Prédica: Mateus 9.9-13
Leituras: Oséias 5.15-6.6 e Romanos 4.18-25
Autor: João Guilherme Biehl
Data Litúrgica: 3º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 20/06/1993
Proclamar Libertação – Volume: XVIII
Mas como colocar a vida no papel?
Este texto é dedicado aos Isolados do Presídio Central de P. Alegre
1.
Encontrei um livro de rezas para benzeduras no porão da casa da Vó Armanda. Ela me contou que seu cunhado Pedro Laux, casado com Rosa, escrevia de noite quando voltava da roça. Ele também benzia de noite e antes do sol nascer. O livro começou a ser redigido em 1922. Ainda não consegui decifrar sua linguagem. Uma boa tradução precede a crítica, admoesta Talai Asad.1 Vó Armanda confidenciou que, de vez em quando, ela também benzia. E recitou um poema para expulsar uma doença que gruda na pele: Esfrega-te para fora da pele e entra na estufa. Sai da casa e vai com o vento. Em nome da criança de Maria.2
Esta narrativa quer se aproximar da narrativa da comunidade de Mateus acerca de sua fundação mítica por Jesus, que um dia fora criança de Maria. Mateus, no entanto, pergunta: Onde está o recém-nascido Rei dos Judeus? (Mt 2.1-3). Esta comunidade, que ainda circulava na órbita do Judaísmo (por volta de 90 d.C.) e procurava consolidar-se como igreja, relacionava Jesus com a genealogia do poder real judaico (ele era tido como o cumprimento do Antigo Testamento), uma cidade periférica (Jerusalém estava destruída), um reinado estrangeiro que matava as crianças (perseguição e/ou uma instituição eclesiástica marcada pelo infanticídio?), uma sabedoria nova, reverenciada até mesmo por magos de um Oriente desconhecido (a comunidade de Mateus confrontava seu saber ao dos fariseus que reconfiguravam o Judaísmo em Jamnia). Segundo Norman Perrin e Dennis Duling, Mateus é um livro de igreja, escrito especificamente para vir de encontro às necessidades da igreja como uma organização em desenvolvimento; e nesse sentido ele alcançou um sucesso magnífico3.
No domingo seguinte, fui ouvir Luisa, uma benzedeira no município de Ivoti. Antes passei para almoçar numa das colônias circunvizinhas. Comida Típica Alemã. O nome mente. Era comida colona. Misturas intermináveis. Identidade é conjuntural e não essencial, diz o antropólogo James Clifford.4 Se autenticidade é relacional, não há essência exceto como uma invenção cultural e política, uma tática local. Lá encontrei um professor de Filosofia da UFRGS. Comentei que achava que a benzedura reconfigurava o imaginário daquelas colônias, realizado por Jacobina e seus seguidores (abatidos, em 1874, como Mucker — santarrões, muito religiosos — pelo Exército Nacional Brasileiro a serviço do Germanismo local).5 Seu discurso foi filosófico: Tu só vais entender as práticas de benzeduras daqui se leres o 'Sexto e Sétimo Livros de Moisés'. É um livro medieval, trazido pelos imigrantes alemães. Esta é uma postura científica possível. Altamente questionável. Em especial, por tomar como implícito que aquelas colônias fossem textos já escritos d'além mar. Concordo com Paul Rabinow: Outras culturas não são textos com sentidos implícitos a serem descobertos. Há que se dialogar com elas, perceber a complexidade e o dinamismo das vidas cotidianas, aprender delas, bem como testar a tolerância da nossa própria linguagem, alargando-a.6
Tanto para os fariseus como para a comunidade de Mateus, a revelação divina era verbal e requeria uma interpretação autoritativa. Os fariseus estavam agora no controle de um Judaísmo abalado. A partir da destruição de Jerusalém e do Templo, os fariseus se reuniram em Jamnia para redefinir seu saber. Este trabalho passou pela codificação da Mishnah, culminando no Talmud (550 d.C.), uma espécie de enciclopédia que normalizava cada aspecto da vida cotidiana judaica. A comunidade de Mateus se descreve confrontando as articulações de saber e poder acontecendo em Jamnia. O conflito central do texto de Mateus não é entre Jesus e os fariseus, mas sim entre uma comunidade que está se institucionalizando e o Judaísmo rabínico.7 Este movimento cristão estava se autoconcebendo como à parte do Judaísmo. Enquanto os fariseus normalizavam a vida diária, interessados em reconfigurar sua identidade nacional, a igreja se fazia uma instituição universal, Ide, portanto, fazei discípulos de todas as nações… (Mt 28.19)
2.
