Prédica: Mateus 18.15-20
Leituras: Ezequiel 33.7-9 e Romanos 13.1-10
Autor: Nelson Kilpp
Data Litúrgica: 16º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 19/09/1993
Proclamar Libertação – Volume: XVIII
1. A correção fraterna: O tema do domingo e as leituras
O tema do domingo — a correção fraterna — é dado pelo Evangelho, Mt 18.15-20, que também está previsto para a pregação. As leituras do Antigo Testamento (Ez 33.7-9) e da Epístola (Rm 13.1-10) ressaltam alguns aspectos do tema. Enquanto Ez fala da necessidade da denúncia profética para que o povo não pereça, o texto de Rm acentua a importância de uma autoridade legítima no cumprimento da lei.
O texto de Ez 33.7-9 entende que o profeta é sentinela, vigia. Assim como a sentinela tem a função de advertir o povo na eminência do perigo — a invasão de um inimigo, p.ex. —, a fim de que todos possam salvar-se ou, no mínimo, estar preparados para defender-se (cf. a parábola Ez 33.1-6), também o profeta deve estar atento (cf. o v.7, à palavra de Deus) e alertar os perversos da comunidade para as consequências de suas ações. O membro que agir contra a vontade de Deus ou contra a integridade da comunidade — nisto consiste a perversidade — morrerá. Na teologia de Ezequiel, morrer significa morrer para a comunidade, ou seja, exclusão da comunidade de fiéis. A tarefa do profeta consiste, portanto, em preservar a vida do perverso, ou seja, mantê-lo integrado no povo de Deus. A importância desta função transparece no fato de a própria sentinela ser responsável por qualquer vida perdida devido a negligência.
Quem é o profeta instituído como sentinela e vigia dentro do povo e da comunidade? Não é tão natural que seja o pastor ou o padre. Sem dúvida, este nunca deverá sentir-se dispensado de sua função profética: a de apontar para as consequências dos erros de pessoas e grupos. Note-se, no entanto, que o fenômeno profético não precisa, hoje, necessariamente manifestar-se em indivíduos; ele também pode revelar-se em movimentos ou através de uma coletividade.
A leitura do Antigo Testamento foi escolhida por ter afinidade com o tema do Evangelho. O mesmo não vale para a leitura da Epístola. No ano A, lê-se a carta aos Romanos a partir do 2° Domingo após Pentecostes de forma semi-contínua. Rm 13 cai em nosso (16°) Domingo. A ligação com o tema do dia não é tão evidente. Já a delimitação da perícope não é uniforme. Na Igreja Católica Romana e na maioria das Igrejas protestantes, a leitura epistolar abrange somente Rm 13.8-10. As Igrejas Luteranas, no entanto, prevêem 13.1-10. Como se deve entender que somente as Igrejas Luteranas — tanto as de tradição germânica quanto as de origem norte-americana — incluíram Rm 1-7 em seus lecionários? Como interpretar, inversamente, o fato de a Igreja Católica Romana não prever a leitura de Rm 13.1-7 para nenhum domingo ou dia festivo?
Uma interpretação unilateral de Rm 13.1-7 no passado não justifica a sua eliminação. Retirar o controvertido texto da reflexão homilética não resolve a complicada relação entre os cristãos e o Estado. Rm 13.1-10 une duas partes (separadas na nova série de perícopes alemã): 13.1-7 e 13.8-10. A segunda parte tem um escopo bastante evangélico: O amor é o cumprimento da lei. O escopo da primeira parte tem gerado bastante discussão: Submetei-vos à autoridade instituída. Houve e ainda há muita briga em torno deste texto. Em geral, nossa experiência tem sido que as autoridades governamentais instituídas não representam o povo e nem buscam pelo seu bem-estar. Elas podem, por isto, ser provenientes de Deus? Devemos sujeitar-nos a ela? Diante disto, principalmente nós dos pampas tendemos a cair no outro extremo: o de negarmos, como Capitão Rodrigo, qualquer autoridade instituí¬da: Hay gobierno?… Soy contra!
