Prédica: Lucas 11.(1-4) 5-13
Leituras: Gênesis 18.20-21 (22), 23-32 e Colossenses 2.6-15
Autor: Gerhard Tiel
Data Litúrgica: 10º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 16/08/1992
Proclamar Libertação – Volume: XVII
1. Associações
Meio que suspirando, um rápido olhar no plano de prédicas. O texto? Ah! Claro! Oração, Pai-Nosso, o amigo importuno. É sábado. O dia-a-dia do pastor: preparação da prédica dominical. Característica própria do pastor: encontrar associações para o texto. Juntar pensamentos, consultar a bibliografia, fazer exegese. Procurar o começo adequado, buscar estórias. Dinâmica. O recurso ao Proclamar Libertação.
Só com muita dificuldade se apresentam associações sobre o texto. Afinal, o que ainda se pode descobrir e dizer de novo acerca dessa parábola exemplar da espiritualidade cristã?
As fórmulas ensaiadas: Oremos! Levantemo-nos e oremos! Tiremos os chapéus para orar! Queremos orar! … E nós ficamos calados.
Voz alçada, voz contida, fervor, atitude patética. Jaculatória, oração de petição, oração de agradecimento, oração de intercessão, oração de coleta, oração de mesa…
E agora ainda uma prédica sobre oração. Isso dificilmente poderia ser penoso para o pastor marcado pela rotina. As fórmulas cristãs tantas vezes ouvidas resvalam com facilidade por entre os lábios: animar para a oração. A importância da oração no cotidiano. Deus ouve e atende. Orar e trabalhar. Falar e agir. Graça e ação. Insistir mesmo quando Deus parece calar. Queixas sobre a falta de espiritualidade. Exemplos de preces atendidas. Curas, salvamentos, cartas, fotos, muletas, cadeiras de rodas. Todo o catálogo de artifícios teológicos e pastorais, mil vezes ouvido e pregado de maneira ainda mais frequente.
Para ouvintes menos comuns, o recurso à caixa de truques intelectual: Deus se oferece ao ser humano referido à comunicação e ao diálogo como um Tu. Martin Buber. Mística judaica. Ou, talvez, filosofia cristã primitiva. O ser humano busca sua identidade e, na contingência da sua existência, necessita deste Tu divino que transcende sua comunicação cotidiana e seu diálogo inter-humano.
Quem iria querer protestar depois de uma prédica dessas? Pelo contrário: na certa se garantiria um parco aplauso para uma interpretação teológica elaborada com tanto cuidado!
E, no entanto, ainda vêm as associações, imagens e exemplos: Airton Senna, após sua vitória no Grande Prêmio do Brasil: Não rezo somente no Cockpit. Fico durante toda a corrida em contato com Deus!. Muito bonito. Evidentemente Prost não faz isso, nem os outros que são tirados de seus carros destroçados ou em chamas. Em princípio também poderíamos duvidar se Deus tem interesse por corridas de Fórmula l.
Ou George Bush versus Saddam Hussein. Ambos chamam a seu Deus, invocando seu auxílio na guerra justa (Bush) ou santa (Hussein). Orar pelos soldados americanos, Deus abençoe a América (Bush). Ou: Alá exterminará os infiéis com fogo e espada (Hussein). O ditador iraquiano sobre seus joelhos, na direção de Meca. O presidente americano na igreja. As cidades sagradas sendo poupadas dos bombardeios. Toda a blasfêmia que coloca a Deus em relação com a guerra.
