Louraini Christmann
Data Litúrgica: 9º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 09/08/1992
Proclamar Libertação – Volume: XVII
1. A ousadia de Lucas
Há uma promessa de Deus que ele faz através do profeta Isaías (Is 61.2). E Jesus veio cumprir esta promessa (Lc 4.16-21). É onde o evangelista Lucas pendura o seu relato.
É por aí. Não há espaços para dúvidas. É por aí mesmo. Jesus veio para evangelizar as pessoas pobres, para proclamar libertação às pessoas cativas, restauração da vista às pessoas cegas e para pôr em liberdade as pessoas oprimidas.
A situação que Jesus vai enfrentando vai deixando claro que há muito o que fazer, que há muitas situações inaceitáveis, e que é preciso apregoar o ano aceitável do Senhor, como Isaías resume a missão que Jesus assume radicalmente.
Inaceitável é a situação da mulher oprimida, entre outras. E isto hoje, ontem e anteontem. No Evangelho de Lucas há sinais claros de que em sua comunidade a luta pela vinda do ano aceitável do Senhor estava sendo assumida fortemente por um número expressivo de mulheres. Lucas, em princípio, parece não querer admitir isso. Tem a ousadia de falar assim mesmo, como Mateus e Marcos, da escolha apenas dos doze discípulos (Lc 6.12-16). João não faz isso. Mas Lucas parece obrigado a admitir que os doze discípulos eram, na verdade, 70 discípulos e discípulas.
É observando os quatro capítulos anteriores à nossa perícope que se pode afirmar isso. Vejamos: logo após a escolha dos doze (6.12-16) segue a ressurreição do único filho de uma viúva — única chance de amparo desta mulher por ser viúva (7.11-17). Logo após aparece a atitude de uma mulher de má fama (7.36-50). Não há outro jeito: é preciso admitir que havia algumas mulheres (8.2) dentro do círculo dos discípulos, para depois concluir que havia muitas outras (8.3). Depois desta avalanche de mulheres, a coisa continua: Lucas 8.42 nos mostra a coragem daquela mulher impura, conforme a lei da época, por estar sangrando há doze anos. Ela só poderia ter esta coragem se outras mulheres lhe dessem sustentação. Em seguida mais uma lhe é trazida morta, a qual Jesus ressuscita (8.49-50).
Logo após, no capítulo 9, Lucas nos relata como deu poder e autoridade aos doze: para expulsar demónios e efetuar curas (v. 1), para pregar o reino (v. 2), para não levarem nem alforje, nem bordão, nem pão, nem dinheiro, nem duas túnicas (v. 3), para permanecer em uma só casa em cada comunidade (v. 4), para sacudir o pó dos pés onde porventura não forem recebidos (v. 5).
Esta instrução aos doze, Lucas a compartilha com Mateus e com Marcos. Mais um vez João não entra nestes detalhes.
Parece que Lucas precisa mesmo dar um passo a mais: as algumas mulheres (8.2), depois as muitas outras (8.3), também recebem poder e autoridade iguais aos que os doze recebem, porque parece fora de cogitação que elas não estivessem incluídas entre os setenta (Lc 10.1-12 — exclusivo de Lucas), depois de constatar mós uma presença tão forte de mulheres em sua comunidade ativamente engajadas.
Jesus ordena que os setenta vão sem bolsa, nem alforje, nem sandália (Lc 10.4 = 9.3); que permaneçam numa mesma casa em cada comunidade (Lc 10.7 9.4); que curem enfermos (10.9 = 9.1); que anunciem o Reino (10.9 = 9.2); que sacudam os pés ao saírem de onde não forem recebidos (Lc 10.10-11 = 9.5); que inclusive expulsem demônios (Lc 10.17 = Lc 9.1). Enfim, a mesma responsabilidade, autoridade e poder são dados ao grupo dos setenta.
Depois do relato de Marta e Maria, o qual estamos estudando, em Lc 11.27-28, aparece outro material exclusivo, onde encontramos Jesus desafiando uma mulher a valorizar mais o escutar e praticar os seus ensinamentos do que o ser mãe. Outro detalhe é que esta manifestação de Jesus se dá em cima de uma palavra de louvor de uma mulher, cujo louvor diz ser bem-aventurada a mãe de Jesus por esta tê-lo concebido e amamentado (v. 27).