Creio que as Igrejas Luteranas fizeram bem em não desistir do texto. Ao existir respeito à autoridade — mesmo à não-cristã —, alegando ser ela de Deus e, por isto, tendo o objetivo único de buscar o bem e a justiça, o texto de Rm 13.1-10 não impede a denúncia nem a resistência à autoridade que não cumprir esta sua função. Por outro lado, nossa crítica a todo e qualquer tipo de autoridade impediu-nos de ver que podemos ter uma autoridade positiva, que cumpre e faz cumprir a boa lei. Precisamos engajar-nos para que haja uma autoridade confiável, incorruptível, que possa punir os corruptos. Se não apostarmos nessa autoridade, não estaremos legitimando a anomia existente? Não estaremos desistindo de organizar uma sociedade mais justa?
A contribuição do texto de Rm 13 para o tema do domingo reside na afirmação da autoridade que garante a convivência da sociedade/comunidade através da disciplina e da exigência do cumprimento da lei. A Epístola dá a dimensão social e política, enquanto o Evangelho se restringe ao nível comunitário. Até que ponto a ampliação do horizonte na Epístola ainda permite que falemos de correção fraterna''?
2. O texto e o contexto do Evangelho do domingo (Mt 18.15-20)
2.1. No versículo 15, há uma variedade textual a ser considerada. Trata-se do contra ti, que, na versão de Almeida, encontra-se entre colchetes. A maioria dos pesquisadores entende que a formulação genérica é a original, por ser mais adequada a uma regra comunitária. O contra ti seria, então, oriundo de Lc 17.3 — a palavra de Jesus que serve de base para a regulamentação em Mt 18.15ss.
Ainda duas observações quanto à tradução:
a) No v. 15, o termo genérico arguir corresponde melhor ao original do que, p. ex.: corrigir ou repreender, já que preserva a amplitude do significado do termo grego, que inclui, além de censurar, repreender, castigar, também trazer a tona (uma falta antes ainda não confirmada) e demonstrar, através de argumentos, que, de fato, se trata de um pecado,
b) A tradução da citação de Dt 19.15, no versículo 16, por para que pelo depoimento de duas ou três testemunhas toda palavra se estabeleça deve ser entendida, a meu ver, da seguinte maneira: Cada palavra/questão (abordada no diálogo fraterno) deve (caso seja necessária uma decisão na assembleia da comunidade) estar assentada no /ser confirmada pelo depoimento de duas ou três testemunhas.
2.2. A perícope tem a seguinte estrutura:
a) 18.15-17: Sob a forma de palavra de Jesus a uma pessoa não identificada (tu), é apresentada uma regra sobre como lidar com um membro de comunidade que cometeu uma falta. A questão deve ser tratada em três níveis.
b) 18.18: Esta palavra se dirige a um grupo de pessoas (vós) e forma, no atual contexto, a conclusão da regra comunitária acima. É uma democratização do poder das chaves. Em Mt 16.19, este poder havia sido dado por Jesus a Pedro; aqui ele é dado a toda a comunidade. O que a comunidade decide em matéria de perdão e retenção de pecados é válido para Deus.
c) 18.19-20:0 v. 19 introduz um novo assunto: a eficácia da oração comunitária. Formalmente, o novo tema é concebido como adição ao v. 18 (também). O v. 20 afirma a presença de Jesus na assembleia da comunidade, ampliando a esfera de atuação divina da oração para todo o culto comunitário.
Seria mero caso que, nesta perícope, por três vezes aparece dois ou três (vv. 16, 19, 20)? Pano de fundo é a pequena comunidade.
2.3. O contexto da perícope vai dar o marco para a interpretação do texto de Mt 18.15-20. Ele é muito importante para o texto em análise, uma regulamentação comunitária, ou seja, uma norma, uma lei. O capítulo 18, como um todo, tematiza a Igreja local, a comunidade:
— À pergunta dos discípulos por quem é o maior, Jesus responde: Quem se humilha como uma criança e quem recebe um destes pequeninos é o maior no reino dos céus (vv. 1-5).
—Não se deve fazer tropeçar nem desprezar nenhum destes pequeninos (vv. 6-9).
— A ovelha desgarrada deve, ao contrário, ser buscada e reintegrada na comunidade (vv. 10-14).
— O nosso texto quer mostrar um exemplo concreto de uma ovelha extraviada (o irmão que pecou) e de como deve e pode ser reconquistada para a comunidade (vv. 15-18).
