Prédica: Mateus 11.25-30
Leituras: Ezequiel 34.1-2 (3-9) 10-16 e Romanos 8.9-13
Autor: Louraini Christmann
Data Litúrgica: 7º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 18/07/1993
Proclamar Libertação – Volume: XVIII
1. Introdução
Nesta minha análise, eu passo imediatamente ao texto. Parece-me que o próprio texto se presta exatamente à divisão que tento fazer. Sugiro que, no estudo comunitário deste texto ou na prédica, sejam seguidos os itens desta análise: oração, convite e declaração — levando em conta os questionamentos colocados em cada subitem. É muita coisa. O texto, de fato, é carregadíssimo de aspectos. Vejo duas opções para a prédica ou estudo em grupo/comunidade: priorizar algum aspecto conforme a necessidade da comunidade, ou fazer uma sequência em três situações seguidas, nas quais haja tempo para o aprofundamento de cada aspecto. Cada estudo deveria indicar para o próximo a partir dos questionamentos levantados, especialmente quanto à atualidade da oração, do convite e da declaração de Jesus.
2. Jesus ora
Para começo de conversa, Jesus reza. Ele conversa com Deus, porque ele precisa também desta dimensão. Mas e nós? Quantas/os de nós, por nos sentirmos pessoas melhores não nos sentimos mais nem responsáveis por uma conversa dessas, e nem capazes. Afinal, sabemos tudo e tudo conseguimos com nosso próprio esforço. A dimensão da oração, o colocar-se à disposição de Deus num diálogo carregado de humildade e sinceridade, nós deixamos sempre para depois. Este texto começa por esta dimensão. E é Jesus quem o faz.
2.1. Que Senhor é este com o qual Jesus conversa?
Esta dimensão não está, de jeito nenhum, desligada de outra qualquer. Jesus, na caneta de Mateus, transforma-a também em confissão de fé. Esta faz questão de dizer que este Deus ao qual Jesus recorre em oração é o Pai, Senhor do céu e da terra. (Que Jesus também considera Deus uma mãe está claro em toda a sua vivência.) E isto é tudo. Toda a história do Gênesis, que confessa o Deus Criador e toda a história do Êxodo que confessa o Deus Salvador, percebo nessa confissão.
2.2. Por aquele tempo
Também percebo a necessidade de Deus ser invocado à base desta confissão, quando Mateus introduz nossa perícope com por aquele tempo. É dentro daquele tempo que Jesus ora. É o seu tempo, bem concretamente localizado dentro da história, que determina também a reza de Jesus, como também deve determinar a nossa.
Mateus fala a partir da briga que tem dentro de sua comunidade. Está estabelecido um conflito com o judaísmo dos fariseus e escribas. No Evangelho inteiro, o conflito com os fariseus e escribas é definitivo (Estudos Bíblicos n° 26, pp. 16-17). José Comblin baseia-se em Mt 6.1-8, 12.38-42, 13.10-16, 16.1-12, 21.33-45, 23.1-19 para comprovar isso, e especificamente em 10.17-23, para lembrar a assembleia de Jâmnia entre 55-90, na qual os judeus excomungaram os cristãos. Os escribas e fariseus diziam-se herdeiros exclusivos da tradição da lei de Moisés.
Mateus, então, tem esta forte necessidade de requisitar toda a história do povo de Israel como herança das comunidades cristãs. O Senhor do céu e da terra é o Senhor das comunidades cristãs por aquele tempo, por aquele lugar, por tudo. Mateus requisita a história para sua comunidade, tirando do baú as coisas velhas e colocando a novidade do evangelho de Jesus Cristo, mesclando o velho e o novo (13.52). Requisitar também hoje com e para as nossas comunidades a história do povo de Deus, bem como também toda a história recente, com costumes, cultura e tradição, é um imperativo que salta também deste texto para os nossos dias.
O destaque está no Reino dos céus, que não tem uma dimensão meta-histórica, mas real e concreta. Céu é antítese de Jerusalém. Comprova-o todo o Evangelho (Estudos Bíblicos n° 26, p. 41), como por exemplo 6.33, e especialmente o recado de Jesus a João Batista, lembrando o retorno à vida dos cegos, coxos, mortos e pobres (11.4-5), e o resgate de Is 42.1-4, quando o profeta pleiteia pela causa da cana quebrada e do pavio que ainda fumega (12.18-21).
