Prédica: Lucas 12.32-40
Leituras: Gênesis 15.1-6 e Hebreus 11.1-3,8-16
Autor: Martin Volkmann
Data Litúrgica: 12º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 30/08/1992
Proclamar Libertação – Volume: XVII
1. Primeira impressão: surpresas
Os textos sugeridos como leituras para cada domingo formam uma certa unidade; há um elemento em comum entre eles. Com os textos previstos para este domingo, isto não é tão evidente. Entre Gn 15 e Hb 11 este elemento comum é clara mente perceptível: em ambos trata-se de Abraão e Sara, que têm a coragem de confiar e esperar contra toda a esperança. Ele creu no Senhor, e isso lhe foi imputa do para a justiça. (Gn 15.6.) Pela fé Abraão, quando chamado, obedeceu (…). Pela fé, também, a própria Sara recebeu poder para ser mãe, não obstante o avança do de sua idade. (Hb 11.8,11.) Mas o texto de Lc não traz referência alguma a Abraão e Sara, e o tema fé expressamente também não é tematizado. Haverá algo em comum? A reflexão específica sobre Lc 12.32-40 poderá ser enriquecida pelos dois outros textos?
Uma segunda surpresa me veio ao deparar-me com a época do ano eclesiástico, para o qual o texto é sugerido agora e as ocasiões em que o mesmo — ou partes do mesmo — são sugeridas em outras séries: como texto de prédica para o final de ano ou para o último domingo do ano eclesiástico (Domingo da Eternidade). Aí o desafio para a vigilância, para estar preparado diante do fim de algo é sugestivo. Há algo sugestivo neste sentido neste momento atual?
Mas aí surgiu uma nova surpresa, que, aliás, se me apossou com a primeira leitura do texto: Por que esta delimitação do texto? Pois naquelas outras séries toma-se como texto-base apenas os vv. 35-40. Neste realmente aparece com destaque o aspecto do estar preparado e vigilante. Mas, de fato, Lc não inicia a sua narração no v.35. Estes versículos são a continuação de algo anterior. Quem sabe a resposta às nossas surpresas esteja justamente nesta relação com os versículos precedentes?!
2. O texto no seu contexto
O trecho de Lc 11.37 a 12.12 está centrado na crítica de Jesus a fariseus e escribas. Em 12.13 a controvérsia toma um outro rumo (apesar de o cenário permanecer o mesmo), passando a estar centrado em torno dos bens materiais. O pedido de uma pessoa, para que Jesus assuma o papel de juiz numa questão de herança, leva-o a chamar a atenção para o perigo que os bens materiais representam, exemplificado na parábola do agricultor insensato (12.16-21). Este mesmo tema é aprofundado na continuação, contrapondo-se ao agricultor avarento a postura daquele que se entrega confiadamente nas mãos de Deus (12.22-31). Este assunto é encerrado com a pequena unidade vv. 32-34, onde aqueles, que têm a coragem de viver confiantes em Deus, são chamados de pequeno rebanho, de quem Deus se agrada, dando-lhes participação no Reino, e que são desafiados a mostrar concretamente tal confiança desfazendo-se de seus bens, adquirindo, assim, um tesouro inextinguível nos céus.
A seguir é descrita a postura de tais pessoas como sendo uma postura de preparo e vigilância (12.35-40), numa contraposição bem clara ao agricultor avarento que é surpreendido, porque não estava preparado no essencial. O agricultor fora previdente e se preparou. Nisto ele serve como exemplo para o pequeno rebanho. Isto é destacado pela ênfase no preparo e na vigilância necessários também e especialmente para quem vive do essencial (vv. 35-40). Este tema continua nos versículos subsequentes (vv. 42-48), desta vez mais em sentido da surpresa e do pavor para o servo que não assume a postura de vigilância e preparo correta, tornando-se novamente semelhante ao agricultor avarento. Este errou apenas — e isto foi seu erro fatal e nisto ele não serve como exemplo positivo — no fato de ter escolhido o tesouro errado, de ter prendido seu coração no lugar inseguro.
Portanto, os vv. 32-34, que à primeira vista destoam do conjunto, dão-lhe o enfoque correto. Eles são os versículos-chave que unem as duas partes: 12.13-31 (a que prendemos o nosso coração: às riquezas ou a Deus?) e 12.35-48 (as consequências deste apego, preparo e vigilância, recompensa ou condenação).