Ou então as muletas nas paredes de muitas igrejas. Os lugares de peregrinação. Maria ajudou. As incontáveis placas onde se lê Por uma graça alcançada. Os anúncios de jornal dizendo Faça isso e aquilo, mesmo sem fé. Publique a gratidão de¬pois de três dias. Os curandeiros e as benzedeiras. Reza, faz isso e aquilo, paga tal quantia que Deus atende. É garantido. Pedi, e dar-se-vos-á…
Pode-se orar por tudo? Também por causa de uma partida de xadrez? O grande mestre internacional Henrique Mecking (o Mequinho), que atualmente está cursando o seminário para se tornar padre, comentou depois de uma partida de xadrez que parecia estar perdida: Foi um milagre. Eu entreguei o jogo nas mãos de Jesus e de Nossa Senhora, e eles me salvaram… Lembrei da Bíblia que diz: 'Orai sem cessar!'. E veio a salvação. Por sorte, o adversário era ateu. O que Deus teria feito, se ambos tivessem orado dessa maneira?
Mas também há outras imagens. Imagens que nos atravessam a pele, que não nos largam, que nos queimam até a alma e que retornam à noite na forma de pesadelos: crianças esfomeadas com barrigas inchadas. Pessoas que estendem suas mãos para o céu e imploram por chuva. E apesar disso as colheitas morrem com a seca. A mãe junto à cama de sua criança doente de morte. Um grito singular a Deus em favor da vida da criança amada. E a criança morre. O desespero dos pobres e abandonados. A miséria das massas humanas nas favelas do Terceiro Mundo. A fé inquebrantável que não quer deixar de acreditar em milagres.
Essas são imagens que acusam, que tranquilizam. Imagens que também desafiam o texto da prédica, que o atacam, não querendo contentar-se com fórmulas cristãs-burguesas e uma retórica piedosa. Pedi, e dar-se-vos-á… Uma prédica que não se coloca diante deste desafio, desta provocação do texto, talvez acabe ficando bonita. Mas mais do que isso também não é. E isso é muito pouco.
2. Comentários exegéticos
A parábola nos foi transmitida apenas por Lucas, que também é ocasionalmente chamado de teólogo da oração. Em todo o caso, Lucas é o primeiro a de¬monstrar um interesse sistemático pela oração. Lucas 11.1-13 pode ser designado um catecismo de oração para cristãos gentios, composto de três ou quatro partes. Um fato interessante é que nos versículos 5-13 não se faz referência ao Pai-Nosso (vv. 1-4). Isso é realmente assim, a menos que se queira compreender a parábola como uma maneira de acentuar o caráter do Pai-Nosso como oração de petição.
Joachim Jeremias (Die Gleichnisse Jesu, 1965) e Georg Eichhol/ (Gleichnisse der Evangelien, 1971) apontaram de maneira expressa para o fato de que os vv. 5-7 devem ser lidos como um único conjunto coeso de frases. Após o v. 7 temos uma cesura. Estes versículos precisam ser compreendidos praticamente como uma única pergunta. Por isso essas parábolas são chamadas de parábolas de pergunta. A pergunta no v. 5 (Qual dentre vós…) talvez ficasse melhor traduzida da seguinte maneira: Vocês podem imaginar se alguém de vocês…. Já por este motivo os vv. 5-7 têm de ser compreendidos como uma unidade, pois é somente no v. 6 que a situação é descrita e se força a resposta indignada: Inconcebível! Totalmente impossível!. No v. 8 o próprio Jesus dá a resposta: Assim é que acontece! Isso é óbvio!. Objetiva-se aí um acordo com o ouvinte. No v. 7 não se tematiza, portanto, uma negociação já ocorrida do pedido. Antes, ele descreve a total impossibilidade de conceber um acontecimento deste tipo. Desta forma, a parábola é marcada por uma correspondência com os costumes da hospitalidade oriental, e é somente através disso que recebe sua completa intensidade.
A parábola ilustra as circunstâncias existentes em uma aldeia palestina. Não há lojas. A dona da casa cozinha pela manhã a ração diária para a família. Três pedaços de pão são a refeição de uma pessoa. Sabe-se na aldeia que ainda tem pão à noite. A hospitalidade é sagrada, e viagens noturnas não são coisas fora do comum. As pessoas vão dormir cedo. Dentro de casa é escuro. A pequena lâmpada de óleo que arde à noite espalha apenas uma luz opaca. A porta fica trancada com uma viga ou uma barra de ferro, que é puxada por meio de uma argola presa à porta. Abrir a porta é trabalhoso e provoca barulho. Pensa-se numa casa que possui apenas uma única peça. A família dorme em uma esteira na parte elevada da casa.
