Prédica: Lucas 13.31-35
Leituras: Jeremias 26.8-15 e Filipenses 3.17-4.1
Autor: Werner Fuchs
Data Litúrgica: 2º Domingo da Quaresma
Data da Pregação: 15/03/1992
Proclamar Libertação – Volume: XVII
1. Observação inicial
Lc 13.31-35 aparece pela primeira vez em PL. É um texto pouco utilizado na pregação e em grupos de reflexão. Não existe sobre ele um trabalho exegético recente publicado no contexto latino-americano. Isso é curioso, sobretudo quando o texto tem uma grande força de expressão própria, pois temas como sofrimento e morte do profeta, lamento sobre a cidade, pastoral urbana, etc. são relevantes não apenas na época da Quaresma. Parece que a tradição marcadamente rural das igrejas históricas marginalizou este texto na vida comunitária. Algo semelhante parece ter ocorrido com os textos complementares Jr 26.8-15 (profecia contra Jerusalém, líderes, templo) e Fp 3.17-4.1 (inimigos da cruz e negadores da esperança). As reflexões a partir do texto inserem-se na necessidade urgente das igrejas descobrirem o cami-nho da roça para a cidade e, na subida para Jerusalém, recuperarem seu ministério profético.
2. Anotações exegéticas
Lc 9.51 a 18.14 descreve a caminhada de Jesus da Galiléia a Jerusalém e é constituído por material exclusivo de Lc e pela fonte Q, a qual pressupõe os anúncios de paixão em Mc (Goppelt, p. 202). Lc 13.31-33 é material exclusivo, os vv. 34-35 têm paralelo em Mt 23.37-39. O lamento sobre Jerusalém é repetido em Lc 19.41ss.
No v. 31, os fariseus são sem dúvida amigos de Jesus, uma especificidade de Lucas (7.36; 11.37; 14.1; cf. Bornkamm, pp. 89 e 142ss.), que, no entanto, também fala da crescente inimizade (7.30; 11.39ss.). Aconselham Jesus a emigrar, talvez até a asilar-se no Egito (cf. Theissen, p. 64). Por isso não estão fazendo o jogo de Herodes Antipas para afastar Jesus de seus territórios (Galiléia e Transjordânia, cf. 23.7), nem atraindo falsamente Jesus para a Judéia, onde o Sinédrio teria mais poder contra ele. A ameaça de Herodes era real, porque este o relacionava com João Batista, a quem decapitou (9.7-9; Mc 6.27). A fuga não delxa de ser uma tentação que Jesus encarou (cf. Mc 8.32s.).
Por chamar Herodes Antipas de raposa (v. 32) ardilosa (cf. Mc 8.15; Ez 13.4), sem dignidade, mas com poderes limitados, já que não consegue detê-lo nem fazê-lo falar no único encontro ocorrido entre eles, em Jerusalém (23.8-9), Jesus faz dele a única pessoa a quem tratou somente com desprezo (Morris, p. 214). Jesus, afinal, iniciou seu ministério no dia em que João Batista foi feito preso político de Herodes (Mc 1.14). Coerente com sua declaração sobre João (Lc 7.26ss.), Jesus não dá mais nenhuma chance a esta pessoa corrupta no poder (cf. 16.31). Herodes, por sua vez, zomba dele, ao perceber que não lhe traz perigo. Não o ajuda contra o Sinédrio e o manda a Pilatos, reconciliando-se com este (23.lis.). Herodes é inimigo do Reino, sim, mas não o único, e talvez nem seja o principal. Pois a palavra de Jesus não é dita diretamente a ele, mas torna-se uma advertência aos fariseus, que não vêem que pela sua atitude são eles que trarão a morte a Jesus (Rengstorf, p. 174).
As indicações de dias nos w. 32 e 33 (cf. Os 6.2s.; l Co 15.4) servem para resumir a atividade de Jesus de ensinar (v. 22), curar e libertar (Fitzmeyer, p. 566), e para mostrar que ela é limitada no tempo e direcionada no espaço (Jerusalém). As curas, p. ex., em dia de sábado, provocaram a ira da teocracia judaica (w. 14s.). Terminarei ou: serei consumado, como em Jo 5.36; 17.4; 19.28; Hb 2.10; 5.9, refere-se ao cumprimento da missão salvífica de Jesus (também para os gentios, w. 29s.). O interesse de Lucas está em destacar a necessidade teológica dessa viagem ou marcha profética: paixão e morte acontecem em Jerusalém e por meio de Jerusalém (Fitzmeyer, p. 565).
