Prédica: Mateus 22.15-21
Leituras: Isaías 45.1-7 e 1 Tessalonicenses 1.1-5a
Autor: Uwe Wegner
Data Litúrgica: 22º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 31/10/1993
Proclamar Libertação – Volume: XVIII
1. Introdução
O texto sobre o tributo a César é controvertido na pesquisa. Há, a rigor, três linhas de interpretação: a primeira concilia deveres para com César (= estado) e pa¬ra com Deus. A segunda admite deveres para com César (= estado), mas submete-os aos deveres e à obediência a Deus, norteando-se por At 5.29. A terceira não concilia entre César e Deus, entendendo que Jesus não legitima pagamento de tributo a César; também não acha legítimo comparar César com outro estado qualquer. O texto a seguir insere-se dentro desta terceira linha de interpretação (para detalhes, cf. Wegner, pp. 87ss.).
Propomos uma reflexão exegética em discussão com nossa linha de interpretação. Como não é possível fazer referência a todos os pormenores da história, limitamo-nos aos tópicos que seguem.
2. A natureza da cilada
No v. 18, Jesus percebe que a pergunta dos seus oponentes não era mera curiosidade ou busca sincera por uma orientação. Daí que diz: Hipócritas! Por que me armais uma cilada?
A cilada, segundo alguns, consistiria no seguinte: Se Jesus respondesse sim, ele estaria traindo a resistência popular que, ou se negava ao pagamento (= zelotes), ou pagava, mas a contra-gosto e na marra, considerando a cobrança do imposto como ilegítima. Já se dissesse não, iria para a cadeia (cf. Lc 20.20; 23.1-2). A cilada consistiria, pois, em formular a pergunta de tal forma, que Jesus se desse mal, qualquer que fosse a sua resposta. A pressuposição neste caso é que havia povo presente, o que é explicitamente confirmado pela versão de Lucas (20.26), mas não diretamente pela de Mateus ou Marcos (Mt 22.22; Mc 12.17).
Uma outra explicação (cf. Wengst, p. 86) parte do v. 16. Ali os oponentes afirmam saber que Jesus é verdadeiro, que, baseado na verdade, ensina o caminho de Deus e não dá preferência a ninguém, já que não considera os homens pela sua aparência. A referência a Deus nesta conversa introdutória é ligada com a alusão a Deus na resposta de Jesus no v. 21: a cilada seria que os oponentes queriam colocar Jesus do lado de Deus, mas contra César, para dessa forma poder prendê-lo. Neste caso, a afirmação de que Jesus não daria preferência a ninguém, por não julgar as pessoas segundo suas aparências, poderia estar querendo provocá-lo para também não se deixar influenciar por César, cuja aparência exterior e poder impressionavam. A cilada consistiria em forçar Jesus a dizer um não. Do contrário seria desacreditado como arauto da verdade de Deus. A pressuposição, neste caso, é que César e Deus eram considerados grandezas antagônicas, o que — no mínimo para certos grupos — não é difícil de ser confirmado.
3. A natureza do imposto
Na pesquisa há consenso: trata-se do imposto cobrado pelos romanos das províncias conquistadas e mantidas ocupadas militarmente. Ora, Judéia era governada diretamente por um procurador romano, e nossa história acontece em Jerusalém. A palavra grega empregada para imposto é kensos, que vem do latim census. Os romanos faziam um censo da população, ocasião em que também cadastravam rigorosamente todos os bens e posses de cada um. O sentido de realizar estes censos nas províncias era poder determinar quanto cada pessoa e família deveria pagar de impostos ao império. E, dentre os vários impostos cobrados, dois destacavam-se particularmente e poderiam estar na origem da palavra empregada: o tríbutum soli, que era o imposto cobrado sobre a produção agrícola. Este variava, podendo chegar a até 25% do total da produção; podia ser pago em espécie. O outro, era o tríbutum capitis, cobrado de todas as pessoas (incluídos mulheres e escravos), mais ou menos dos 14 aos 65 anos de idade; era pago em moeda. Este último era uma espécie de imposto sobre renda não-agrícola e sobre o montante de bens e posses que cada um possuía. Todos eram obrigados a pagá-lo. Consistia, provavelmente, de um valor fixo de 1 denário, mais l % sobre o valor imobiliário calculado de cada pessoa. Era um imposto que se fazia sentir de forma dolorosa, sobretudo, pelas pessoas de classe baixa, com empregos periódicos, subempregos ou desempregadas.
