Prédica: Mateus 10.26-33
Leituras: Jeremias 20.7-13 e Romanos 5.12-15
Autor: Vítor Westhelle
Data Litúrgica: 5º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 04/07/1993
Proclamar Libertação – Volume: XVIII
1. Geena: onde se perde a alma
Geena, que Almeida traduz por inferno no v. 28 do texto de Mateus, é um vale ao sudeste de Jerusalém onde ocorriam sacrifícios a Moloc. Moloc era um ídolo de bronze, divindade dos amonitas, com cabeça de touro e braços humanos que, estendidos, recebiam o sacrifício de crianças. No seu interior, ardia um fogo que aquecia o bronze e queimava as crianças colocadas vivas nos braços do ídolo. Para que os pais não ouvissem os gritos das crianças, sacerdotes tocavam címbalos, crótalos e tambores enquanto prosseguiam as imolações. Com Josias (2 Reis 23.10) foram abolidos os sacrifícios, mas o vale continuou sendo conhecido como vale dos filhos da lamentação, lamentos de pais que nos filhos sacrificados viam esvair-se sua própria linhagem e sua descendência.
Mais tarde foi lá que o lixo de Jerusalém, as carcaças de animais mortos e os corpos de criminosos executados e não sepultados eram jogados. Por combustão espontânea, devido ao lixo, ou por incineração dos corpos, para que a putrefação não impregnasse o ar, o fogo continuou sendo associado ao vale dos filhos da lamentação, à geena de fogo (Mateus 5.22).
Quando Mateus usa o termo, sua acepção vernácula é equivalentes a Hades, o lugar da punição após a morte do pecador irregenerado. Mas, no imaginário do povo judeu, ao qual Mateus se dirigia, o lamento dos pais ante os gritos de crianças sacrificadas, afogado por címbalos e tambores, ainda ecoava e no olfato estava o cheiro de corpos sendo queimados.
É esta imagem composta de gritos, lágrimas e fedores que o evangelista usa para descrever a única coisa que devemos realmente temer: geena, e não a morte. No texto paralelo de Lucas (12.4-5), que deve ser tido como mais original, esta ideia está claramente soletrada. Não se precisa temer quem mata o corpo e nada mais pode fazer. Temer é preciso a quem, depois de matar o corpo, pode também lançá-lo na geena. Por quê? Em Lucas a resposta não é dada de forma explícita. Mas quem não reconheceria que o terrível dos terríveis está não na morte, mas na morte ignominiosa, na morte sem sentido, na morte que não deixa um nome, nem mesmo em uma sepultura. Daí a brutal comparação entre crianças sacrificadas, cujos pais choram um choro afogado na música de sacerdotes, e criminosos irregenerados, cujos corpos não merecem a terra. Estas são as mortes sem sentido, a condenação inelutável que consome a alma.
A geena, desde o segundo século antes da presente era, já virara substantivo comum para designar o lugar em que a morte é mais morte, o lugar em que da morte restam apenas as lamentações de crianças e de criminosos, em que a morte tomou os primeiros, antes que a vida começasse a ter sentido, é aos segundos porque lodo o sentido lhes foi negado pelo opróbrio.
Influenciado por categorias filosóficas gregas, que Lucas ignorava, Mateus introduz a ideia da alma para tentar expressar o que é a mais-morte de que fala o texto. Fica afastada uma ideia dualista de uma alma que, à maneira de Platão, habitaria um corpo-prisão. O que o evangelista quer expressar com alma neste contexto assemelha-se ao que poderíamos chamar de personalidade, as características únicas de uma pessoa que a ela ficam vinculadas de tal forma que a morte física não consegue desatar.
Na Dinamarca camponesa, ainda é costume que, após um enterro, o povo reúna-se no centro comunitário da vila. Em meio a comes e bebes, começam-se a contar histórias da pessoa falecida. Após algumas horas em que o corpo morto ressurge nas narrativas de sua vida, o povo volta a suas casas e alçam-se as bandeiras que desde o falecimento haviam sido hasteadas a meio-pau. Não é esse também o sentido mais profundo das orações memoriais nos cultos, ou das missas de 7° dia? Não são estas um testemunho da alma?
Alma é o significado perene de uma vida que pode ser até mesmo enaltecido com amorte física. Não se trata da imortalidade de um órgão chamado alma que subsiste ao desaparecimento do corpo. Alma, neste sentido que é usado em Mateus, não tem vida. É apenas o registro de uma vida significativa, as pegadas que vão ficando na caminhada. Morrer ou ser lançado na geena é perder a alma, a terrível experiência da falta total de memória, de um registro de uma vida que, de uma ou outra forma, tenha tido significado, um significado que transcende ao próprio fim individual.