A mulherada está ativa na comunidade de Lucas, e ele precisa admitir isso. Por exemplo, quem mais traz curas de viúvas, por exemplo, as mulheres mais oprimidas na época, destituídas de qualquer direito, é o Evangelho de Lucas (conforme a Chave Bíblica da SBB, Lc cita sete vezes o termo, Mc duas vezes, Mt uma vez c Jo nenhuma). Se estas aparecem tanto, é porque tanto procuram Jesus.
O que Lucas também traz fortemente em seus relatos exclusivos são atitudes de Jesus normalmente consideradas femininas. É o bom samaritano que não é o protótipo do ser masculino (Maria Santiso, A hora de Maria, a hora da mulher, p. 96). Este tem tempo para servir fazendo curativos, tratando carinhosamente a pessoa caída (Lc 10.25). São numerosas curas e preocupações com o bem-estar físico — quem é que faz chá, mede a febre, faz curativo, cura com um trabalho de saúde preventiva e alimentação natural em nossas famílias e comunidades, se não a mulher? É a atitude de ensinar a rezar (Lc 11.1-4,9-13, com paralelo só em Mateus), a missão muito fortemente assumida por nossas mães nas nossas famílias e comunidades. É repartindo o pão à mesa em Emaús (Lc 24.30 — detalhe exclusivo de Lucas)…
É analisando estas características de Lucas e de sua comunidade, que compreenderemos o relato de Marta e Maria, relato também exclusivo de Lucas (10.38-42). Este relacionamento forte de Jesus em relação às mulheres e à causa feminista, tinha que aparecer aqui. E aparece trazendo-nos uma mensagem forte e comprometedora.
2. A ousadia da lei
A lei, cujo princípio teria que ser a garantia da igualdade, do direito à vida, tem a ousadia de tolher sempre este direito. Em relação às mulheres do povo judeu isto é particularmente sério.
Duas leis fundamentais em relação às mulheres são quebradas em nosso texto:
1°) Um homem, (e um Mestre) visita duas mulheres, tratando-as, portanto, de igual para igual.
2°) Um Mestre não só aceita ser o Mestre também de uma mulher, como também desafia outra mulher a também ser discípula.
Isto é algo revolucionário numa sociedade que pregava: Aquele que ensina a lei à sua filha, ensina-lhe a devassidão e que é preferível queimar a Tora que ensiná-la às mulheres, especialmente levando em conta que a sociedade da época super-valorizava a lei e os sacerdotes. O enfrentamento constante de Jesus com escribas, fariseus e sacerdotes mostra-nos isto claramente.
A lei tem a ousadia de proibir as duas atitudes de Jesus neste relato. A comunidade de Lucas tem a ousadia de inibir esta lei. E esta cai por terra frente à ousadia de Jesus.
3. A ousadia de Jesus
Jesus na sua caminhada levantou muitos aspectos em relação à vida e não-vida da mulher. Onde ela não tinha o pleno direito à vida, igual ao homem, ele intercede por ela, como no caso do divórcio (Mc 10.2-12); quando ela busca um direito, ele a apoia, como no caso do nosso texto e que veremos depois. O que importa para Jesus é a vida plena para todas as pessoas. Os evangelhos estão cheios de exemplos.
E Jesus é questionado, xingado, humilhado, torturado e morto por causa disso. Não estava sendo fácil apregoar o ano aceitável do Senhor, muito especialmente em relação à mulher.
A opressão feminina precisa ser tratada especificamente junto à opressão geral do ser humano. Isto as mulheres hoje descobrem facilmente quando estão envolvidas no movimento popular. Sua luta específica não pode ser postergada sob a alegação de que isto viria depois, quando a classe trabalhadora tiver resgatado o pleno acesso ao fruto do seu trabalho e consequentes condições de vida plena. Não! Também neste texto, Jesus nos mostra a necessidade, já agora, de assumirmos esta luta em conjunto, homens e mulheres. Homens e mulheres, sim! A luta feminista, mais do que qualquer outra luta, precisa do engajamento de homens e mulheres. O fato do homem Jesus estar engajado nesta busca já naquele tempo é alentador e desafiador para convocarmos nossos companheiros a assumirem conosco esta luta, já que nós, mulheres, sentimos esta necessidade muito mais intensamente.