Não há consenso se na raiz da pergunta havia referência a estes dois impostos diretos (Pesch, p. 226, etc.) ou unicamente ao tríbutum capitis (Hengel, p. 141; Bünker, p. 157, etc.). A favor da última conjetura fala que a) o imposto por cabeça era cobrado exclusivamente em moeda, e Jesus refere-se explicitamente à moeda do imposto, e b) alguns manuscritos gregos (como o D, k, etc.) apresentam como variante à palavra kensos o termo epikefalaion, que designa expressamente o imposto cobrado sobre a cabeça de cada um.
De qualquer forma, a natureza da pergunta dirigida a Jesus não é afetada pela natureza mais exata do imposto: o decisivo não é se se trata dos dois ou de um só dos impostos diretos mais importantes cobrados pêlos romanos, mas, sim, que o imposto deve ser pago a César. Ora, César era, na época de Jesus, um termo técnico que significava imperador. Os impostos pagos na época de Jesus eram cobrados a mando do imperador romano Tibério (imperador de 14-37 d.C.). A pergunta que é formulada a Jesus quer, pois, saber se ele está ou não de acordo com que se paguem tributos aos romanos, isto é, a uma potência militar que desde 63 a.C. ha via invadido a Palestina e arrecadado impostos de sua terra e povo, por entendei que uma província conquistada militarmente deve favores aos conquistadores, a fim de que estes possam assegurar-lhe paz e segurança. Os oponentes de Jesus não querem, portanto, saber se Jesus está de acordo com que um estado qualquer tenha legitimidade de arrecadar impostos dos seus cidadãos. Aqui não se trata de um estado qualquer, mas de uma potência imperialista estrangeira que, via cobrança de tributos, oprimia o povo palestino para poder viver em regalias, privilégios, luxo e para poder dar continuidade à sua política hegemônica de dominação.
4. O pedido pela moeda do imposto
Mt 22.19-21a coloca: Mostrai-me a moeda do imposto. Apresentaram-lhe um denário. Disse ele: De quem é esta imagem e a inscrição? Responderam: De César. Só depois deste pedido pela moeda é que Jesus passa a formular a sua própria resposta. Pergunta-se: Qual o sentido deste pedido pela moeda antes da resposta de Jesus?
Uma interpretação vê no ato uma ação de desmascaramento dos oponentes. Assim, p. ex., Brakemeier (pp. 30s.):
Qual a razão deste gesto de Jesus?… Ora, porque apanha os seus interlocutores em flagrante. Interrogam-no se é lícito pagar tributo a César ou não, fazem deste tributo um problema como se a sua fidelidade a Deus estivesse em jogo. Enquanto isso não sentem escrúpulos em levar denários no bolso, em negociar e pagar com eles… Também a efígie e a inscrição de César não são obstáculos, desde que o uso deste dinheiro lhes traga algum proveito… Por isto é inconsequente reagir alergicamente apenas quando se trata de recolher o imposto que César exige, (cf. também Wegner, p. 100; Stauffer, p. 112, etc.)
O problema da interpretação é que ela pressupõe a posse da moeda por parte dos oponentes, o que o texto, contudo, deveria enfatizar se tivesse o propósito aludido. Mas é o contrário: em todos os três evangelhos não fica claro de quem se tomou a moeda (Mt 22.19s.; Mc 12.15s.; Lc 20.24). A favor da interpretação poderia ser colocado que os judeus proibiam o uso de imagens (Êx 20.2-6), e a apresentação de uma moeda com imagem justamente na área reservada ao templo de Deus não deixa de ser uma contradição. Além disso a inscrição na moeda (Tiberius Caesar divi augusti fílius augustus: Tibério, imperador, venerável/adorável, filho do venerável/adorável Deus) não deixa de representar uma idolatria.
Uma outra interpretação parte do realce à imagem e inscrição na moeda e interpreta: Jesus, realçando a imagem de César na moeda, quer convidar as pessoas a entenderem-se como imagem de Deus no v. 21 (Pesch, p. 227). Devolver a Deus o que é de Deus significaria devolver-se a si próprio a Deus, já que somos todos feitos à sua imagem (Gn 1.26). O problema desta interpretação é que explica o realce dado por Jesus à imagem na moeda, mas fica devendo uma explicação para o realce semelhante dado à inscrição.