A metodologia desta narrativa é uma que faz conexões entre representações. Ou como diz Bruno Latour: uma etnografia de inscrições.8 Interessa-me descrever a superfície, o que está aparente. Quero perceber a racionalidade específica da comunidade de Mateus. Ou seja, quero me aproximar das representações que esta comunidade tinha de si mesma (seus líderes de si mesmos) e quais as implicações de poder deste saber. Até para entender melhor o que fez deste saber específico, tão poderosamente universal. Ao recolar estas re/presentações do texto de Mateus 9.9-13, também estou atento ao silêncio, aos interstícios, ao não-dito, ao mal-dito. Quero o óbvio e o obtuso. Isto sob a égide de Lacan: O discurso consciente é um pouco como estes manuscritos sobre os quais se apagou um primeiro texto para cobri-lo com outro. Não obstante, nestes manuscritos, o primeiro texto é sempre perceptível nas falhas, nos espaços, do segundo.9
Então, não procuro ingenuamente Os Passos Perdidos a la Carpentier: mas, quem sabe, tão-somente fragmentos dos primeiros textos de/sobre Jesus, ao redor do qual a comunidade de Mateus se doutriniza, como sendo a encarnação dos ensinamentos de Jesus.
Um ex-colono, que conhecia a benzedeira, levou-me até ela. Luísa nos recebeu dizendo que aprendera tudo de sua mãe e que esta aprendera do seu avô, que curava Deus e todo mundo. Ao referir-se à sua prática, enfatizou que só curo o que é possível. Este texto pergunta: Qual era o possível da comunidade de Mateus? O que sua prática im/possibilitava?
Em livre associação, chego às Lágrimas de Eros. Neste livro, George Batail-le nos leva à (assim considerada) primeira obra de arte do homo sapiens, inscrita na paredes de uma caverna em Lascaux, França, por volta de 13.500 a.C. Naquela galeria de arte esconde-se e revela-se, segundo Bataille, o paradoxal enigma entre morte e erotismo, cuja verdade continua a se afirmar e a afirmar o que distingue o humano do animal — a consciência da morte: Permanece escondido na medida em que a mente humana esconde-se de si mesma… A cena é um homem aparentemente morto, estirado frente a um animal imenso, imóvel, ameaçador. Este animal. .. e a ameaça que ele coloca é ainda mais grave porque ele está morrendo: está ferido e suas entranhas estão saindo de sua barriga. Aparentemente foi este homem estendido que, com sua lança, derrubou o animal que está morrendo. Mas o homem não é bem um homem, sua cabeça é de pássaro e termina num bico. Nada em toda esta imagem justifica o fato paradoxal de que o sexo do homem está ereto.10
Bataille está preocupado com o inconsciente ótico. Nas quase inacessíveis pro-fundidades de Lascaux, revelam-se vertiginosas oposições, que são para o escritor extremidades do possível. Penso que o religioso é um dos espaços onde as extre-midades do possível se contextualizam, isto é, se tecem juntas. O religioso tem a ver com o imaginário realizado. A comunidade de Mateus fundou o imaginário de uma igreja universal. Então: que transgressões acontecem ou não nos con-textos das co-munidades religiosas e teológicas, enquanto reconfiguram seus poderios possíveis num Brasil aparentemente e realmente reduzido ao extremo da sobrevivência animal? O que o imaginário da comunidade de Mateus (definido por Perrin e Duling: Cristianismo como obediência à nova revelação)11 im/possibilita?