A ousadia de Jesus começa no momento em que ele assume esta amizade com Marta e Maria. Pode parecer um quase-nada, mas é quase tudo dentro daquela sociedade que simplesmente não admitia este quase-nada. Fazendo uma visita a Marta e Maria — que na certa não foi a única — Jesus desafia aquele jeito de pensar a sociedade, assim como desafia hoje o nosso jeito de pensar a sociedade. Nós temos, por exemplo, uma dupla moral: para os homens vale uma coisa, para as mulheres vale outra. Nós temos direitos desiguais: os homens têm infinitamente mais do que as mulheres. E não falo só dos garantidos no papel, mas muito mais dos direitos garantidos na prática. Nós temos também deveres desiguais: as mulheres têm infinitamente mais do que os homens. E, mais uma vez, não falo só dos deveres que estão determinados no papel, mas muito mais dos deveres determinados pela prática. Na época de Jesus os homens podiam receber a visita de quem quisessem — as mulheres não. Por serem mulheres, a lei lhes tirava este direito.
A ousadia de Jesus se torna ainda mais forte no momento em que passa a admitir uma mulher como discípula, uma mulher ousada que toma a atitude de discípula. Este não era um direito que ela tinha. Jesus o concede. O seu dever legal seria o de dizer: Minha filha, me desculpa, mas você não pode ser minha discípula, você não tem o direito de ouvir a Palavra, porque você é mulher.
Como as mulheres não tinham o direito de ser discípulas, não é tão lógico assim insistir tanto com os famosos a tua fé te salvou dirigidos a muitas mulheres Ter fé sem ser discípula é algo que não existe. Há, pois, muitas discípulas sendo acolhidas por Jesus e assumindo a sua fé na prática. Jesus aposta nesta potencialidade, mesmo sabendo que será severamente criticado por isso (Lc 7.39). Ele não se importa com as consequências. Pisando as grandes leis injustas, vai elevando as pessoas pisadas. Aliás, disto fala uma mulher, Maria, a mãe de Jesus, no inicinho do Evangelho de Lucas (mais uma matéria exclusiva dele), mostrando a importância deste famoso cântico de mulheres para aquela comunidade.
Os exemplos tirados do cotidiano de mulheres, as famosas parábolas, a infinidade de curas, inclusive tomando atitudes bem carinhosas, meigas, de uma incrível sensibilidade, atitudes estas negadas aos homens desde antes mesmo de estes nasce rem, nos mostram o retraio de um Jesus tão humano quanto merecem ser todos os homens do mundo. A educação, que nós mulheres ainda temos que assumir majoritariamente, não está dando este direito. Pelo contrário, educamos os nossos homens para a força, para a violência, para a infidelidade, para a frieza, para a insensibilidade, para o racional, enquanto que educamos as mulheres para o oposto. Jesus Cristo, assumindo este oposto, é um xingão que nós muito bem merecemos.
Deixar que este Jesus nos contamine, a nós, mulheres e homens, é uma das garantias que temos na busca por um mundo humano, sensível, fraterno e igual.
Especialmente o nosso jeito de fazer teologia precisa ser contagiado ainda mui to por este Jesus. Nós, mulheres que lidamos com a Bíblia, temos a responsabilidade de dar uma característica feminina à teologia, o que resultaria, talvez, numa teologia de mais união, mais tecida de oração e gerada no lento amadurecimento da assimilação da própria carne (Maria Santiso, A Hora de Mana…, p. 97).
É desta maneira que Marta e Maria aprendem isto. Jesus sabe sentar e ter tem pó para o que não lhe traz lucro material algum. Jesus sabe sentar para ouvir, sabe dar espaço para o diálogo. Jesus sabe tanto se aproximar das pessoas, que estas se sentem em casa com ele, inclusive até ao ponto de ele ser questionado nas suas atitudes. Marta, da qual trataremos depois, é um exemplo disso.