A melhor explicação ainda nos parece ser aquela que liga o conteúdo desta ação com a resposta de Jesus no v. 21. Jesus foi perguntada se é lícito ou não pagar imposto a César (v. 17). No v. 21 uma resposta direta a esta pergunta não é dada, pois a palavra imposto não aparece e o verbo empregado no v. 17 (pagar = dídomi) agora é um composto que pode significar a mesma coisa, mas também devolver (= apo-dídomi). E é em função deste último sentido que, a nosso ver, Jesus manda mostrar um denário. Ora, o que Jesus pergunta em relação ao denário não é se devemos ou não pagá-lo como imposto, e, sim, unicamente de quem ele é, a quem ele pertence. De quem esta imagem e a inscrição ? tem exatamente este sentido, a saber, definir a quem pertence a moeda, quem a cunhou. Dentro desta interpretação a mudança do verbo (de dídomi = pagar para apodídomi = devolver) no v. 21 faz um bom sentido: Jesus está mandando devolver a César uma coisa que pertence a ele. E o que lhe pertence é aquilo que mandou cunhar, ou seja, sua moeda. Importante é que se perceba: Jesus não está afirmando que César mereça o pagamento do imposto e que, portanto, o imposto cobrado pêlos romanos seja legítimo. Devolução de moeda que pertence a César é coisa bem diferente que pagamento de um imposto pelo denário estatal.
Objeta-se contra isto (p. ex. Stauffer, pp. 117-119) que o verbo apo-dídomi pode ter exatamente o mesmo significado de dídomi, podendo ser igualmente empregado no sentido de pagar. Esta objeção, no entanto, tem um ponto fraco: se apo-dídomi significa pagar no v. 21, então Jesus estaria pedindo para pagar também a Deus as coisas de Deus, o que, no contexto dado (a cena desenrola-se no templo e em Jerusalém), só poderia referir-se ao pagamento do imposto religioso anual ao templo. Mas Jesus mostra-se contrário a este pagamento em Mt 17.24-27…
5. O sentido da resposta de Jesus
A primeira parte da resposta de Jesus consiste no dito: Devolvei a César as coisas de César (v. 21 b). Segundo nosso entendimento, o que pertence a César Jesus deu a entender nos w. 19-21a: são as moedas que ele cunhou e que, por isso, levam sua imagem e inscrição. Estas devem ser devolvidas a ele. O que implica uma tal proposta?
Míguez (p. 90), Stenger (pp. 134s.), Stauffer (p. 114) e vários outros destacam unanimemente o grande valor simbólico do denário imperial, ou seja, a moeda obrigatória para pagamento de impostos. As moedas representavam, acima de tudo, um símbolo do poder hegemônico que os romanos detinham. A circulação de suas moedas por todos os lugares era a expressão monetária de que esses lugares todos estavam debaixo de seu poder, o que as inscrições e imagens dos imperadores só reforçavam ainda mais. Entre os rabinos era corrente o postulado: À área de reinado de um rei equivale à área de validade de suas moedas. Por isso uma das características dos dois levantes judeus na Palestina sob Nero (66 d.C.) e Adriano (131 d.C.) foi a imediata cunhagem de moedas palestinas, justamente para simbolizar a autonomia e independência frente aos romanos. Sob este pano de fundo, a proposta de Jesus de devolver a César os seus denários implicava tirar da Palestina o símbolo monetário do poder romano. Indiretamente e a curto prazo a medida também inviabilizaria o pagamento de tributos, pelo menos, do tríbutum capitís, já que seu recolhimento estava atrelado ao denário imperial. Sem denários de César na Palestina ficaria difícil pagar impostos com denários de César. Dentro desta ótica, a resposta de Jesus não deixa de ser bastante esperta. Por um lado, não nega a César o que lhe pertence: as suas moedas; mas, por outro lado, deixa de afirmar que lhe per-tence também os impostos exigidos pêlos romanos. Em termos políticos, a resposta de Jesus implica perda para os romanos, perda do símbolo de seu poder, que representam os denários. Mas trata-se de uma perda que, por outro lado, é digerível, pois representa simultaneamente um ganho, a saber, o ganho das moedas… Jesus realmente parece ter-se safado da cilada.
A segunda parte da resposta de Jesus é o v. 21c: … e (devolvei) as coisas de Deus a Deus. Para a interpretação da frase é decisivo determinar o que vêm a ser as coisas de Deus, que na ótica de Jesus lhe devem ser restituídas. As interpretações divergem bastante, mas, no fundo, são três as principais sugestões dadas:
1. As coisas de Deus seriam as pessoas, que foram criadas à sua imagem e lhe devem obediência (cf. Wengst, pp. 88s., etc.). Já vimos acima que esta hipótese tem a sua relatividade.
