Prédica: Lucas 14.7-14
Leituras: Zacarias 7.9-10 e Hebreus 13.1-8
Autor: Vítor Westhelle
Data Litúrgica: 15º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 20/09/1992
Proclamar Libertação – Volume: XVII
1. A regra e a exceção
Regras de etiqueta podem ser a redenção ou a perdição. Saber manuseá-las, acostumar-se a elas, usar a expressão, a roupa, o gesto, a atitude correta no momento correto pode nos livrar do rubor de uma trapalhada. E quando bem usada uma regra de etiqueta certamente recompensa. Quem não considerou isto antes de um convite formal? Regras de etiqueta são sérias. Costumam não ser escritas, mas são legítimas. Escapar delas, desafiá-las, ou simplesmente ignorá-las, costuma causar embaraços, aquela situação incómoda de quem sabe, sem que ninguém lhe precise dizer, que deu um fora. Nestes foras o humor de agora e de sempre se alimenta e o orgulho se afoga. Vale para a etiqueta a mesma regra que se aplica à legislação: pleitear ignorância não isenta da culpa.
Você sabe como largar o garfo e a faca quando terminada a refeição? Você sabe que deve dizer um obrigado da última vez que entrega a cuia, quando já não quer mais o chimarrão? Tudo regras de etiqueta, aguardando sua adesão. Quando conhecidas, são facilmente administráveis. O problema está em situações inusitadas quando você se dá conta de que algo saiu errado ao ouvir: não conhece seu lugar?; ou: sabe com quem está falando? Voltam aquelas lembranças terríveis da infância quando você esqueceu aquela regrinha que seria logo lembrada com a pergunta: filho, como é que se diz?
Aqui ou ali, a questão é ser esperto. Esperto é quem conhece e movimenta-se com desembaraço dentro das regras de etiqueta de um certo grupo.
Falo de etiquetas porque parecem ser o assunto dos versículos 7-11 do texto de pregação. Jesus observa os convidados a uma refeição na casa de um fariseu. Trata-se de uma ocasião formal em que as regras para tomar lugar à mesa deveriam obedecer claros, mesmo que não escritos, critérios de acordo com a posição social dos convidados. Como estas regras não são absolutamente fixas, encontrar um lugar de honra à mesa também significa um reconhecimento formal, de parte dos convivas, da posição social que um convidado venha a ter ou pretenda ter. Daí porque Jesus observa que os comensais buscavam os primeiros lugares. Jesus comenta a atitude contando o que o texto (v. 7) diz ser uma parábola, sugerindo que se busque os últimos lugares para ser com honra convidado a assumir um dos primeiros lugares, ao invés de com rubor ser tirado de um dos primeiros lugares para dar lugar a alguém mais importante, restando então apenas um dos últimos lugares. Esta é a primeira parte do texto.
Regras de etiqueta à mesa não são algo incomum nem exclusivas do judaísmo de então. Um conselho esperto, muito similar ao comentário de Jesus, encontramos em Pv 25.6-7. Do Rabi Simeão ben Azzai (110 d.C.) temos a seguinte regra:
Coloca-te dois ou três assentos abaixo do lugar a que terias direito e senia-te até que te digam: Venha mais para frente. Não comeces por ocupar lugares mais à frente, porque pode ser que te digam: Volta para trás. É melhor que te digam vem, vem do que tenhas de escutar afasta-te, afasta-te.
Alguns manuscritos antigos inserem um texto semelhante com o mesmo sentido após Mt 20.28:
Quando chegais a um banquete ao qual vos convidaram, não ocupeis os lugares de honra, para que não apareça alguém mais digno do que tu, e o mestre do banquete venha a dizer-te: Fica ali mais em baixo, e te cubras de vergonha. Mas se ocupares um lugar inferior e chegar uma pessoa menos digna do que tu, o mestre do banquete te dirá: Chega-te mais para cima, e isso será vantajoso para ti (trad. Bíblia de Jerusalém).
Em função destes textos paralelos, Rudolf Bultmann considera os vv. 8-10 um texto tão profano e (…) uma típica regra de esperteza, que é de se admirar como tal fragmento chegou a ser incluído entre as palavras de Jesus. Já por isso, não o qualifica como parábola (v. 7). Aí estaria o evangelho a serviço de um conselho pragmático, ensinando regras de etiqueta para melhor habilitar os discípulos a se comportarem com esperteza em situações que certamente não eram muito corriqueiras ou familiares para pobres e marginais pescadores, poupando-os de embaraços e situações constrangedoras. Fosse este o sentido do texto, restaria ao pregador ensi-nar algumas regras básicas da lei de Gerson: levar vantagem em qualquer situação. Significaria ensinar alguns truques de falsa modéstia, fazer-se de humilde para ser exaltado. Mas, embora o contexto da experiência a que se refere o texto seja o da etiqueta, há motivos suficientes para afirmar seu sentido parabólico.