Embora a temática continue nos versículos subsequentes (41-48), justifica-se interromper no v. 40, porque a seguir o estar preparado é enfocado sob nova perspectiva (recompensa ou condenação).
Destarte a nossa perícope forma um conjunto próprio com a seguinte estrutura: Tese: O Reino é dos pequenos — v. 32.
Consequências:
1. Desprendimento dos bens materiais — vv. 33-34
1.1 — vender os bens — tesouro nos céus — v. 33
1 .2 — o tesouro está onde está o coração — v. 34
2. Preparo e vigilância — vv. 35-40
2.1 — quadris cingidos — lâmpadas acesas — v. 35
2.2 — servos vigilantes à espera do Senhor — vv. 36-38
2.3 — O Senhor vem à hora incerta como ladrão — vv. 39-40
O v. 32 contém a afirmação central. Só a partir daí os imperativos subsequentes (e são vários: vendei, dai esmolas, fazei, estejam cingidos, estai preparados!) podem ser compreendidos corretamente. Entre estes e aquele imperativo introdutório no v. 32 (não temas!) há uma diferença fundamental: enquanto aquele é o prelúdio para o anúncio que segue, fazendo, assim, parte da própria boa nova (cf. Is 41.10; Jr 30.10; 46.27; Zc 8.13), estes imperativos destacam as consequências desta situação nova em que o pequeno rebanho é colocado.
Rebanho é expressão corrente para o povo de Deus (SI 77.20; 100.3; Is 40.11; Ez 36.38; At 20.28; l Pé 5.2s.; cf. também SI 23.1; Ez 34; Jo 10, onde é destacado o correlato ao rebanho, o pastor). Mas se observarmos o acréscimo — pequeno; se tivermos em mente Is 41.14 onde este povo é chamado de vermezinho, de bichinho; se lembrarmos outrossim Lc 6.20ss. — este pequeno rebanho não é apenas pequeno em tamanho, mas é formado pelos pequenos. Não dá para deixar de considerar que Lc colocou este versículo — sem paralelo nos demais sinóticos! — neste ponto, como elemento de ligação entre os dois exemplos contrastantes de confiança (nas riquezas ou no Senhor) e os desafios de vivência dessa confiança (preparo e vigilância). Só os pequenos, os que se desprendem de toda e qualquer autoconfiança, os que não têm outra coisa em que se agarrar — estes ousam atirar-se nos braços de Deus. Estes não precisam ter medo. A estes pertence o Reino (Lc 6.20ss.; 10.9; 11.20; 18.16s., 18.24s.).
A estes pequenos é colocado um duplo desafio em que se mostra sua dependência exclusiva do Senhor e sua vivência escatológica no Reino: desprendimento dos bens materiais (vv. 33-34) — e preparo e vigilância (vv. 35-40).
Vender os seus bens para dar esmola é demonstrar concretamente a que se prende o coração. O coração é símbolo e sede do desejo (cf. Rengstorf, p. 163). Por outro lado, a confiança total no Senhor liberta as pessoas do apego às riquezas e coloca os bens materiais a serviço do Reino. Dar esmolas é sinônimo de ajudar o necessitado.
Onde o coração está com Deus, ele ordena tudo de tal forma que podemos viver totalmente para ele. Viver totalmente para ele é viver do futuro; é estar aberto para o futuro de Deus, que já está dado, embrionariamente, na fé daqueles que vivem totalmente na dependência de Deus. Desse viver do futuro trata a segunda consequência, que é desdobrada em duas partes: preparo (v. 35) e vigilância (vv. 36-40), exemplificada com duas parábolas. Em última análise, preparo e vigilância são dois lados da mesma moeda. Quem está preparado está vigilante e vice-versa (v. 40!).
O preparo é descrito com as figuras da cintura cingida (Êx 12.11) e das lâmpadas acesas (cf. Mt 25.1ss.). Pronto para partir (l Ts 5.2) ou preparado para servir. Não importa. O que importa é que a pessoa esteja desimpedida de qualquer amarra (bens materiais, ansiedade). O servir, em todo caso, está presente na segunda parte, o que demonstra novamente quão próximos um do outro são o preparo e a vigilância.
Aqueles que vivem do futuro são surpreendidos pelo Senhor que vem, assim como os discípulos o foram e o experimentaram no convívio terreno com Jesus (Mc 10.45; Lc 22.24-30; Jo 13.1-11): ele mesmo se põe a servi-los.