2. As coisas de Deus seriam as coisas ligadas ao templo de Jerusalém. Jesus interpreta o que acontece com o templo em 21.13: Vós transformais (a minha casa) em covil de salteadores. A casa que deveria ser casa de oração a Deus foi transformada em casa de negócios e ladroagem para certas pessoas. Como, segundo Mt 21.23ss., Jesus ainda se encontra no templo por ocasião da discussão sobre o tributo, poderia estar se referindo ao mesmo como coisa que precisa ser devolvida a Deus, já que pessoas apropriaram-se deles indevidamente (cf. Bünker, p. 170). Nesse caso, porém, uma alusão direta à casa de Deus ou o uso do artigo no neutro singular (to) seriam mais adequados.
3. As coisas de Deus que necessitam ser-lhe devolvidas são o seu povo e sua terra sob um regime de Uberdade. Esta interpretação parte da pergunta: O que faz uma referência a Deus num contexto de pergunta sobre legitimidade de pagamento de imposto a César? Ora, os estudos da época mostram que a contestação do pagamento dos impostos a César era fundamentada exatamente com a referência a Deus:
Com a introdução do lançamento romano de impostos está ligado o surgimento do movimento dos zelotas, que opunha luta aberta aos romanos e que desembocou, por fim, na guerra judaica, 66-70 d.C. Na cobrança do imposto documentava-se a pretensão romana de soberania sobre o país e sobre o povo. Israel, porém — o chão da Palestina, assim como o povo —, pertence a Deus; não pode servir a nenhum outro senhor. A partir desta alternativa radical, os zelotas conclamavam também para a recusa a pagar o imposto. Este é o fundo que está na base da interrogação a Jesus: se é permitido pagar o imposto ao imperador. (Wengst, p. 86).
O AT pode fundamentar com várias passagens que, segundo crença do povo, a terra pertence a Javé (Dt 12.10; 19.5; 26.8-9; Lv 25.23, etc.), bem como o povo judeu, do qual Javé era o verdadeiro rei (Dt 33.5; Is 41.21; Jr 8.19, etc). Em razão do fato, o credo da esperança judaica por autonomia política podia formular palavras como as de Is 65.22 ou 62.8s.: Jurou o Senhor pela sua mão direita e pelo seu braço poderoso: Nunca mais darei o teu cereal por sustento aos teus inimigos, nem os estrangeiros beberão o teu vinho, fruto de tuas fadigas. Mas, os que ajuntarem o comerão (…) e os que o recolherem beberão.
A evocação de Deus no contexto da pergunta pelo pagamento dos impostos a César tem assim uma finalidade nitidamente crítica na intenção de Jesus: Devolver a Deus as coisas de Deus dificilmente significará algo diferente do que devolver a ele a sua terra e o seu povo, dos quais os imperadores romanos se apossaram desde 63 a.C. com a entrada/invasão de Pompeu na Palestina.
Esta interpretação implica que Jesus tenha defendido a causa dos zelotas, — autonomia política da Palestina —, mesmo que não tenha concordado com os meios que propunham para alcançá-la. É esse tipo de posicionamento que, aliás, explica também de forma mais satisfatória que zelotas a exemplo de Simão (Lc 6.15; At 1.13) e Judas (Mt 10.4), tenham aderido ao movimento de Jesus: Ambos os movimentos coincidiam neste um ponto nevrálgico, a saber, de que os romanos não tinham legitimidade para arrecadação de tributos na Palestina.
Poder-se-ia objetar contra esta terceira interpretação que fariseus e herodianos, os interpelados da parte de Jesus, dificilmente poderiam devolver a Deus um povo e sua terra em regime de liberdade. Neste caso, Jesus não deveria ter se dirigido diretamente aos romanos? Em resposta, cabe ser observado que, segundo o contexto da história no Evangelho de Marcos, o grupo que manda fariseus e herodianos a Jesus é o do sinédrio (Mc 12.13 com 11.27). Ora, por Flávio Josefo sabemos que era exatamente dentre o sinédrio que os procuradores recrutavam as pessoas responsáveis pela arrecadação dos tributos na Judéia (Guerra judaica 2, pp. 405-407). Isto significa que, por trás de fariseus e herodianos, estava o sinédrio. Mas, por trás do sinédrio, está o procurador Pilatos, a mando de quem se arrecada. E, por trás de Pilatos, encontra-se o imperador. Em razão do fato, o recado que Jesus dirige diretamente a fariseus e herodianos não pode restringir-se unicamente aos mesmos, mas implica também as pessoas e grupos para cujo interesse trabalhavam, ou seja, os romanos (cf. também Bünker, pp. 161s.).