4. A ousadia dos discípulos
Os discípulos nem sempre entendem este jeito libertador de Jesus em relação às mulheres: Judas não entende a unção de Maria, aceita tão livremente por Jesus (Jo 12.4-7); não entendem o jeito de Jesus provocar aquela mulher estranha para ver o tamanho de sua fé (Mt 15.23); não acreditam no depoimento das mulheres de que Jesus havia ressuscitado (Lc 24.11), às quais Jesus ordenou que fossem contai a estes (Jo 20.17), e Paulo apresenta uma tensão entre a tradição (l Co 14.34) e a mensagem de Jesus (Gl 3.28). Percebemos que a mensagem de Jesus é vitoriosa quau do encontramos depois um Paulo que até recomenda que os discípulos auxiliem as discípulas na missão de pregar o evangelho (Fp 4.2-3). Paulo, inclusive, aprende tan to de Jesus e das mulheres engajadas na época, que chega a sentir as dores do par to pelos irmãos e irmãs durante a sua ausência (Gl 4.19).
5. A ousadia de Maria
Não é fácil assumir o que Maria assumiu na sua época: a atitude de discípula. Por lei, esta atitude não existe. Maria tem a ousadia de fazê-la existir. E se ela tem essa ousadia, é porque há outras mulheres fazendo-o também.
Já vimos o quanto as mulheres da comunidade de Lucas estão sendo discípulas. Não é por acaso que Maria descobre o seu direito. Aliás, sempre é numa busca coletiva que descobrimos os nossos direitos, nunca é trancando-nos em nós mesmos.
E não é qualquer busca coletiva que elas assumem em nome de Jesus Cristo: é a busca pelo direito de serem discípulas. Elas sabiam da importância da mulher por sua contribuição específica ao discipulado, especialmente quanto às atitudes tão cheias de sensibilidade, carinho e afeto de Jesus, as quais nós, como mulheres, aprendemos a ter. Para evangelizar é preciso tudo isso. Há muito evangelista duro, grosseiro e racional por aí, que ainda não sabe que evangelizar tem muito a ver com gerar, com esperar até nove meses, com ter paciência. Até mesmo Paulo já dizia isso (l Co 4.15). Maria e as mulheres da época sabem assumi-lo muito bem.
E Maria o assume. Encontramo-la, por exemplo, tomando uma atitude bem consciente de quem entendeu que Jesus é o Rei e por lhe unge os pés com bálsamo e os enxuga com seus cabelos (Jo 12). Ë uma atitude bem consciente de quem sabe que tem muito o que fazer. Maria faz, age. Portanto, a sua atitude de sentar aos pés de Jesus não fala apenas do lado contemplativo, da atitude passiva que tomamos frente a Deus. Maria depois nos prova isso. Ao sentar aos pés de Jesus, ela aprende toda a dimensão do ser discípula. Ela aprende a ficar em casa (Jo 11.20), provavelmente fazendo o serviço, enquanto que Marta vai ao encontro de Jesus. Maria não assume, portanto, a imobilidade, como quer Arturo Paoli, entre tantos outros, quando, inclusive, se perde em longos comentários sobre o celibato ao falar sobre a atitude de Maria (Arturo Paoli, A Raiz do Homem, pp. 147 a 159). Diz ainda que Maria abandonou o serviço material. As Marias todas: acompanhando Jesus, servindo-o, estando ao pé da cruz, visitando o túmulo e anunciando o Jesus vivo, é a prova de que assumiram integralmente a missão de discípulas.
6. A ousadia de Marta
Estou cansada de xingar Marta. Aliás, com que direito podemos xingá-la, se restam para ela os deveres do lar? Estou cansada de xingar Marta, mas estou com vontade de xingar outra pessoa: Lázaro. Por que ele não assume esta dimensão do discipulado naquele momento tão importante no qual as mulheres, suas irmãs, assumem a dimensão pública do discipulado? Cadê Lázaro?
Já estudei tantas vezes este texto com mulheres, concluindo com elas que nós, mulheres, merecemos este xingão de Jesus: Marta, Marta!, por estarmos tão atarefadas com as coisas da casa. E já cansei de chegar em casa, com todo o meu tempo disponível, certa de não ser uma Marta, passando a assumir tranquilamente a atitude de Maria. Quanta hipocrisia! Eu tenho uma companheira que assume os trabalhos da casa há anos, enquanto me libera deles; eu tenho um companheiro, o meu marido, que assume comigo as responsabilidades com nossos filhos; estamos educando os nossos filhos a assumirem também. Como eu posso incutir na cabeça das mulheres, com as quais estudo este texto, o famoso Marta, Marta!, se elas são obrigadas a assumir tudo sozinhas, se, inclusive, elas continuam educando as filhas do mesmo jeito?