Este serviço de Jesus aos que permanecem vigilantes, i.e. não rompem a comunhão, é emoldurado, no texto, com o anúncio da bem-aventurança (vv. 37a e 38b). Ou seja, completa-se, consuma-se aquilo que eles já vivem agora (v. 32; cf. Lc 6.20ss.).
A necessidade do compromisso constante é destacada na segunda parábola (ladrão — cf. l Ts 5.2; 2 Pe 3.10; Ap 3.3). É uma parábola que ajudou os cristãos em todos os tempos a se opor a qualquer calculismo quanto ao futuro (cf. Mt 24.1ss.; Mc 13.4; l Ts 5.1ss.; 2 Ts 2.1ss.). Justamente o entregar-se totalmente nas mãos de Deus, o viver na total dependência dele é que nos torna livres para o serviço e despreocupados com qualquer calculismo. Em outras palavras, preparados e vigilantes, vivendo daquele que é o futuro.
3. O texto no nosso contexto
Em nossos dias marcados por recessão económica, desemprego, inflação, falta de segurança, medo de assaltos, aumento de movimentos religiosos — nesse contexto o anúncio: Não temas, pequeno rebanho! se torna difícil de se dizer. Simultaneamente é por demais imperioso que seja anunciado. Também a comunidade cristã a nós confiada se sente como pequeno rebanho rodeado de ameaças. Também ela é atingida pelas dificuldades econômicas, pelas marcas de morte ao seu redor. Mas ela é ameaçada em especial por ataques de outros movimentos religiosos que proliferam justamente em momentos de crise. Crise não apenas de ordem pessoal por incerteza com relação ao sentido da vida. Mas as crises existenciais inseridas e causadas por todo um contexto global de crise e insegurança.
E aí de novo são especialmente atingidos os pequenos do povo de Deus. Os agricultores que teimam em permanecer no campo e cultivar a terra sem incentivo e sem perspectiva de preços dignos para os seus produtos. Os agricultores que não conseguiram resistir e partiram para os centros urbanos na ilusão de melhores condições. As mulheres e homens sem formação especial que peregrinam de emprego a emprego em busca de um trabalho. Os menores sem condições de participar do direito à formação, que acabam vagueando pelas ruas. Bastam estes exemplos! A ameaça que paira sobre todos esses pequenos é grande. Ameaças de toda ordem: econômica, política, policial e também religiosa. Não é de dar medo?
A boa nova de Jesus consiste justamente em anunciar a estes — pequena comunidade e pequenos na comunidade — o agrado de Deus neles. Eles não têm outra coisa em que se agarrar a não ser em Deus. Por isso, Deus se oferece a eles como única e verdadeira fonte de segurança: O reino é de vocês! Não custa relembrar que este versículo-chave representa a ponte entre aquela perícope do viver despreocupado, em contraposição ao agricultor rico, e nossa perícope que aprofunda este viver na dependência de Deus.
Povo de Deus são aqueles que arriscam depositar toda a sua confiança em Deus. Isso é marca do povo de Deus. Tarefa nossa é proclamar esta oferta de Deus. É anunciar a decisão de Deus: o Reino é de vocês, daqueles que ousam viver na total confiança em Deus.
E aqui se evidencia a relação deste texto com os demais textos previstos para este domingo. Abraão e Sara são exemplos daquela pessoa que arrisca confiar totalmente em Deus. Isso lhe foi imputado para a justiça. Porque o vosso Pai se agradou em dar-vos o seu Reino.
Mas se a boa nova consiste em anunciar o agrado de Deus naqueles que não têm ninguém outro em quem se apegar, também não dá para deixar de destacar que a confiança total em Deus se evidencia no desprendimento em relação aos bens materiais. Ou seja, estar no Reino implica um compromisso de vida em que as nossas posses estão a serviço do Reino. Anunciar o indicativo — o Reino é de vocês! — não nos desincumbe de destacar também o imperativo: vendei, dai esmolas, estejam cingidos, estai preparados. Aí, quem sabe, vale apontar para a prática do repartir que existe justamente entre os pequenos: sempre há lugar para mais um na casa; a pouca comida é repartida e dá para todos. E a partir daí colocar o repartir com a prática condizente com o Reino.
O que dizer da segunda consequência: estar preparado e vigilante? Sem dúvida, este é um dos cavalos de batalha de certos movimentos. Jesus vai voltar — estás preparado? Em que consiste o estar preparado nesta maneira de ver? É um preparo individualista em que o que importa é o compromisso pessoal com Cristo, sem maiores implicações sociais, políticas, económicas. É uma mera relação individual-verticalista.