2. Medo: o criador de deuses
Imbuídos do espírito da modernidade, rejeitamos como fantasiosa a ideia da alma e nos refugiamos no indivíduo atomizado. O indivíduo é a mais nova criação, dizia Nietzsche. Dentro da existência deste indivíduo decidem-se vida e morte. Para nós é difícil conceber a ideia hebraica de estar no sheol, como Jó, enquanto,biologicamente a vida se sustenta. Talvez estranhos ou exóticos não sejam os que falam de alma ou que imaginam uma geena que no seu fogo consome mais do que a vida. O conceito de vida como uma entidade individual, como quando dizemos uma vida, a vida humana ou tantas vidas, é uma criação bastante recente do ocidente. Não vem de antes do início do século XIX. O exotismo é antes nosso. Quantificamos a vida. Temos sobre ela controle como em nenhuma outra era da humanidade. Podemos manipulá-la, transformando até mesmo seu código genético. Reduzindo-a a um sentido biológico, perdemos a alma, e aprisionamos o corpo, ainda quando clamamos estar ganhando vidas (Mateus 16.26). As sociedades modernas, ainda mais que no tempo de Mateus, estão construídas sobre o medo do corpo e da vida a ele confinada. Da tortura à pornografia, dos manicômios à piedade salvacionista, da manipulação genética ao sistema de saúde, do sistema penitenciário à esterilização da mulher, enfim, da coação à recompensa, tece-se a malha do medo sobre os limites do corpo. Sistemas complexos e impenetráveis controlam as relações humanas, oferecem recompensas a quem se ajusta funcionalmente a eles e punem a quem se desvia. Justiça é ajustamento. E esta incrível máquina funciona porque é sobre o medo do corpo, simultaneamente individualizado e massificado, que se sustenta sua legitimidade. Paradoxalmente, é o enaltecimento do corpo individual que possibilita o seu controle social.
É a isso que aponta o texto de Mateus. Em volta do versículo 28 que trata da geena organiza-se o argumento do que significa vida em seu sentido mais pleno, vida que vai além e já está aquém da existência biológica. A isto, a esta mais-vida, o texto de Mateus dá o nome de alma.
A questão central desdobra-se em torno do quesignifica medo. O verdadeiro objeto deste medo deveria ser a geena, o lugar que consome a alma. O que o texto aqui afirma é o mesmo que encontramos adiante em 16.25. Quem quer apenas salvar a vida, perde a alma. Assim há duas. qualidades de medo que frequentemente não são distinguidas. Um é o imediato da morte. Outro é o do desaparecimento da alma. Um medo muita contra o outro. 0 primeiro medo é resultado do pecado. É o medo que produz a escravidão, de quem se sujeita para não perder a vida, ou não ter o corpo confinado. A este medo o texto de Mateus contrapõe o medo de perder a alma, o temor da geena. E o texto vai mais longe: sugere que quem cede ao medo imediato da morte acaba por perder sua alma. É por isso que o caminho ao inferno sempre o mais fácil. O inferno é um atalho para a vida. Mas a vida do corpo escravizado.
Quando a geena perdeu seu sentido literal, tornando-se substantivo comum, sobreviveu como símbolo do temor maior. E a questão do texto é fundamentalmente esta: como escapar da geena. E a resposta vem clara, O contexto é o de um mundo ao qual os discípulos são enviados e que os espera com ameaças e perseguições. Sistemas de dominação sustentam-se no medo, da morte do corpo. Ceder a estas ameaças, ocultar-se e proteger-se, manter p evangelho em segredo porque o mundo é atroz, equivale a perder a alma. Para Jesus, que ainda falava em oculto e por parábolas (13.13), agora havia chegado a hora de vir a público. O envio missionário acontece no contexto da perseguição e só nele faz sentido. A verdade do evangelho não está em si própria, mas no seu anúncio enquanto este implica risco e ousadia, vida que conquista quem arrisca o limite. O evangelho só pode ser compreendido quando há situação de conflito entre a defesa da vida e a defesa da alma: Quem acha a sua vida, perde-la-á; quem, todavia, perde a vida por minha causa, acha-la-á (10.39). Um antigo ditado latino diz que é o medo quem primeiro fez os deuses.
O sentido dos versículos 29-31 é de reforçar a ideia de que o núcleo da existência humana não se esgota em sua existência temporal e finita, mas está no valor que Deus atribui a esta existência. No versículo 29, pardais eram os mais baratos animais oferecidos no mercado. No versículo 30, os fios de cabelo são, por sua quantidade e irrelevância para a sustentação biológica da vida, algo que parece nem contar (embora esteticamente há quem os julgue assaz importantes). Mesmo aquilo que parece mais insignificante não acontece sem o consentimento divino (cf. Salmo 139). Por que não aceitar que a existência humana seja algo de inestimável valor? Viver na confiança de que o que conta mesmo é este valor, é o que liberta o ser humano i para, em meio ao risco e ao conflito, postar-se publicamente em favor do evangelho. Quem vive nesta confiança preserva sua alma.
