Prédica: Mateus 10.34-42
Leituras: Jeremias 28.5-9 e Romanos 6.1b-11
Autor: Marli Lutz
Data Litúrgica: 6º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 11/07/1993
Proclamar Libertação – Volume: XVIII
1. Introdução
É incomum lidarmos com textos como este. São do tipo que não mandam dizer. Provocam o confronto. Colocam-nos diante de uma situação de vida bem concreta, que exige definição clara. Como não há meios-termos para uma resposta, implicam mudança de vida, de valores e conceitos. De repente, tudo o que construímos e até somos se torna relativo.
Pregar este texto ou trabalhá-lo com grupos de estudo não deixará de ser incomodo. Afinal, ele faz tremer os pilares sobre os quais boa parte de nossa vida está construída.
2. Não temais os que matam o corpo…
O contexto maior em que estas duas perícopes estão inseridas (Mt 10), trata das tarefas decorrentes do chamado e do envio dos discípulos. A ação' destes tem um caráter messiânico, por ser um desdobramento da própria ação de Jesus (Mt 9.35). É por isso que recebem poder para executar sua tarefa (Mt 10.1). É interessante que este poder, para fluir e fazer efeito, precisa ser conquistado. Não é poder mágico, nem tapa-furo do tipo assistencialista. É gratuito, mas não é amostra grátis. Só que a sua conquista não será pela força e pelo poder dos fortes. As curas de Jesus indicam outra direção:
Jesus reconhecendo imediatamente que dele saíra poder, virando-se no meio da multidão, perguntou: Quem me tocou nas vestes? Filha, atua fé te salvou… (Mc 5.30,34).
Receptores/as deste poder curador e libertador são os/as que por ele buscam insistentemente. São os/as que, de fato, necessitam dele; os/as que não têm alternativa ou, como no caso da mulher enferma (Mc 5.25ss.), já esgotaram seus meios e alternativas.
É um poder que se manifesta no encontro com outro poder: o do clamor, o do grito. Estes clamantes seriam mediadores/as deste poder, enquanto receptores dele.
Outro elemento importante aparece no final do capítulo, quando Jesus dá uma definição destes que são os/as multiplicadores/as ou repassadores/as deste poder (Mt 10.42). No início, os chamados discípulos não são caracterizados de forma clara. Qualquer um é discípulo. Para os dias atuais isto não seria novidade. Até insistimos em afirmar que todos são discípulos. Não que isto deixe de ser uma verdade. Mas o perigo é que a proposta decorrente de discipulado assim interpretado se restringe a um compromisso mais ético do que social.
No final do capítulo, o texto faz questão de retomar o assunto, deixando bem claro, por via das dúvidas, que mediadores do evangelho e seu poder são os pequeninos. Discípulos são os pequeninos, e como declara o Sermão do Monte: os humildes de espírito, os que choram, os mansos, os que lutam pela paz e justiça… São sal e luz também!
O capítulo todo está muito bem estruturado: do chamado ao juízo.
1. Chamamento e envio dos discípulos (vv. 1-4).
2. A partir do anúncio do núcleo do evangelho, que é a chegada do Reino de Deus, se desdobram as tarefas práticas. Sem estas, o anúncio se torna inconsequente. O convite ao evangelho implica uma prática coerente com a luta pela vida digna (vv. 5-15).
3. Este anúncio, com a prática curadora e libertária decorrentes dele, rompe com a tradição judaica. É um desafio que inaugura um novo tempo. O texto deixa clara esta ruptura e as consequências para quem não a assume (vv. 15,23,32,33 e 42).
4. Não tenham medo. O pavor da rejeição e perseguição está presente. Jesus os envia para dentro de uma realidade cheia de conflitos. O enfrentamento é inevitável. Ninguém quer morrer. A experiência de tantos conflitos na Palestina, inclusive a destruição do Templo em Jerusalém, deixou feridas abertas. Nada mais humano do que temer. Mas o desafio permanece em pé e até se radicaliza:
Não temais os que matam o corpo e não podem matar a alma…
5. A estrutura do capítulo quer sugerir uma certa sequência. Chegou-se ao auge do que representa este confronto resultante deste envio. O cenário dos vv. 34-39 traz à tona a denúncia profética de Miquéias (7.1-7). Chegou o momento do juízo de Deus: Não vim trazer a paz, mas a espada. A ação missionária dos discípulos tem como consequência este juízo. Ele vai acontecer dentro de uma realidade de paz aparente, paz forçada: a pax romana. O juízo vai romper com esta paz, falsa, construída pelo império da perseguição, império da morte. A espada rompe com toda a paz construída a partir de interesses e poderes de pessoas e grupos na sociedade, sejam judaizantes ou outros. Ë para dentro desta fornalha que Jesus envia. A ruptura está diante da porta. É inevitável.