Mas, e se o impossível ainda assim acontece? Se o amigo por detrás da porta trancada não se dispusesse a ajudar? O que acontece quando todo o apelo à amizade dá provas de ocorrer em vão e não encontra nenhum eco? A parábola mantém-se totalmente realista. Essa pergunta é assumida pelo v. 8. Se o amigo não ajuda por causa da amizade, então ao menos o faz para ficar livre do importuno.
A partir disso poderíamos concluir que não é amigo importuno, mas sim o amigo incomodado em seu sono, que está no centro da parábola (esta é a opinião de Joachim Jeremias, que foi seguido por Eberhard Jüngel). Neste caso o v. 8 não representaria uma exortação à oração insistente, descaradamente obstinada, mas aquele a quem se pede concede o que é pedido por sua própria causa. Com isso, um ponto estaria claro: a parábola encoraja para a oração, porque se pode ter confiança em Deus. Deus consente em ser solicitado, mas não se deixa ridicularizar (E. Jüngel, Paulus und Jesus, 1962). Por si mesmo Deus nos concede aquilo de que precisamos.
A isso corresponde o outro exemplo do pai e do filho (v. 11). Nem mesmo um mau pai engana seu filho dando-lhe, em vez do alimento que ele lhe pede, coi¬sas inúteis (pedra) ou até mesmo perigosas (cobra). Nisso Lucas interpretou as boas dádivas como Espírito Santo. Quem sabe, já se reflete aí uma certa experiência, no sentido de que, apesar dos vv. 9-10, nem todo pedido é atendido? Reflete-se, pois, na exortação a pedir o Espírito Santo, uma certa espiritualização da oração? Contra isso a parábola fala do começo até o fim. Em lugar nenhum aparece o problema da oração não atendida. Antes, a ideia é que Deus concede à sua comunidade justamente aquilo de que ela no momento mais necessita: o Espírito Santo.
Assim, quase todos os exegetas chegam à conclusão de que a parábola quer encorajar para a oração. A oração está ligada à certeza de que vai ser atendida. Lucas quer dizer: se nesse mundo um pedido de pessoa a pessoa não fica sem resposta, tanto mais Deus irá ouvir quando o ser humano o chama em seu desespero ou em seus apuros. Em Deus se pode confiar!
3. Consideração adicionais
Certamente não é preciso acentuar que os resultados da exegese tradicional não são muito convincentes. Os pontos animar para a oração — atendimento garantido da oração — Deus atende por vontade própria, não quer ser ridicularizado estão em clara contradição com as associações feitas no começo. É necessário um bom número de artifícios teológicos e palavrório piedoso para salvar resultados deste tipo diante de experiência do dia-a-dia.
A tradicional literatura de meditação está cheia disso. Quem sabe se a tão lamentada fadiga de oração e a fuga que simultaneamente se observa para ritos mágicos marcados pela superstição não tem aí a sua causa mais profunda?
Quase todos os intérpretes têm como ponto de partida a concepção tradicional de que em Lucas 11.5-13 se quer fazer considerações fundamentais sobre a oração. Se é verdade que o próprio amigo sonolento ajuda, tanto mais Deus irá ajudar!
No entanto, é preciso fazer ao menos uma restrição. O texto não trata da oração em termos genéricos, mas de uma forma particular da oração: a oração de petição. Além disso, muitos intérpretes têm como pano de fundo uma certa pré-compreensão daquilo que é a oração: juntar as mãos, fechar os olhos, enviar um desejo ao céu e esperar confiantemente por sua realização.