6. Meditação
6.1. A interpretação não usual que damos ao texto dificulta o seu uso para uma prédica. Provavelmente, os/as ouvintes já contam com uma pré-compreensão dessas palavras de Jesus num sentido não conflitivo, nem excludente. A prédica teria dificuldades de conseguir sua adesão à interpretação proposta, pois o espaço de tempo é curto. Por isso achamos que o texto, assim como foi interpretado, é mais adequado para ser trabalhado em estudos bíblicos ou, p. ex., em estudo temático sobre as opções políticas que se ofereciam a Jesus. Nestas circunstâncias haveria, sobretudo, tempo disponível e necessário para perguntas, dúvidas e questionamentos que toda interpretação alternativa levanta num primeiro momento.
6.2. Se, apesar destas dificuldades apontadas, o/a pregador/a mesmo assim pensa em aproveitar o texto para um prédica, sugerimos três passos para reflexão, quais sejam:
Primeiro: César não é simplesmente o estado, ou um estado qualquer. César representa um império, o romano, que havia invadido a Palestina militarmente em 63 a.C. e que, na época de Jesus, conservava a Samaria e Judéia diretamente governadas por procuradores romanos. Assim, uma primeira característica da pergunta feita a Jesus é se é lícito pagar um tributo que: a) reverta para unia nação invasora e b) beneficie não o próprio país, e, sim, pessoas/grupos ou governos que estão distantes e fora do mesmo. Hoje em dia, não somos um país invadido militarmente por potência estrangeira; logo também não pagamos tributo a nações estrangeiras. O texto bíblico, contudo, levanta a pergunta se atualmente impérios a exemplo da Europa, Japão ou EUA não fazem para nós e outros coisas semelhantes às que o império romano fazia às suas províncias, só que com outros meios e de outras formas. Tem-se falado, neste contexto, de colonialismo e neocolonialismo. O colonialismo tem se caracterizado pela retirada direta de nossas riquezas de minérios, pau-brasil, café, etc. para sustentar desenvolvimento e acumular capital em outros lugares e países. Na fase atual de neocolonialismo as características de exploração de países como o Brasil pelos impérios gigantes modernos apresentam faces diversificadas. A mais conhecida é a dos financiamentos de projetos de países do Terceiro Mundo sob condições injustas de cobrança de juros, provocando dívidas externas eternas e forçando, a nível interno, a recessões, achatamento de salários, prioridade para exportações, aumento da dívida social, etc. Uma outra face é a das leis que regem o comércio internacional e que, p. ex., também determinam o preço dos produtos a comprar e a vender. Tem-se a nítida impressão de que pagamos muito caro por aquilo que queremos ou necessitamos comprar, mas que vendemos ou somos forçados a vender muito barato aquilo que outros querem ou necessitam comprar de nós. Uma terceira face é a que costuma denominar-se de fuga de capitais. Esta acontece quando, p.ex., empresas transnacionais enriquecem às custas de nosso trabalho e de nossos produtos, mas não revertem o capital acumulado para dinamizar a nossa economia, e, sim, o aplicam em outros lugares.
Segundo: O exemplo do Japão mostra que os grandes impérios de hoje não se decidem mais através da ocupação militar de países subjugados, e, sim, através da posse ou não de tecnologia de ponta. A atual ingerência estrangeira pode dar-se, pois, exatamente a este nível: quanto melhor a tecnologia, mais fácil torna-se dominar o mundo. Aqui países como o Brasil têm que se perguntar se o preço que estão dispostos a pagar pela aquisição da moderna tecnologia ainda se encontra numa proporção responsável aos benefícios que esta pode trazer para o povo como um todo. Seria justo acabar modernizando o consumo por meio de importações e fabricação no país de equipamentos que respondam não aos milhões que precisam de sapatos, mas aos poucos milhares que desejam a telefonia móvel, os automóveis importados e outras geringonças eletrônicas? (Tempo e Presença, n° 262,1992, p. 34.)