Vejamos a Marta de perto: se Lázaro não assume a sua parte na responsabilidade da casa, se Maria está ávida por aprender de Jesus, o que resta para ela senão pedir ajuda a Jesus para este dar um jeito em Maria?
Não! Também tinha outra saída: Marta poderia fazer sozinha todo o serviço, assumindo ela só toda a responsabilidade: dela, de Maria, de Lázaro e inclusive de Jesus, que é um grande amigo, como a maioria das nossas mulheres acaba fazendo sempre.
Se Marta é tão vazia, por que ela não opta por esta saída? Teria sido difícil, mas infinitamente mais fácil do que receber aquele xingão de Jesus. Portanto, tem alguma coisa por trás. Parece que Marta está começando a entender as coisas, mas quer que Jesus o diga claramente. E Jesus o diz. Jesus sempre aceita a provocação das pessoas. Ele acaba dizendo, depois do xingão que ele ganha de Marta, o que ele pensa disso. Marta o acusa de que ele nem nota toda a trabalheira que ela passa sozinha e exige que ele tome uma atitude.
Marta já conhecia a resposta que viria e foi para ouvir isto claramente que ela o provocou. Isto me parece claro quando observo Marta depois deste episódio: ela passa a escolher também a melhor coisa, esta que nunca lhe será tirada, como Maria. Passa a ter fé, passa a entender a dimensão do discipulado que necessariamente sai das quatro paredes da nossa vida. Marta é aquela que faz depois a grande confissão de fé (Jo 11.27), o que prova que ela era uma líder dentro da comunidade. Esta mesma fé é confessada por Pedro (Mt 16.16) quando Mateus tenta legitimar a autoridade de Pedro. É em cima desta confissão de Pedro que a Igreja Católica até hoje legitima a não-ordenação de mulheres, ignorando a mesma confissão feita por Marta.
Pois é! Esta é a Marta que assumiu toda a dimensão do discipulado. Em Jo 11.5 ela inclusive é citada antes de Maria e de Lázaro, e no v. 20 é ela quem vai correndo para se encontrar com Jesus, provando que já conseguiu ter tempo para a dimensão pública do discípulo, enquanto que Maria fica em casa. Maria, por isso, não recebe um xingão de Jesus. Depois, no v. 21, Marta mostra que sabe esperar, ter paciência, negando a Marta tão atarefada que sempre xingamos. No v. 21 ela manda chamar Jesus e ela é quem vai chamar Maria, que estava em casa.
Ver em Marta uma esperança, uma certeza, vê-la com olhos otimistas, é a capacidade que tem a mulher latino-americana, que sabe muito bem o que é ter que ser Marta. Ver em Marta uma figura negativa, com olhos pessimistas, é uma legítima atitude de Primeiro Mundo (Elza Tames, Palavra Partilhada, p. 39), que nem sabe do que trata este texto.
7. E nós hoje, ousamos também?
Não podemos usar este texto para desfazer as atividades do lar, como tanto é feito, sem sonharmos uma alternativa igualitária, mesmo porque Marta não deixa de assumir este trabalho (Jo 12.2) e nem Maria (Jo 11.20).
Mas, vendo este texto conjuntamente, podemos descobrir a importância deste trabalho ser assumido em conjunto, por homens e mulheres. Quando percebemos a necessidade de a mulher assumir o ser discípula e o fazer teologia, pela garantia de termos aí a valiosa contribuição feminina, percebemos a necessidade de o homem assumir também o lar, também por causa da importância de sua contribuição específica masculina. Há muitas crianças sentindo falta de um exemplo de afeto masculino. Há muitos homens sentindo a necessidade de construir um mundo no qual eles possam desenvolver toda a dimensão da afetividade masculina, esta afetividade tão bem testemunhada por Jesus.
É um grande texto para iluminar a caminhada que hoje fazemos na busca de um Brasil fraterno para todas as pessoas. A firme atuação das mulheres no movimento popular, que tem garantido grandes vitórias, poderá ter neste texto um grande ânimo ha continuidade da busca. A lenta, mas gradativa participação dos homens nas responsabilidades do gerar e recriar a vida a cada dia também tem neste texto um sinal animador.