Sem negar um grão de verdade nisso — o pertencer ao Reino te atinge também como pessoa individual — o estar preparado e vigilante implica um compromisso mais amplo com o Reino. Não é apenas um esperar pelo Cristo que voltará e que assim completará o gozo celestial do indivíduo. É antes trabalhar para que o Reino tome conta de todas as esferas da realidade — social, política, económica, cultural, religiosa — de maneira que Cristo seja tudo em todos. Estar preparado e vigilante, portanto, é engajar-se numa postura que questiona, contesta e anula todas as conse¬quências brutais de um sistema marcado pelo compromisso com o deus da riqueza. Assim, estar preparado e vigilante poderá significar envolver-se com menores de rua, com a luta por um sistema social mais justo, com a luta dos grupos marginalizados (indígenas, negros, mulheres, prostitutas), com viciados, doentes e moribundos.
Em suma, estar preparado e vigilante significa também lutar por um mundo mais humano e mais justo.
4. O texto como base da pregação
Importante é ver o texto no seu conjunto. Nas outras séries onde se seleciona apenas os vv. 35-40 como texto de pregação, em datas que lembram o fim, é sugestivo apontar para a vigilância. Mas em nosso estudo vimos que tais imperativos estão firmemente fundamentados no indicativo do v. 32. Por isso a pregação deve começar ali: com o anúncio da boa nova para o pequenino rebanho. Mas ela também não pode esquecer os imperativos.
Sugiro, pois, seguindo a estrutura do próprio texto, esquematizar a pregação da seguinte forma, aproveitando também a referência aos demais textos:
a) Não temais, pequeno rebanho! O Reino de Deus é vosso.
b) Vivei como habitantes do Reino:
— desprendimento de bens materiais;
— preparo e vigilância.
c) A caminho da concretização do Reino: vivendo da esperança.
5. Subsídios litúrgicos
1. Intróito: Lc 12.32.
2. Confissão de pecados: Senhor Jesus Cristo, Pastor do teu rebanho, obrigado por teres reunido teu povo e lhe teres dado participação no teu Reino. Nós somos o teu povo e queremos permanecer em teu Reino. Mas muitas vezes sucumbimos às tentações de outros senhores: a vida fácil pela fraude ou pelo lucro exagerado; a vida folgada pela desatenção às necessidades do próximo; a vida de luxo pelo apego ao consumo e a coisas supérfluas. Com isso não negamos apenas o teu nome, mas prejudicamos a nós mesmos e também os outros ao nosso redor. Com nossa atitude ofendemos o teu nome e o nome do próximo criado à tua imagem. Mas muitas de nossas atitudes prejudicam também outras partes de tua criação: participamos da extração exagerada de recursos não-renováveis e matamos a natureza com o lixo de nosso luxo. — Isto é a nossa culpa. Isso nós te confessamos e por teu perdão nós te imploramos. Tem piedade de nós, Senhor.
3. Oração de coleta: Senhor, estamos aqui reunidos como teu povo para ouvirmos a tua palavra. Por meio do batismo tu nos fizeste participantes do teu Reino. Por isso voltamos sempre de novo à tua presença para nos conscientizarmos de que tu és o nosso Senhor, e nós somos o teu povo. Ilumina-nos com teu Espírito Santo e dispõe-nos a ouvir o que tu nos tens a dizer. Amém.
4. Intercessão:
— agradecimento pela dádiva do seu Reino;
— pedido por força e orientação para permanecer no compromisso com o Reino;
— intercessão pelos que foram iludidos por mensagens enganadoras de salvação;
— pelos que se iludiram com a atuação da Igreja;
— pelos que sofrem as consequências de uma distribuição injusta da renda;
— pelos doentes, velhos, abandonados…
6. Bibliografia
GRUNDMANN, W. Das Evangelium nach Lukas. Theologischer Handkommentar zum Neuen Testament. 2. ed., Berlin, s/d.
EHLERT, H. Meditação sobre Lc 12.35-40. In: Proclamar Libertação. Vol. III, São Leopoldo, Sinodal, 1978, pp. 351-358.
RENGSTORF, K. H. Das Evangelium nach Lukas. Das Neue Testament Deutsch. Vol. 3, Göttingen, 1969.
VOIGT, G. Meditação sobre Lc 12.35-40. In: Der schmale Weg. Göttingen, 1978.