Se por aquele tempo Mateus tem a sensibilidade de perceber a história de sua comunidade, nós somos desafiadas/os a perceber a nossa história por nosso tempo e, a partir desta história, ler a palavra do Senhor do céu e da terra. A nossa terra e a nossa compreensão de céu têm outros senhores, sempre em menor quantidade e mais poderosos. Reverter esta situação é uma necessidade sempre mais premente para a comunidade cristã. O Senhor do céu e da terra quer ser Senhor de fato, e não só em nossas rezas de domingo.
2.3. O motivo do louvor: Deus oculta mensagem de sábios e entendidos
Qual é a ordem estabelecida? É aquela que impõe leis somente através das quais a pessoa é considerada justa perante Deus. Tais leis são manipuladas conforme o desejo dos escribas e fariseus, subordinados, por sua vez, ao poder do templo e do palácio. Mateus traz inúmeras informações a este respeito, especialmente ao longo do capítulo 23. Encontramos aí um Jesus denunciando, por exemplo, que eles dizem, mas não fazem (v. 3), amarram fardos pesados nos ombros do povo, os quais nem eles estão dispostos a carregar (v. 4), e destacam da lei o que é sem importância e omitem o essencial (w. 23-24). Mateus ainda nos informa que praticam a caridade e rezam em lugares públicos (6.1-18), amam as riquezas (6.24), fazem-se passar por profetas, operando sinais e prodígios (24.24), enganando a muitos (24.11).
Parece que os discípulos foram sendo contagiados por esta ideologia. Mateus fala para os que estão na tentação da mensagem dos escribas e fariseus (Estudos Bíblicos n° 26, p. 9). Jesus tem a necessidade de dizer: Acautelai-vos da doutrina dos fariseus (16.12). Os discípulos, inclusive, entram em conflito quanto a quem seria o maior do Reino dos céus (18.1), quem seriam os primeiros (20.21), merecendo, assim, uma séria advertência por parte de Jesus. A justiça tem que ser infinitamente maior do que a dos escribas e fariseus (5.20). Toda a lei depende do amor a Deus e ao próximo (22.27-40). Não obedecer a meros ritos estabelecidos não conta nada. O que conta é o assassinato, o adultério, a prostituição, que é um tipo camuflado de assassinato (15.19). Tal discurso derruba barreiras em favor do povo e ergue barreiras contra as elites. Para os escribas e fariseus, tal Messias era a negação de seu programa religioso, baseado nas elites morais e religiosas (Est. Bíblicos n° 26, p. 17). Conforme o nosso texto, Jesus louva Deus por ele ocultar da elite, os sábios e entendidos, a sua proposta. Antes do nosso texto, Mateus levanta a discussão contra a cidade, monopólio político e religioso que destrói a vida (11.20-24). Os sábios e entendidos são responsáveis por isso, passando a não receber a revelação divina.
2.4. E quem são os sábios e entendidos de hoje?
Ora, são os representantes da ordem estabelecida, as elites morais, religiosas, econômicas e políticas, tão hipócritas quanto as de então. Não precisamos entrar em detalhes quanto a isto.
2.5. Outro motivo de louvor: Deus se revela aos pequeninos
Os pequeninos recebem a revelação de Deus. São os únicos que recebem as bem-aventuranças. Os sábios e entendidos não têm este privilégio. Isto muda muita coisa. Não é um mero detalhe. Jesus subverte mesmo. Ele próprio é subversão na sua maneira de chegar, de viver e de morrer. E parece que o povo percebe isso muito bem, porque é às multidões que ele precisa falar constantemente, porque estas o seguem. Elas é que são luz, não as elites da lei, do saber e do poder (5.14-16): É também às multidões que ele envia os discípulos para ressuscitarem mortos, purificarem leprosos, expelirem demônios: os males que afligem os pequeninos. Esses estão nus, famintos, sedentos e presos. Provendo vida em toda esta situação de morte, os discípulos estarão provendo vida ao próprio Jesus (25.31-46).
Jesus usa o exemplo do cúmulo da pequenez, da fraqueza e da dependência — uma criança —, para dizer que é deste jeito que se herda o Reino (19.13-14). Eu quero dizer de novo que este também não é um mero detalhe. É total subversão da ordem. O Reino dos céus, pelo qual se pleiteia à base da lei, dos ritos, dos impostos, enfim, da submissão ao código estabelecido pela ordem dominante, este já é dos pobres (5.3). Não tem o que tirar nem pôr. Não dá para cumprir a lei, desprezando a qualquer um destes pequeninos (18.10).