2. O carnaval dos estropiados
A discussão em torno do texto é a de se ele pode ser considerado uma parábola do Reino ou se é um pragmático conselho de etiqueta. Duas observações devem aqui ser feitas. A primeira é de que existe uma diferença notável entre o texto de Lucas e as regras de etiqueta nos textos que lhe são comparados. Sobretudo no texto de ben Azzai, mas também no manuscrito apócrifo de Mateus 20.28, a questão central está no cálculo que o comensal deve fazer para ficar um pouco abaixo do que representaria seu status social e ganhar a honra de ser convidado para uma posição um pouco mais elevada. Por detrás deste conselho esconde-se um cálculo de risco e benefício que certamente incluía a possibilidade de que o mestre do banquete não notasse que o convidado estava um pouco abaixo de sua honra. Neste caso a perda não seria grande. Por isso ben Azzai sugere dois ou três assentos abaixo e o texto apócrifo de Mt 20.28 sugere apenas um lugar inferior. O que está pressuposto nestes textos é que o problema se situa entre a posição social de uma pessoa, seu status, e o reconhecimento desta posição em um evento social, no caso, um banquete. A regra de etiqueta consiste em tirar o melhor proveito, ser o melhor possível reconhecido em função do status da pessoa na sociedade.
O texto de Lucas prescinde deste cálculo de risco e benefício. Não discute qual seria o lugar de reconhecimento devido da pessoa. Radicaliza as opções e fala apenas de ocupar o primeiro lugar e então ser humilhado, ou ocupar o último (eschaton) lugar e ser exaltado. Esta falta de graduação, este pouco caso com as regras de hierarquia, que se estabelecem entre status e reconhecimento, indicam que este texto, ao contrário dos paralelos citados, não possui o seu forte na instrução eficaz para tirar proveito das regras de um cerimonial, mas destaca a oposição entre honra e humilhação, tão somente no seu sentido mais radical, servindo como ilustração parabólica para um dos favoritos ditos de Jesus: Quem se exalta será humilhado e quem se humilha será exaltado (Lc 14.11; 18.14; Mt 18.4; 23.12). Por isso, este texto pode ser considerado uma parábola conforme é anunciado no v. 7, posto que estabelece, a partir de um exemplo do cotidiano, de uma experiência da vida, um ponto de comparação com o Reino.
O segundo motivo pelo qual a interpretação de que este texto seria apenas uma esperta instrução sobre etiqueta deve ser rejeitada em favor de uma interpretação parabólica, encontra-se no contexto imediato em que está inserido. Em Lucas, segue-lhe nos vv. 12-14 (ainda parte da perícope deste domingo) uma comparação sobre dois tipos de hospitalidade: o convite em função da retribuição (ricos que irão recompensar ao hospedeiro) e o convite aos estropiados, àqueles que não poderão retribuir. Em Mateus, onde manuscritos incluem uma parábola semelhante à de Lc 14.8-11, o contexto imediato é a do pedido da mãe de Tiago e João para que estes assentem-se nos lugares de honra do Reino. Ainda em Lucas, segue a este texto a parábola da grande ceia. O núcleo destes textos orbita em volta à questão dos últimos e dos primeiros, de quem serve e de quem é servido. O propósito da parábola está em ilustrar os valores do Rreino usando regras de etiqueta, mas radicalizando-as ao absurdo, para mostrar que estes valores invertem as regras estabelecidas pela sociedade. O reino é a festa, é o banquete da ressurreição dos pobres, dos aleijados, dos coxos e dos cegos. O reino é dos que pelas regras sociais estabelecidas estão à margem, é dos tolos e desvalidos, dos loucos e estropiados, das crianças e dos alijados que fazem um desvairado carnaval escatológico invertendo as regras, vivendo a impossível exceção.
3. A sorte de hospedar anjos
Últimos no texto não indica apenas um lugar social, não é apenas o lugar em que se encontram os que são objetos da caridade e da filantropia. Os últimos não são o subproduto lamentável da ordem estabelecida, dignos de pena e compaixão, uma anomia na funcionalidade. Para o evangelho os últimos são o eschaton, não o babado de nossas convenções, mas o fim da história, ou se quisermos, desta pré-história da humanidade. Os últimos, os pobres, desvalidos, loucos e estropiados são a linha do horizonte, o fim de um mundo e o começo de um novo. O lugar dos últimos é lugar do juízo, o lugar onde o velho vira novo e a morte ressurge em vida, o lugar da graça e da maldição. Por isso, é o lugar da epifania. É a margem que vira centro, que vira eixo em torno do qual gira a sorte do mundo.
À ignorância dos sábios e a fraqueza dos fortes não está apenas em criar os últimos, em criar a pobreza e a marginalidade, mas em pensá-los como margem, como periferia de um centro mais ou menos organizado. Então, exploração e filantropia são duas faces da mesma moeda, da mesma atitude que, por “bons” ou maus motivos, é incapaz de ver nos últimos o fim da história, o eixo em torno do qual gira a sorte do mundo.