O envio dos discípulos não é um mero caminhar. Ele tem destinatários e destino. Não é empenho em torno de si e para si. Não tem nele promoção própria. É promoção do Reino e do Deus deste Reino em Cristo. É missão. Envio é missão encarnada.
3. Vim causar divisão…
Ë interessante que Jesus destaca, em meio a tantos conflitos existentes no âmbito social, o conflito na própria família. É nela que começarão os dissabores. Parece ser a porta de entrada para o que vem, como se fosse uma prova de fogo. Relativizando a família, Jesus balança com os pilares das estruturas sociais, culturais c eclesiais. Sem a família o mundo, tal qual está estruturado, desmoronará. E, se a família exerce um papel fundamental na construção e manutenção das relações humanas, tão mais importante é o papel da mulher dentro dela.
3.1. Ainda hoje, este é o lugar da mulher…
O papel atribuído à mulher na família é o de assegurar as relações humanas. Ela educa tal qual foi educada. Ela repassa o que recebeu. Ela mesma reproduz o patriarcado do qual é vítima.
Superficialmente, seu papel é de destaque. Mas, nas raízes, aparece profunda contradição da rainha-escrava. Dizem que por trás de um grande homem há sempre uma grande mulher. Ora, o lugar da mulher na família está, nesta frase, muito bem definido. Dizem também que a família é o abrigo da mulher. Na realidade, a família (generalizando) é mantenedora e portadora da opressão da mulher. O abrigo é cela e cilada. É onde ela é presa e por onde cai na armadilha. Refiro-me principalmente à violência contra a mulher. Ela está cada vez mais alarmante.
Uma pesquisa em Rio Branco(AC) sobre a violência contra a mulher nas páginas policiais dos jornais locais apontava que em torno de 80% dos atos de violência contra a mulher não são praticados na rua, pelo marginal. Eles acontecem no seio da família, no abrigo. Quem a pratica é o marido, o pai, tio, irmão, primo, como também o namorado.
Isto não é novidade. Até mesmo a Bíblia registra a violência contra a mulher, praticada pela família, desde tempos muito remotos. Tamar é estuprada por seu irmão (2 Sm 13.1-20); o levita entrega sua concubina aos homens para que dela abusem sexualmente a noite inteira (Jz 19).
3.2. Eis aí teu filho; eis aí tua mãe!
Jesus rompe profundamente com este modelo de família. Quem são minha mãe e meus irmãos? E eles o chamavam de louco! Hoje, talvez o internariam num hospício.
Haverá chances para um novo? Como e quando o patriarcado terá fim? Conforme o evangelho de João (19.25-27), aos pés da cruz nasce uma nova família. A mãe e o filho, que se assumem mutuamente como família, não terão mais a necessidade de reproduzir relações de desigualdade entre si. Jesus não é mais o louco. É o Messias crucificado, que foi filho e irmão.
Esta nova família é também a nova comunidade. O papel da mulher, nesta nova família e comunidade, terá sido diferente. Em pleno momento de marginalização da mulher e centralização do culto e do poder nas mãos dos homens (final do séc. I d.C.), há este grupo que não entrega os pontos. Achar caminhos que se abrem permanece como desafio para nós em nossa prática pastoral. Qual é o modelo de família que vivemos e proclamamos? Que papel a mulher tem dentro dela?
4. Envio: para o alternativo? para o modelo tradicional?
A discussão em torno de nossa missão como obediência a um envio deve ser retomada. Os ares estão confusos. Há muita neblina. A ideia de comodismo é assustadora e, também, tentativa. Onde estão os ideais? Aspectos da vida, de nossa vida pessoal e familiar, entram em jogo. O texto bíblico questiona profundamente. É claro: a vida digna é um direito. É promessa sagrada. Como podem se completar a luta por este direito pessoal e a luta pelo direito coletivo? O pessoal não está impedindo o coletivo? Será que não toma posse de nós um momento em que nos voltamos para nosso irmão, nosso pai, nossa mãe ou filhos/as, um momento em que nos fechamos em família?