Entre os pequeninos estão também as mulheres. Mateus não foge disso quando coloca cinco mulheres na genealogia de Jesus (Mt 1). E todas elas, de uma maneira ou de outras, são consideradas impuras perante a ordem estabelecida. Estrangeiras, prostitutas, mães solteiras e mulheres pobres têm aí um enorme desafio de dar uma virada no jeito de construir a sociedade.
2.6. E quem são os pequeninos de hoje?
É preciso dizer mais? As pessoas leprosas e endemoninhadas estão por aí travestidas de desnutridas, angustiadas, desempregadas, mão-de-obra barata e escrava. As pessoas famintas e sedentas são as mesmas hoje. As mulheres continuam sendo oprimidas. A ordem estabelecida pelas leis hoje continua pisando sobre a vida, apelidando de vida aquela que sobrevive milagrosamente ao salário mínimo, cada vez mais mínimo. Continua o sacrifício de crianças. Prossegue o choro das Raquéis (Mt 2.13-18). Persevera o grito por socorro. Continua a nossa responsabilidade enquanto comunidades cristãs, que têm por missão levar o socorro a todas as nações (Mt 28.18-20).
3. Jesus convida
Jesus quer aliviar os pequeninos, fazendo-os carregarem o seu fardo. Os pequeninos são convidados a tomar sobre seus ombros o jugo de Jesus (v. 29). Mas nós já não estamos cansados/as e sobrecarregados/as demais? Que fardo é este que o povo precisa carregar além de tantos outros?
De que fardo Mateus mais fala? Do fardo imposto pelos sábios e entendidos, o fardo dos escribas e fariseus, o fardo do templo de então, submissão ao imperialismo daquela época. É deste fardo que Jesus quer livrar. O seu fardo e o seu jugo são outra coisa. O quê?
3.1. Existe jugo suave? Existe fardo leve?
Conforme o dicionário (MEC 1975), jugo é sinônimo de canga, submissão, opressão e autoridade; fardo é vulto, embrulho grande e pesado, pacote, carga, sofrimento, trabalho. Mateus usa também a expressão fardo em 23.4, onde fala da opressão que escribas e fariseus impõem ao povo. Em Lucas, Jesus diz o mesmo em relação aos intérpretes da lei (Lc 11.46). Em At 15.10, Pedro, falando da lei em relação aos gentios, diz que esta é um jugo que não se pode carregar.
Para Mateus, tudo passa pela prática da pessoa. O critério definitivo de Mateus é a prática (Est. Bíblicos n° 26, p. 19). A própria atuação de Jesus define-se pela prática. Nem todo o que diz: Senhor, Senhor! entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos céus (…) pelos seus frutos os conhecereis (Mt 7.14-21). O arrependimento, que requer uma prática libertadora e consequente perdão, é mais importante do que qualquer lei. A misericórdia e o perdão, pois, são o critério. Devem falar mais alto do que qualquer holocausto ou sacrifício (9.9-13). É preciso buscar a justiça (6.33). O resumo de tudo é amar a Deus e ao próximo (22.34-40). Ora, se na velha concepção da lei valem os sacrifícios, e os consequentes vitoriosos são os sábios e entendidos, os escribas e fariseus, os mantenedores do templo e do palácio, então na concepção de Jesus, onde valem mais a misericórdia e o perdão, serão vitoriosos os que mais necessitam dela. Portanto, os pequeninos. Se, conforme a lei, não se pode colher espigas no sábado para saciar a fome, conforme o critério da misericórdia e da liberdade, o sábado não conta, prevalecendo o estar saciado (12.1-8). E este é o texto que segue imediatamente ao nosso.
Estes são o jugo e o fardo que Jesus quer impor. São o fardo e o jugo que valorizam o pequenino, que, na verdade, será fardo e jugo para os sábios e entendidos. Conseqüentemente, esses terão que prescindir de seus privilégios.
O meu jugo é suave, diz Jesus, falando da suavidade do perdão e da misericórdia. O meu fardo é leve, diz ainda, falando da leveza da justiça e da liberdade.
3.2. Como anda hoje a suavidade do perdão e da misericórdia? Como vai a leveza da justiça e da liberdade?
Vai muito mal. Os setores organizados dos pequeninos tentam buscar alternativas. Mas, desgraçadamente, os setores muito melhor organizados dos sábios e entendidos tentam barrar estas buscas. E, na maioria das vezes, o conseguem. Mas a continuidade do texto dá pistas para prosseguir nesta busca.