No v. 33 o contudo é enfático e reforça a necessidade, a determinação (cf. 22.22) de caminhar (êxodo, 9.51; sem ter onde reclinar a cabeça, 9.57s.; 10.38; 13.22). O tom é irônico: Herodes não seja invejoso, pois Jerusalém tem preferência em derramar o sangue de profetas (Jerome, p. 147). A maioria dos profetas assassinados e apedrejados (11.47ss.; 2 Cr 24.20ss.; Mq 1.1; Jr 1.1; 26.20ss.; l Rs 18.4; Jesus, o filho de Ananus) provinha do campo, e os movimentos contra o templo eram sufocados com ajuda dos romanos (Theissen, pp. 86s.). Manassés matava vários profetas por dia (cf. 2 Rs 21.16 e Josefo, Ant. X). Será que Jesus se entendia como profeta? Na resposta ao Batista (7.22), em que menciona obras que Elias também realizou, transparece a autoconsciência de Jesus (cf. 4.14; 7.39), mas Jesus se entendia como maior do que Salomão e Jonas (11.29ss.). Ao dizer que pode morrer em Jerusalém, Jesus revela ter a paz de saber que sua eventual morte não destrói sua obra, e sim a faz culminar (Rengstorf, p. 174). Ou seja, com a subida a Jerusalém ele busca não sua morte, mas a decisão final para o projeto do Reino de Deus.
A repetição de Jerusalém(v. 34) indica sentimento profundo de lamentação, de tristeza, ao passo que a expressão quantas vezes provavelmente é citação de uma palavra de sabedoria (cf. o envio repetido, contínuo, de profetas, 11.49), não servindo, pois, como prova de que Jesus estivesse várias vezes em Jerusalém (Bornkamm, p. 143). De Jerusalém vinham pessoas para ouvir a prédica de Jesus (5.17; 6.17), mas suas reações eram diversas (6.7; 7.30; 11.45; etc.). A galinha com sua ninhada é uma metáfora sugestiva de maternidade, em que a ternura e proteção se combinam (cf. Dt 32.11), descrevendo a graça, a grande novidade do Reino (Fitzmeyer, p. 578). É necessário dar atenção aos verbos reunir (os filhos de Jerusalém, os pintinhos errantes) e querer (eu quis — vós não quisestes! cf. 5.39).
Os comentaristas não analisam satisfatoriamente o vós. Refere-se Jesus indistintamente a todos os moradores? Aos fariseus, interlocutores de Jesus? Ou tem em mente as vítimas do vós, impedidas por grupos poderosos de vir a ele? Ou é o próprio povo que quer o mesmo que querem os vós? Da resposta a essas perguntas depende a definição da casa que ficará deserta (v. 35; cf. Jr 22.5; 26.12). É o templo? A cidade toda (Theissen, pp. 86s.)? Ou todo o povo judeu que ficará sem Deus? Se esboçarmos uma análise estrutural do texto e nos atermos ao v. 17, bem como aos episódios da morte de profetas e de Jr 26.8-15, fica claro que Jesus distingue classes opostas: os líderes religiosos (seus adversários), o povo (os filhos da cidade, dependentes, vítimas) e os poderosos políticos que podem, conforme o interesse, aliar-se com um ou outro lado ou usar a ambos. No caso do processo contra Jesus, líder de um movimento interiorano, o poder político acaba apoiando o Sinédrio (23.24).
O v. 35 faz referência à entrada triunfal (19.38) ou à parusia? A citação do SI 118, costumeiramente recitado como recepção a peregrinos na Festa dos Tabernáculos, dá ao versículo uma conotação messiânica (aquele que vem, cf. 7.19). Se pensarmos na igreja primitiva (não mais me vereis), que deve perseverar em meio à perseguição (Jerome, Morris), a segunda vinda é o sentido mais lógico. Mas uma visão paradoxal da entrada triunfal é também cativante: Jesus espera a aclamação, mas já sabe que será negado, o que lhe confirma o desafio da paixão (Rengstorf). Todos terão que aclamá-lo com júbilo como mensageiro qualificado de Deus, mas haverá um tarde demais, e terão que lamentar-se a si próprios (23.28), o que confere uma densidade cominatória ao versículo (Fitzmeyer, p. 579).