Em suma: uma prédica sobre o texto deveria partir da pergunta se nós, como nação, ainda estamos hoje sendo dominados e explorados por outros impérios, mesmo que de forma diferente dos romanos. Na época de Jesus, estava em jogo a autonomia e soberania do povo judeu e do território da Palestina. Hoje em dia, parece-nos, somos um país politicamente livre, mas economicamente dependente e explorado. E é justamente neste nível econômico que se deveria dar a maior reflexão na prédica. Jesus, a seu tempo, mandou devolver a César a sua moeda. Esta proposta ainda é razoável quando países vizinhos nossos, como a Argentina, já adotaram a dolarização de sua economia? Não sei. Mas a proposta de Jesus levanta, no mínimo, uma pergunta muito séria frente à circulação de dólares pelo mundo inteiro: Este sistema monetário, baseado no dólar, não oferece vantagens injustas aos americanos em termos de economia e controle econômico internacional? Ou deveríamos pensar as coisas de César de forma mais diferenciada hoje em dia, não as relacionando mais com moedas estrangeiras que circulam em nosso país, mas com firmas e indústrias estrangeiras que aqui montaram e montam suas filiais? Seriam, pois, as transnacionais o moderno fator de exploração estrangeira, do qual deveríamos nos distanciar? Pessoalmente acreditamos que o mal não está no simples fato de uma economia encontrar-se transnacionalizada ou não, mas depende da resposta a uma série de perguntas, a exemplo de: Sob que condições tais empresas se instalaram e auferem lucros? O que produzem, que seja relevante para o povo? Há fuga de capitais, ou os lucros são reinvestidos internamente?, etc.
Terceiro: Quais são as coisas de Deus que nos cabe hoje devolver a Deus? Neste caso a resposta não difere, em princípio, da resposta válida também na época de Jesus. As pessoas, a humanidade como um todo, são propriedade de Deus. Isto implica em que uma dominação ou exploração de pessoas ou povos não pode ser legitimada, Ser coisa de Deus significa que não podemos virar simplesmente propriedade privada e explorada nas mãos e a mercê dos arbítrios de empresas, bancos ou governos. Somos de Deus: temos, portanto, uma dignidade que não pode ser simplesmente comprada ou negociada por aí.
Se repensarmos esta pergunta no contexto das reflexões em torno da Conferência sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio 92), realizada em junho do ano passado, poderíamos inclusive dar mais um passo adiante e afirmar: o que cabe devolver a Deus não é só a dignidade de criaturas .humanas e de seus povos, mas de toda a criação. A terra foi um bem dado por Deus para guardar e cultivar (Gn 2.15), não para liquidar. Devolver a Deus a dignidade da terra na condição de criação sua seria, assim, uma interpelação moderna — ecológica — a mais dada pelo texto. Os impérios gigantes modernos, com suas mãos estendidas sobre o Brasil e a América Latina, através de suas transnacionais, estariam convidados a repensar toda a forma predatória e destrutiva através da qual exploram nossos recursos (fauna, flora, minérios), também a natureza e legitimidade dos seus agrotóxicos, através dos quais alegam defender a agricultura (defensivos agrícolas).
A devolução da dignidade a toda a criação é uma responsabilidade que, evidentemente, não compete unicamente a transnacionais, e, sim, a todas as pessoas e povos, ou seja, também a nós como brasileiros/as e latino-americanos/as. A prédica de nosso texto, contudo, tematiza a exploração de um império estrangeiro e é nesse nível que deveria permanecer também a interpretação para nossos dias.
7. Bibliografia
BRAKEMEIER, G. Enfoques bíblicos. São Leopoldo, Sinodal, 1980, pp. 26-36.
BÜNKER, M. Gebt dem Kaiser, was des Kaisers ist! Aber: Was ist des Kaisers? In: L. Schottroff e W. (ed.) Wer ist unser Gott? München, Chr.Kaiser, 1986, pp. 153-172.
HENGEL, M. Die Zeloten. 2a ed., E. J. Brill, Leiden, 1976.
MÍGUEZ, N. O. O império e os pobres no tempo neotestamentário. RIBLA 5-6. Petrópolis. Vozes. 1990, pp.80-92.
STAUFFER, E. Christus und die Caesaren. München, Siebenstern, 1966, pp. 102-125. STENGER, W. Gebt dem Kaiser was des Kaisers ist…! Frankfurt, Athenum, 1988.
WEGNER, U. O que fazem os denários de César na Palestina? Estudos Teológicos. São Leopoldo, 29 (1):87-105, 1989.
WENGST, K. Pax Romana. Pretensão e realidade. São Paulo, Paulinas, 1991, pp. 84-90.