4. Jesus declara
Jesus se diz manso. E a história do chicote? Jesus se diz humilde. E a história dele de se dizer Filho de Deus?
Para a situação da época, passar o chicote nas pessoas que exploravam no templo (21.12-13) não era uma atitude mansa. Muito menos significa humildade admitir ser o Messias tão esperado, frente a lógica de que este viria de uma família que representara o poder do templo/palácio. A mansidão e a humildade de Jesus, pois, não são tão fáceis assim de entender. Vamos entendê-las a partir de toda a história de Jesus, de sua prática específica em relação à sociedade da época.
Frente a esta sociedade, onde tudo passa pelo crivo do templo, onde pesa o cumprimento da lei, só acessível a classe dominante, é muita coragem de Jesus dizer o que disse. Mt 11.27 tira toda a legitimidade da intermediação dos sábios e entendidos. Jesus arroga para si este poder. Tudo me foi entregue por meu Pai. Tudo, Só eu conheço Deus. Só ele me conhece. Só eu revelo Deus a quem eu quiser. E esta palavra é tão importante, tão fundamental, que há quem diga que este é um resumo de todo o Evangelho (Est. Teológicos 1985, n° l, ano 25, p. 108).
Quanta audácia! Quanta presunção! Não esqueçamos que quem estava fazendo esta declaração era uma pessoa comum, insignificante, uma pessoa sem poder, que nem cumpria a lei do jeito que estava estabelecido pela ordem, sem autoridade. Com que autoridade fazes estas coisas? E quem te deu esta autoridade? (21.23.)
4.1. A autoridade de Jesus está no aliviar os pequeninos e trazer o descanso para as suas almas.
Para os pequeninos, a lei era carga e jugo tão grandes, que era impossível carregá-los. Conforme o perdão, a misericórdia, a justiça e a liberdade que Jesus traz, há alívio e descanso. Conforme a lei interpretada pela classe dominante, os pequeninos são insultados. Jesus traz o desafio de que não insultar é mais do que não matar. Insulto é morte (5.22). Esta é a radicalidade do amor que Jesus traz. É com esta autoridade que Jesus se impõe. E Deus assina embaixo. E 70 x 7 o cálculo do perdão (18.22). 70 x 7 é tudo. E Deus assina embaixo. Deus dá alívio. Deus dá descanso. Bendito seja Deus, que dia a dia leva o nosso fardo. Deus é nosso Salvador. Com Deus, o Senhor, está o escaparmos da morte. (Sl 18.19-20.) Aqui subentende-se a prática libertadora, não um mero discurso hipócrita tão em voga naqueles dias quanto hoje. Onde houver organização, Deus está junto, e organização para buscar o Reino, não onde tiver concepção individualista da religiosidade (18.20).
4.2. A autoridade do alívio e do descanso subverte a ordem estabelecida ainda e principalmente hoje.
Muda tudo com este crivo, o crivo do alívio e do descanso. Alívio para o corpo e para a alma. Descanso para o corpo e para a alma. Não há alma aliviada e descansada se o corpo não está.
O peso é outro. Ë o peso, o jugo e o fardo do perdão, da misericórdia, da justiça e da liberdade. Descobrir isso em nossa vida é mudar o seu rumo. É como dês cobrir, de repente, que um colchão cheio de mil-réis, guardado a sete chaves, foi corroído pela inflação. É escandalizar-se com as mortes todas que ocorrem por aí, não somente com as mais flagrantes. Lembro o caso da morte de uma criança, estraçalhada por um porco no quintal de sua casa. A mãe virou vilã por não ter tomado conta do filho. Lembro, também, do caso da menina que morava debaixo da ponte do rio Chapecó, que veio a cair no rio e morreu afogada. Também só mente a mãe foi condenada, enquanto o sistema, produtor destas situações, escapou ileso de qualquer acusação. Há muitas outras mortes que devem escandalizar a comunidade cristã e reverter sua prática na busca do perdão, misericórdia, justiça e li herdade para os pequeninos de Deus.
5. Bibliografia
BAKKEN, Norman K. Teologia em Mateus, Estudos Teológicos n° l, ano 25, 1985 pp. 101-108.
COMBLIN, José, LOCKMANN, Paulo, GALAZZI, Sandro, MESTERS, Carlos, ANDERSON, Ana Flora, GORGULHO, Gilberto. Estudos Bíblicos n° 26: O Evangelho de Mateus. Vozes/Sinodal, 1990.