— A comunidade é formada de membros perdoados por Deus, que constantemente devem estar dispostos a perdoar o irmão (vv. 21-35).
O contexto nos mostra que a disciplina comunitária está emoldurada por duas parábolas, que mostram o amor e o perdão divinos: a parábola da ovelha perdida e a do credor incompassivo. O pai celeste não quer que ninguém pereça (cf. a leitura do Antigo Testamento). A ovelha é buscada; o endividado é perdoado. Conforme o evangelista Mateus, problemas concretos dentro da comunidade deverão ser tratados de acordo com esta norma maior. A lei deve ser sempre entendida sob o pano de fundo do evangelho.
3. Algumas reflexões teológicas visando a pregação
3.1. Como se pode pregar sobre um assunto de ordem prática e disciplinar como esse da correção fraterna? Em nossas comunidades, dificilmente ainda existe uma regra disciplinar que preveja uma correção pública de um membro que erra. Há, sem dúvida, tentativas individuais de alertar e admoestar irmãos na fé. Na prática, dificilmente a comunidade exclui um de seus membros por razões de conduta ética ou de heresia. O que ocorre, muitas vezes, é uma exclusão mais ou menos automática por motivos financeiros, quando um membro deixa de contribuir. Lamentavelmente! Em algumas (poucas) comunidades, ainda se procura disciplinar delitos sexuais, tais como adultério, incesto e prostituição. Raramente são tratadas ou discutidas questões de ordem econômica na comunidade, sem dúvida por ser muito difícil distinguir o que é, do que não é pecado nesta esfera. Até onde a percenta¬gem do corretor de imóveis é legítimo pagamento por trabalho e a partir de quando ele se torna apropriação indébita.
Além desta dificuldade de refletir algo como falta contra a comunidade ou contra Deus, geralmente se pensa, hoje em dia, que a ética pertence a esfera privada de cada um. Cada cristão deve saber o quê, em determinada situação, é certo ou errado, não podendo ninguém acusá-lo de ter agido de forma errada. Esta privatização da ética tem algo de bom. Ele evita o farisaísmo e a caça às bruxas na comunidade. Além disso, ela chama cada um à responsabilidade pessoal. Por outro lado, no entanto, esta individualização da ética está ligada a um liberalismo (não necessariamente libertinismo), de acordo com o qual a comunidade cristã desiste de ter normas válidas para todos os seus membros. Cada membro é responsável por sua própria vida, devendo responder por seus próprios atos diante da justiça humana e diante do juízo final. A vida de cada um, portanto, não interessa à comunidade. Esta atitude liberal da comunidade nem sempre é boa. Será que o desinteresse pelo que uma irmã ou irmão faz não é antes um sintoma de falta de comunhão? A fé comum não deve constranger a uma vida com um mínimo de diretrizes em comum? As antigas comunidades luteranas, p. ex., acentuavam bastante o trabalho e a honestidade — muitas, sem dúvida, unilateralmente. Será que não deveríamos refletir sobre alguns parâmetros para a nossa vida na comunidade na sociedade e no mundo, que pudessem e devessem valer para cada irmão e irmã? Se nós, membros da comunidade, tivermos sensibilidade suficiente para tratar de assuntos delicados e bastante abertura para concepções de fé e vida diferentes da nossa, poderíamos refletir sobre o assunto no presbitério, em grupos ou na assembleia da comunidade. Talvez possamos refletir sobre o assunto também numa pregação.
Não creio que uma comunidade que tenha algumas normas básicas de atuação ética comuns para todos os seus membros precise temer a perda de membros. A médio e longo prazos, as comunidades recuperariam a credibilidade perdida pela atuação de algumas Igrejas Evangélicas e de alguns pastores que prometem milagres, mas dão cobertura ao tráfico de narcóticos e de meninas e participam descaradamente da festa da corrupção. Ou seja: A comunidade que claramente mostra que sua vida está em coerência com a sua fé não perde, mas ganha membros, pois ganha credibilidade.