Os caminhos da leitura feminista da Bíblia são muito difíceis. Há muito por fazer, como o mostram Marta e Maria. Há muita fé para ser buscada e confessada, como o mostram Marta e Maria. E o que nos deixa animadas(os) e que também já aprendemos de Marta e Maria, é que a teologia feminista é algo de extremamente concreto, contextualizado, apaixonado (Margarida Luíza Ribeiro Brandão, Teologia na Ótica da Mulher, p. 3), o que estamos dispostas a aprofundar num mutirão de mulheres e de homens.
8. Ideias, dicas para a pregação ou estudo em grupo
Num cartaz aparecem as palavras: HOJE – ONTEM – ANTEONTEM. Também pode ser em três cartazes.
1. Hoje: Destacando o hoje, a comunidade (ou grupo) é desafiada a encontrar exemplos atuais de opressão da mulher, de chances e oportunidades diferentes dadas a homens e mulheres. Se houver dificuldades em abrir o diálogo, sugiro os exemplos:
a) A história de uma mulher que não teve acesso a um sonho (profissão, viagem, realização pessoal) pelo fato de ser mulher. Posso inclusive sugerir o meu caso: cresci ouvindo o sonho de o meu irmão gémeo ser pastor. Eu, como também a nossa irmã, tive que parar de estudar ao concluir o primário, a 5a série. O meu irmão não queria ser pastor e sim agricultor. Ele continuou os estudos, e eu, lamentando muito por não ter nascido menino, deixei os meus estudos por dois anos. Mas foi só descobrir que as mulheres já tinham assumido o ministério pastoral na IECLB, que converti minha mãe e meu pai de que era por aí que eu queria ir.
b) Uma menina quer ganhar uma bicicleta, mas acaba ganhando uma boneca.
c) Uma comunidade sem candidatos para assumir nova gestão, tem uma surpresa: um grupo de mulheres da Ordem Auxiliadora de Senhoras Evangélicas faz uma chapa. Logo surgem mais duas chapas de homens, uma das quais vence a eleição.
2. Ontem: Destacando o ontem, mais uma vez a comunidade é desafiada a achar exemplos, agora tirados do tempo das nossas avós, ou da história ainda anterior. Exemplos:
a) Até o início do século XX o privilégio de receber ensino era só dos homens.
b) Só a partir de 1932 as mulheres têm direito ao voto, portanto, de serem cidadãs.
c) Os famosos KKK (Kinder, Küche, Kirche — filhos, cozinha e igreja), aos quais o nazismo restringia a missão da mulher.
3. Anteontem: Depois da leitura de Lc 10.38-42, sugiro fazer estas palavras cruzadas, feitas num quadro negro ou num papel enorme, assim que possam ser vistas de longe. A palavra ousadia em vertical é a única que já está escrita. As outras a comunidade, ou o grupo, ajudam a decifrar. As perguntas são as seguintes:
1a) As histórias de ontem, de anteontem, como as que estão na Bíblia, justa mente querem iluminar o … O que elas iluminam? Apenas o passado?
2a) Como é mesmo o nome do evangelista que nos conta a história de hoje?
3a) Quem é aquele que quebra duas leis importantes da época?
4a) Quem é a pessoa que parece provocar Jesus para ele definir claramente a sua posição?
5a) Lendo outros textos bíblicos, descobrimos gente que não entende a mensagem de Jesus em relação às mulheres, mesmo seguindo-o sempre. Quem são eles?
6a) Quem neste texto tem a ousadia de assumir a atitude de discípula?
7a) Mas, vendo a atuação de Marta e de Maria no todo dos evangelhos, qual delas assume toda a dimensão do discipulado?
Esta metodologia poderá facilitar a participação ativa no diálogo. Os comentários que fiz sobre todas as ousadias poderão ser subsídios para a discussão. Se esta for bem incentivada, a oração poderá surgir com muita espontaneidade.
9. Bibliografia
BRANDÃO, M. L. Ribeiro. Teologia na ótica da Mulher. Rio de Janeiro, PUC, 1990.
LAURENTIN, R. Jesús y las mujeres: una revolución ignorada. Páginas Separata, n° 46, agosto 1982.
PAOLI, A. A Raiz do Homem, perspectiva política de S. Lucas. São Paulo, Loyola, 1976.
SANTISO, M. T.P. A Hora de Maria, a Hora da Mulher. São Paulo, Paulinas, 1982.
TAMEZ, E. Entrevista. In: Palavra Partilhada. São Leopoldo, CEBI/SUL, ano 9, n° l, 1990.