3. Meditação
Vamos enfrentar! Nosso costume de interpretar textos e elaborar um discurso a partir dele leva à ação? Na maioria das vezes leva à satisfação (e à saturação) tanto do comunicador como do ouvinte. Dever cumprido: mais uma mensagem, um estudo, uma assessoria apresentadas, mais um culto, encontro ou curso frequentados. Falar e ouvir parecem ser o principal. Deveria, porém, ser apenas o começo e o reforço da militância. Jesus rejeita especulações teóricas (quantos se salvarão? — v. 23) e considerações de segurança pessoal (v. 31) com a afirmação da ação (cf. v. 24a: lutai; 14.25ss.). Enfrentar é preciso (decisão, obediência, compromisso com o Reino). O problema é como conduzir a comunidade à ação sem se deter em considerações de ordem especulativa certamente existentes, nem em preocupações de segurança e bem-estar pessoal que o sistema impõe. Que atividades de curar e libertar acontecem nesta época de Quaresma, envolvendo a comunidade toda (p. ex., arrecadação de recursos para obras de solidariedade, visitação a lutas populares, apoio à Campanha da Fraternidade da Igreja Católico-Romana). A saúde da pregação depende desse compromisso conjunto de pregador e comunidade, senão estarão ambos mancando com as duas pernas (l Rs 18.21): a fé e a vida. Além disso, Jr 26.8-15 mostra a que consequências pode levar o compromisso com o Reino.
Esse desafio antes pastoral que homilético se depara com uma dificuldade conjuntural: diante da força desagregadora do modelo hegemónico no país e no continente, de complexidade neo-liberal, a força de mobilização dos movimentos populares e das lutas sindicais e políticas sofre uma forte recessão. Muitas vezes há mais caciques que índios (perdão aos primeiros donos desta terra!). Particularmente na cidade, a desagregação social é fortíssima. As próprias igrejas estruturadas, apesar da credibilidade de que desfrutam, de acordo com o Ibope, não mais conseguem reproduzir-se. São raros os modelos de pastoral urbana razoavelmente bem-sucedidos. É preciso reinventar a roda, começar quase do zero, criar espaços para cada pessoa dizer a sua palavra, mover-se do centro do poder para a periferia, andar alguns quilômetros com o povo (24.13ss.). A subida a Jerusalém depende da descida à periferia, inclusive aos marginalizados dentro da própria comunidade. Jerusalém era o centro do poder religioso (templo, mas protegido por Pilatos, sobretudo quando afluíam peregrinos, p. ex., galileus — Lc 13.1ss.), e como tal também centro de poder político, protegido pelos romanos. Theissen diz que Jerusalém não era uma polis no sentido jurídico, mas sim cidade no sentido sócio-ecológico (p. 83). Nas cidades de hoje, o religioso cedeu, mas o poder econômico e político está mais forte do que nunca, sobretudo por causa da capacidade de manipular a opinião da maioria sobre as causas e soluções dos problemas urbanos.
Em meio às contradições e aos conflitos o pregador precisa perguntar quem são os filhos da cidade. Não escapa à comparação, sugerida pelo texto, com os pintinhos: as vítimas em potencial e de fato, os favelados, periferia, drogados. Apesar de ser uma metáfora do mundo rural, a pastoral urbana à moda da galinha revela a natureza da ação de Jesus e inspira para uma ação pastoral idêntica. Não obstante algumas conotações negativas que possa ter atualmente (p. ex., a choca como super-mãe), a galinha conduz sua ninhada para onde há alimento e a protege contra tempestades e aves de rapina. Portanto, ao enfrentar, ao enviar para o mundo a serviço de Deus, corresponde o reunir por amor, buscar, proteger, para que a casa não fique vazia (v. 35) e sim lotada (14.23), para que haja alegria (Lc 15.7) e comunhão (At 2.42ss.), louvor. O cristocentrismo da mensagem é evidente e essencial e, por pressupor a penetração inevitável do Reino (w. 20s.), a metáfora também mantém a dimensão do tarde demais (cf. v. 25), da casa deserta, da propriedade abandonada.