O texto tem bem outra visão: a palavra grega que em português se traduz com pedir igualmente significa reclamar, exigir, pretender conseguir. Que esta é, com efeito, a intenção da palavra, fica claro na parábola da viúva pedinte (Lucas 18.1-8). Pois esta põe o juiz iníquo exatamente em seu lugar repreendendo-o: Julga a minha causa contra o meu adversário! (Lucas 18.3.) O contexto da parábola como um todo mostra que o juiz não presta auxílio por ser caridoso, mas o faz porque obviamente está assustado.
O mesmo ocorre em nossa parábola: dá na vista o fato de que quase todo o texto fala da ação do hóspede e da possível reação do amigo. O hóspede precisa informar-se sobre quem ainda tem pão; bate à porta no escuro e não aceita uma resposta negativa. Por isso, o famoso v. 9 (Pedi, dar-se-vos-á) certamente tem de ser lido assim: Reclamem, exijam, intervenham e acabarão conseguindo!. Não temos aqui uma oposição de oração e ação, mas oração é ação e vice-versa! Seguramente não é uma coincidência o fato de que Deus só venha a ser mencionado no último versículo da parábola, no contexto do pedido pelo Espírito Santo.
Muitos exegetas condenam esta maneira de ver a parábola como legalista. Contudo, sou da opinião de que esta é a única possibilidade de salvar o texto dian¬te da experiência cotidiana, sobretudo na América Latina. O ponto de urgência não é estender as mãos para o céu em desespero e esperar pelo milagre da chuva, mas sim forçar governos corruptos a providenciar sistemas de irrigação. Qualquer um consegue compreender a mãe que ora junto à cama de sua criança doente, mas também é preciso e urgente lutar por melhores médicos e um melhor serviço de saúde para todos, a fim de que outras crianças sejam poupadas de um destino semelhante. O nó da questão não é escapar da pobreza e da miséria pedindo para ganhar o pré-mio da loteria, mas, sim, acusar quando os parlamentares mês após mês se autorizam milhões de cruzeiros, ao passo que a grande massa do povo que eles deveriam representar tem que viver nas favelas das grandes cidades.
Ademais, não se trata no texto de qualquer pedido, mas, sim, daquilo que é necessário pára a vida. Não cabe pedir pela vitória numa corrida automobilística, sobretudo num país como o Brasil, que possui um dos maiores índices de morte no trânsito. E pedir a ajuda de Deus na guerra nada mais é do que blasfêmia.
Que se deva pedir a Deus pelo Espírito Santo (v. 13) também não é, com certeza, urna coincidência piedosa. Acaso o Espírito Santo não é a força de Deus que impulsiona, que não nos deixa tranquilos, que mantém viva em nós a visão do reino de Deus, do reino de paz e justiça para todos os seres humanos?
4. A prédica
A meu ver, estas considerações deveriam estar no centro da prédica. Isso não deveria acontecer de maneira abstrata, mas com base em muitos exemplos do dia-a-dia. O pregador também não deveria apresentar-se como supercristão piedoso que, por razões profissionais, precisa orar constantemente e, por isso, também sabe orar bem. Suponho que muitos destes pregadores também tenham dificuldades com a oração.
A oração transforma antes de mais nada aquele que ora. Nisto provavelmente reside o seu maior poder. Por isso, para concluir, apresento uma oração de Rabindranath Tagore, um filósofo indiano:
Senhor, dá que eu não peça
para ficar livre do perigo,
mas para defrontar-me com ele sem temor;
que não implore pelo fim das dores;
mas pelo coração que as vence;
que no campo de batalha da vida
eu não procure por aliados,
mas por minha própria força;
que eu não clame por salvação em preocupação e temor,
mas tenha esperança de ser paciente
até que minha liberdade seja conquistada.
Concede-me
que eu não seja um covarde
que só conhece tua graça no sucesso;
deixa-me, porém, sentir a firmeza de tua mão
quando fraquejo.