— … Que sonho bom! Salário garantido no final do mês, abonos, carro, casa grande… E uma realidade que mais parece conto de fada, porque: No barraco da vizinha nasceu mais uma criança; que não morra antes do tempo, esta é sua esperança…
— … Pô, tenho cinco anos de teologia, e vocês vêm com este salário de fome? Vejam meu sacrifício; tantos cultos, tanta dor de cabeça com tantos problemas, tanta coisa… e agora ainda tenho que pagar a luz e a água! Querem o que mais? Preciso de garantias, tenho direitos…
Certo dia se falava em pastoral alternativa. Que mistério será esse? É claro que estamos em busca de novos modelos de missão. Por enquanto, eles são cobrados das paróquias que economicamente entram em parafuso e se tornam dependentes de auxílios, os quais são concedidos à medida que estas apresentam propostas alternativas, com um conceito de missão mais avançado. De repente, tem que fazer um trabalho na vila para conseguir a grana. Ora, hipocrisia. Quem somos nós? Que discipulado é o nosso? Estagnamos numericamente, nossa cor será eternamente branca e os conflitos passam do lado de fora da porta! Até quando? Sem dúvida, um grande desafio está à nossa espera. Um deles é nos libertarmos do discurso. No exterior, somos Igreja-exemplo no que diz respeito ao trabalho popular, na missão em meio aos setores oprimidos da sociedade. Lá fora, somos igreja avançada. Internamente, a discussão da casa nos ocupa bastante. Nossa tendência é reforçar a estrutura.
Se damos ouvidos às palavras de Jesus, que são polemicas e conflitantes, temos também que nos perguntar: Como vamos romper com a casa? O texto bíblico desafia para um novo. Anima a beber da água do fundo do poço. A primeira ruptura se dá com o individualismo, cela de nossa prisão domiciliar e eclesial. Nosso mundo é ampliado, e apesar de nossas fraquezas e limitações, somos credenciados/as para a missão.
Na divisão está nossa chance. Na perda dessa nossa vida (Mt 10) que na realidade é um mundo do faz-de-conta, temos o encontro marcado com a vida. Aos pés da cruz se dá este encontro. É ponto de encontro dos/as pequeninos/as que se propõem a seguir caminho. É ponto que marca a partida desses/as que se identificam na cruz e não mais em si mesmos. A cruz é a linha divisória entre o medo e comodismo e o temor e esperança.
Uma face do comodismo também pode ser o fato de minimizar as experiências, mesmo pequenas, que vêm acontecendo em todos os cantos do país. O nada foi feito é a desculpa para nada fazer. O descrédito é arma contra a ação. Assim como os/as pequeninos/as são a mediação do evangelho, também as pequenas coisas são a mediação da prática que traz frutos sadios e maduros.
Arriscar o risco e dosar entre teoria e práxis parece que continua sendo um caminho confiável. Ensaiar a esperança com temor e fé no Cristo Ressurreto sempre há de representar um ganho para a comunidade, para o corpo da Igreja.
Os/as empobrecidos/as não são a Igreja ainda. Aos poucos, estão se tornando Igreja. Muitos sinais ainda vão ter que ser gerados. Rupturas farão parte do parto. O patriarcado precisa ser vencido. Ele impede a missão. A exploração do trabalho e a injusta divisão dos frutos são parte de um sistema que tem que morrer. Isto não é coisa do outro mundo. Já está acontecendo. Exemplos não faltam. Talvez falte coragem para pisar mais firme neste chão.
5. Este texto bíblico requer um balanço de nossa atuação
A responsabilidade como enviadas e enviados pesa sobre nós. É compromisso a ser cumprido. É algo que vai além de ser porta-vozes. Discípulas e discípulos são instrumentos de Deus. Através delas e deles, Deus se faz presente: Quem vos recebe a mim recebe, e quem me recebe, recebe aquele que me enviou. É o desafio maior do qual devemos ter consciência. O puxão de orelhas é para todos/as; acho que começa pelos que fizeram e fazem deste chamado sua profissão e seu meio de vida. Começa por nós, pastores/as, agentes de pastoral. Suspeito de que o mal do nosso comodismo começa no exato momento em que profissionalizamos o envio.
Também o chamado leigo é cobrado. O que impede que ele/a assuma a sua tarefa, não para ser um/a manda-chuva na comunidade, mas para colocar seus dons a serviço dela?
Por outro lado, acontece um certo abuso a respeito do trabalho das mulheres. Chegamos a um momento de sub-profissionalizar a função da esposa de pastor, só que, como vivemos num sistema patriarcal, este trabalho por ser de mulher não é remunerado, é voluntário. Por que este trabalho não é partilhado e assumido pelos leigos/as? Por outro lado, quando o/a pastor/a se tornará supérfluo na comunidade? Olhando a partir do contexto desta região (DERN/RO), percebe-se que manter um/a agente, de pastoral (pastor/a, catequista, assistente comunitária) será privilégio de paróquias maiores e com maior poder econômico. Quanto às outras, ou encontram alternativas, ou terão que sobreviver sem o acompanhante religioso.
6. Bibliografia
– BONHOEFFER, D. Discipulado, São Leopoldo, Sinodal, 1980.
– Estudos Bíblicos n°26 — VV AA. — Petrópolis, Vozes/São Bernardo do Campo, Metodista/São Leopoldo, Sinodal, 1990
– TRILLING, W. O Eyangelho segundo Mateus, Petrópolis, Vozes, 1968.