O erro fatal do cristianismo que se viu enleado nas malhas do poder desde Constantino é o de confundir diaconia com filantropia, ao invés de entendê-la como missão, como possibilidade de evangelização. No primeiro século da era constantiniana, João Crisóstomo levantou sua voz de denúncia contra os recém criados centros de atendimento aos pobres (xenodokia), por tornarem impessoal o atendimento aos últimos, por atendê-los, mas não entendê-los como o eixo em torno do qual gira a sorte do mundo, por não tê-los diretamente como palavra evangélica de interpelação. A denúncia dos profetas, representada neste domingo pelo texto de Zacarias, lembra que o juízo é resultado da opressão da viúva, do órfão, do pobre e do estrangeiro. O texto da epístola, Hebreus 13.1-8, ressalta o mesmo aspecto, afirmando que quem trata ao oprimido como se fosse também oprimido tem a sorte de acolher anjos (v. 2), mensageiros do novo, surpreendentes evangelistas.
Com estas observações creio que a parábola emerja para nós como um chamado para atentar aos últimos que anunciam do horizonte em que estão o fim desta ordem de coisas, anjos que anunciam o novo. Estar com eles, escolher um lugar junto a elas, permite já' vislumbrar o novo que se estende além da linha do horizonte, a vida que surge do outro lado de quem vive a morte.
4. 500 anos de evangelização
Estamos em meio à celebração dos 500 anos de conquista da América, a alguns dias do 12 de outubro em que nos lembramos do início de uma história de espoliação e genocídio que trouxe uma cruz esposada da espada. O novo mundo é a terra dos confins, a terra dos últimos. Seus habitantes são os Lázaros do banquete europeu, néscios nas crónicas oficiais, gente sem alma para quem explorá-los era missão cristã e civilizadora, ou crianças imaturas na visão de juristas mais benevolentes. Mas a quem ocorreu chamá-los anjos? Quem os pensou como últimos, anunciadores de um novo mundo, evangelizadores da Europa? São 500 anos de evangelização que caíram em ouvidos moucos. Pior! 500 anos em que se chamou evangelização a supressão da palavra e da vida de anjos. 500 anos de um engodo magistral em que cristãos escolheram os primeiros lugares e chamaram de missão o calar a voz de quem a vida e a morte era e é anúncio de juízo e de graça.
Na memória dos 500 anos de conquista está a história suprimida de 500 anos de evangelização, 500 anos de anúncio trazendo notícias que a conquista classificou de tolas, ingénuas e bárbaras e as confinou a reservas, posses, acampamentos, vilas, aldeias e favelas de estropiados. Aí estão mulheres, homens e crianças demarcando o horizonte desta civilização. São os últimos, mas são também os primeiros. São o juízo e são anúncio de graça. Quem os acolhe, talvez mal o saiba, tem a sorte de acolher anjos.
O documento final do 1° Encontro de Obreiros do COMIN (Conselho de Missão entre índios da IECLB), intitulado ','A Máscara índia de Deus, nos fala desta máscara no sentido em que o autor da carta aos Hebreus fala de anjos. Convoca a comunidade de Jesus Cristo a reconhecer o Deus que aparece no seu contrário, que se esconde na fraqueza e na miséria (…) atrás da máscara dos povos indígenas (…), que grita (…) através dos clamores indígenas. O documento encerra com esta conclamação:
Erguernos nossa voz, porque já não podemos calar. Erguemos a máscara índia de Deus, porque fomos enviados a anunciar um evangelho que leva o jeito da Cruz. Já não a cruz gloriosa e adornada com as flores da conquista. Queremos apontar à Cruz da paixão e de todo o pavor, a Cruz da hora sexta da escuridão dos povos desta terra.
Mirem-na, pois está a revelar o Deus oculto na infâmia. Atentem para a máscara índia de Deus. Ouçam o grito que dela vem, para que não venha a ser sentença de maldição.
Somente a justiça, o arrependimento de mãos, corações e mentes, o gesto solidário de amor serão capazes de sustar uma condenação. Ainda é tempo. É, sobretudo, hora oportuna de praticar RESSURREIÇÃO!
5. Bibliografia
BULTMANN, R. Die Geschichte der synoptischen Tradition. 8. ed., Göttingen, Van-denhoeck & Ruprecht, 1970.
COMIN. A Máscara índia de Deus. Mimeo, São Paulo 24/11/90.
GRUNDMANN, W. Das Evangelium nach Lukas. 3. ed., Evangelische Verlagsanstalt, Berlin. 1964.
MAJOR, H. D. A. et alii. TheMission and Message of Jesus. New York, Dutton, 1956.
RENGSTORF, K. H. Das Evangelium nach Lukas. 7. ed., Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1959.
TIEDE, D. L. Prophecy & History in Luke-Acts. Philadelphia, Fortress, 1980.