Os versículos finais retomam o motivo inicial. Confessar a Cristo publicamente é viver na confiança de que o valor que temos transcende o medo que sentimos ante as ameaças que sofremos. O medo de nossa finitude é que nos faz também perder a alma. Daí a referência ao Pai que está nos céus: a garantia da sustentação da vida em seu sentido mais amplo não está em si própria, na sua constituição biológica. Está na fé que pela coragem sustenta a liberdade. Só é livre quem transgride as regras que escravizam o corpo, quem põe em jogo a própria vida.
3. Os textos
Os textos litúrgicos que neste domingo acompanham Mateus podem ser facilmente incorporados nesta linha de pensamento. Jeremias 20.7-13 traz claramente a mesma preocupação. Nos versículos 7-10 temos a dramática queixa de um Jeremias zombado, ludibriado, perseguido em meio a uma situação de violência e opressão. Nela encontrava-se o profeta porque confiou, deixou-se seduzir por Javé. Jeremias parece não ter saída a não ser a renúncia de sua confiança. Tinha mais é que começar a pensar em si próprio. O medo o espreita. Sente a solidão, o pavor da finitude. Não pode mais. Mas ceder ao medo, na linguagem de Mateus, seria perder a alma. Então, numa virada surpreendente na composição do texto, Jeremias se reencontra nos versículos 11-13, cantando um hino de louvor e confiança em Javé. O risco, a dor, a perseguição, as injúrias, nada havia desaparecido. Mas apesar de todas as evidências, que o próprio profeta havia arrolado no início do texto, ele encontrou sua força num salto de fé, de confiança de que a justiça de Javé se fará verdade. Jeremias encontrou sua integridade, sua alma, quando além de si mesmo e de suas lamúrias simplesmente ousou confiar. Lamúrias e queixumes são lembranças da geena, onde a alma se consome e sacerdotes tocam címbalos e tambores que sonegam o terror.
Romanos 5.12-15 traz, no seu núcleo a assimetria entre a obra de Adão, que legou à humanidade a condenação irrevogável à morte, e a abundante graça da obra de Cristo, que vem a muitos. A assimetria está em dois pontos. Primeiro, Adão é singularmente responsável pela condenação à morte até mesmo dos que explicitamente não transgrediram a lei. Cristo oferece a liberdade da lei aos que, escravizados pelo medo da morte, buscam pela lei dela preservar-se, tornando-se justamente por isso escravos da morte. Segundo, a obra de Adão afeta universalmente toda a humanidade; a de Cristo é livre oferta de vida que supera, embora não rescinda a morte. Para usar a linguagem de Mateus, a graça de Cristo é o que nos preserva a alma, mesmo ou justamente em face à morte do corpo. A lei que condena é o instrumento do pecado que, visando preservar da morte, escraviza o próprio corpo. Ela é a imposição de uma heteronomia, de uma ordem que, imposta (pela tábua ou no coração, Romanos 2.15) para a proteção, escraviza para a perdição. De um pedagogo transmuta-se a lei em algoz.
Os três textos podem ser relidos sob esta ótica. Que tipo de compromissos aceitamos no nosso cotidiano, em que somos sujeitados ou sujeitamos pelo aparato do medo? Não é parte do cotidiano aceitarmos resignados as ordens do sistema e das instituições, desde a família até ao Estado, passando pela igreja e pelo trabalho, pelo temor de termos nossos corpos punidos ou pelo prazer que nos vem ao custo da alma, da integridade, da liberdade? Não é parte do cotidiano submetermo-nos a outros, na família, na igreja, no trabalho, ou no Estado, pela ameaça da punição que controlamos ou pêlos favores que institucionalmente podemos oferecer?
Em um conto de Mário Benedetti, A Vitória dos Vencidos, a oposição entre a lei do algoz que sujeita o corpo e a vitória da alma que ousa a transgressão, mês mo ao custo da vida, lembra histórias que, nem sempre tão dramáticas, são parte de nossa opção cotidiana, que balança entre a liberdade da alma e a sujeição do corpo.
Há mortos no crepúsculo e mortos no ardor do meio-dia. Mortos que se deitam e mortos que se levantam com o sol. Adolescentes que puseram no seu último sorriso toda a fé na vida e na sobrevida. Mulheres que pariram seu sacrifício, lhe deram nome e o amamentaram. E quando soou a metralha, o cobriram com seu lindo corpo para que se salvasse. E o sacrifício se salvou. A duras penas, mas se salvou. Por isso, porque em uma comarca equivocada e cinza onde ninguém é capaz de oferecer dez minutos ou dez pesos, estes homens e mulheres imortais e sóbrios foram capazes de doar sua vida, por isso sua derrota está ligada à terra. E germina e renasce com bandeiras e sonhos que flamejam em promessas alegremente cumpridas.