3.2. Diante do mundo, uma comunidade que leva a sério o pecado tem mais credibilidade; sua missão será mais convincente. Mas a comunidade sempre deve es¬tar consciente de que é comunidade de pecadores. É isto que a parábola do credor incompassivo expressa (a perícope que segue e que será tema do próximo Domingo). Por isto, a intenção da regra comunitária em Mt 18.15-20 não pode ser a de criar uma comunidade pura, sem pecado. Isto não é possível; isto seria farisaísmo. A comunidade quer e pode somente dar um exemplo de como lidar comunitariamente com uma ovelha que se extraviou. Assim como o pastor vai em busca dela puni recuperá-la e reintegrá-la ao rebanho, a comunidade busca ganhar o membro que se encontra em pecado. O perdão do que está em dívida, a vida do perverso ó o objetivo final e último.
A correção fraterna sugerida por Mt 18.15-20 é um meio para ganhar o irmão de volta. Para tanto, este deve estar conscientizado, arrependido de seu erro. O perdão não deve ser barato. Mas, somente em última instância, o irmão deve ser excluído da comunidade, para não confundir os outros membros nem deixar dúvidas perante o mundo quanto ao que significa participar do corpo de Cristo. Dificilmente, a comunidade de Mateus excomungava, na prática, todos os membros pecadores. Isto teria sido possível? Talvez houvesse exclusão somente em casos esporádicos de grande notoriedade. O normal deveria ter sido que a correção fraterna surtisse, de uma ou outra forma, efeito — o irmão ou a irmã era reintegrado na comunidade.
3.3. A correção fraterna em três estágios, Mateus provavelmente adotou de seu meio. Também em Qumrã havia semelhante regra. Cito a mesma de acordo com B. Weber: Cada um deve repreender o seu próximo em verdade e humildade… Ninguém denuncie o seu próximo à assembleia, sem antes ter pedido satisfação dele na presença de testemunhas (p. 126). Isto mostra que a fé se encarna na cultura existente, adotando dela critérios pedagógicos e normas práticas. Há, em cada cultura, um senso comum de como se procede de maneira justa, sem ferir sensibilidades, e adequada à apuração da verdade. Também em nosso meio, o povo tem muita sabedoria para lidar com este tipo de caso.
Falar a sós com o irmão ou a irmã protege também o/a eventual faltoso/a da difamação ou execração pública. Ninguém da comunidade tem o direito de alardear ou fofoquear antes de ter conversado sobre o assunto com a pessoa envolvida. A regra comunitária quer evitar também que se julgue alguém precipitadamente.
Também as testemunhas — na segunda fase da correção fraterna — querem evitar que se façam acusações mentirosas ou difamatórias. Se em nossas comunidades se tivesse também isto em mente, teríamos provavelmente menos pessoas feridas. O objetivo maior sempre será o de não deixar que a ovelha se perca.
Na maioria das vezes, a gente pensa nas outras pessoas quando se fala de como tratar alguém que pecou. Pensamos em como trazer esta outra pessoa de volta ao convívio comunitário. Será que também nós estaríamos dispostos a aceitar a correção fraterna por parte de um irmão ou irmã que machucamos e que vem falar conosco? Respeitaríamos nós pastores, padres e presbíteros a poimênica dele ou dela?
3.4. A comunidade cristã é comunidade de pecadores. O joio está misturado ao trigo, mas não há como separar os dois, pois somente Cristo poderá dizer, afinal, quem é joio e quem é trigo. Não podemos, portanto, julgar o irmão, apontar o cisco em seus olhos (tentando, assim, esconder a trave em nossos próprios olhos). O texto propõe uma forma de diálogo para afastar o pecado — quem sabe das diversas partes implicadas — do seio da comunidade. Isto é possível, porque Jesus está onde estiverem dois ou três reunidos em nome dele. A comunidade nunca será reino de Deus, mas sempre estará a caminho dele. E o mundo precisa notar isto. O mundo reconhecerá isto à medida que vislumbrar, por trás da vida comunitária, a presença de Cristo. Esta promessa da presença de Jesus na comunidade da uma força especial às decisões e às orações da comunidade: o que a comunidade decidir em matéria de perdão de pecados tem validade; o que a comunidade decidir pedir em oração, em especial em suas intercessões, será ouvido.
4. Bibliografia
VOIGT, G. Meditação sobre Mateus 18.15-20. In: Die grasse Ernte. 1976, Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, pp. 308-316.
WEBER, B. Meditação sobre Mateus 18.15-20. In: B. van Kaick (ed.) Proclamar Libertação. Vol. II. 1977, São Leopoldo, Sinodal, pp. 123-131.