4. Subsídios litúrgicos
Jogral adaptado do texto Parábolas do Sul da índia (Mt 23.37), de J. Gnanabaranam, Uma Nova Dança, S. Leopoldo, Sinodal, 1970, pp. 13s.
1 — Foi há anos que, numa cidade industrial do Sul da índia, ouvi num alio falante dogmas hindus serem contrapostos à fé cristã.
2 — A caminho com dois amigos alcancei finalmente uma sombra fresca. Sentamo-nos debaixo de uma figueira.
1 — De repente mexeram-se os galhos, caíram folhas, e olhamos para cima. Na árvore morava uma família de macacos.
2 — Um pequeno filhote de macaco agarrava-se com bracinhos e perninhas em sua mãe, e com este peso a mãe saltava de galho em galho.
l — Meu amigo hindu, da seita vadacalai, falou:
3 — O que acabamos de ver explica a minha religião. Deus é como esta fêmea de macaco, o homem como o filhote. O macaquinho não conseguia saltar sozinho até o galho distante. Agarrou-se firmemente à mãe e desta maneira foi transporta do para lá. A alma do homem por si só não pode alcançar o céu, ela precisa agarrar-se em Deus. Se ela não alcançar o céu, ela própria é culpada…
2 — Quando íamos adiante, vimos ao lado de um rancho uma gata branca que levava na boca um lindo gatinho.
l — Meu outro amigo, da seita tencalai, disse:
4 — O que acabamos de ver explica a minha religião. Deus é como esta mamãe gata, o homem como o pequeno gatinho. O gatinho não é capaz de correr sozinho a um lugar distante. Por isso sua mãe o carrega na boca. A alma do homem por si só não consegue entrar no céu. Deus precisa levá-la ao céu, e ele leva só aquela que ele quer…
2 — Caminhando adiante, chegamos ao pátio de uma fazenda, o qual uma galinha atravessava com seus pintos. Os pintos viam sua mãe papar grãos e a imitavam.
1 — De repente a galinha chamou seus pintos. Eles vieram rapidamente e se esconderam sob suas asas.
2 — Olhamos para cima e vimos o gavião sobrevoando o pátio. Agora entendemos por que a galinha chamou os pintos. Eu disse:
1 — O que acabamos de ver explica a minha fé cristã.
2 — Meus amigos hindus perguntaram:
3 + 4 — Gomo isso explica a tua fé?
2 — Então eu respondi:
1 — Jesus é como esta galinha e os homens, como os diferentes pintos. Não podemos agarrar-nos em Deus com força própria como o filhote de macaco, e Jesus também não usa violência conosco como1 a mamãe gata com seu gatinho.
2 — Jesus chama os homens como esta galinha chama seus pintinhos. Quem não ouve seu chamado e rejeita sua ajuda perece por sua própria culpa. Ele é co¬mo o pinto que não atenta para a choca e é comido pelo gavião. Quem, porém, ouve o chamado de Jesus e o segue encontra proteção junto dele como os pintos sob as asas da galinha.
1 + 2 — Meu Jesus, tu estás diante da porta do meu coração e bates. Tu não entras à força. Com minhas ações miseráveis não posso agarrar-me a ti, não posso conquistar tua graça. Agradeço-te por teu chamado e teu convite e pela proteção debaixo das tuas asas. Amém.
5. Bibliografia
BORNKAMM, G. Jesus von Nazareth. 9. ed., Stuttgart, 1971.
BROWN, R. E. et alii. The Jerome Biblical Commentary. Bangalore, 1972, vol. II, p. 147.
FITZMEYER, J.A. El Evangelio Segun Lucas. Tomo III, Madrid, 1987, pp. 563-583.
GOPPELT, L. Teologia do Novo Testamento. Vol. I, São Leopoldo/Petrópolis, 1976, pp. 202-212.
MORRIS, L. L. Lucas — Introdução e Comentário. São Paulo, Mundo Cristão, 1983, pp. 214-216.
RENGSTORF, K. H. Das Evangelium nach Lukas, NTD 3. Göttingen, 1968.
THEISSEN, G. Sociologia da Cristandade Primitiva. São Leopoldo, Sinodal, 1977.