A análise empreendida aqui está consciente do perigo de conhecer e é orientada pela curiosidade. Levo a sério o modo do esclarecimento Kantiano, colocado como desafio ao ser humano moderno: ousar conhecer.12 Conhecimento é poder. A invisibilidade é constitutiva do poder. Contra poder é um vídeo clandestino, ambiguamente amador, como o de Rodney King, invadindo o espaço público de Los Angeles. O conhecimento encetado aqui é auto-reflexivo, irônico, engajado e, portanto, potencialmente transgressor e, como tal, experimental. O que faço aqui é intrinsecamente incompleto e contestável. Como coloca Mary Louise Pratt, não é pos-sível livrar-se inteiramente de tropos. O que é possível, entrementes, é apropriar e inventar novos tropos.13 Digo isto porque não suporto o conhecimento gerado por Mateus, que transforma o desconhecido que um dia o chamara para uma identidade talvez fluidamente nômade num Jesus que confronta fariseus (representados como bandidos) com um conjunto de instruções a serem incondicionalmente obedecidas, a fim de que a igreja se con/solide como o futuro possível, já que a parusia era uma invenção que não dera certo.
3.
Na outra semana, fui visitar Vó Minda no ancionato em Ivoti. Ela estava conversando com uma amiga, que, para minha coincidência, havia sido casada com um dos irmãos do Pedro Laux.14 Introduzi o assunto da benzedura. Mencionei Luisa. Ela cobra. Isto não é certo. Mas parece que vai muita gente lá. Deve ajudar. Mal é que não faz… Mães desesperadas com crianças doentes, ervas, águas de riachos, mijo sobre espigas de milho, poços, benzedura com a mão e com Deus… Aí Vilma mencionou que o velho pastor Brakemeier não gostava disto. Ele vinha lá em casa e dizia que um Pai-Nosso era muito mais eficiente do que dez benzeduras do diabo. Vó Minda reclamava da gripe e entrou na conversa: Nesta semana, eu já rezei mais de quinhentos Pai-Nossos e olha como ainda estou. A comunidade de Mateus nos legou o Pai-Nosso.(Mt 6.9-15). O riso irônico, asilado também subverte poderes germanófilos.
Esta narrativa toma o anátema do Pastor Rotermund à hermenêutica Mucker não como limitação, mas sim como possibilidade de ontologia experimental: Das histórias bíblicas não sobrava muito, tudo rebentava em alegoria, tudo significava algo que ainda deveria ser cumprido.15 Este pastiche não quer construir sínodos, nem tampouco vive em função de destruí-los para reinventá-los iguais em jargonizadas retóricas liberacionistas. Olho para o mundo como um Mucker, deslocado, mudando para nunca mais ser o mesmo, como um sujeito resistindo a todas as tentativas de reducionismo. Nas palavras de Roland Barthes: Que relação posso eu ter com um sistema de poder se não sou nem seu escravo, nem seu cúmplice, nem sua testemunha?16 Segundo Rotermund, Jacobina teria colocado o passado bíblico no futuro. Eis a limitação elementar constitutiva de uma postura sinodal eclesiocêntrica: ignorar o presente. Lembro de Donna Haraway: Ã produção de uma teoria universal e totalizante é um erro central que fracassa em perceber a maior parte da realidade provavelmente sempre, mas certamente agora.17 Os Mucker viveram o presente até o fim, reinventando sua autonomia colona no contexto bíblico.
Penso que movimentos religiosos/culturais são ainda mais perigosos e eficientes ao reconfigurar suas identidades e práticas de cidadania cerca dos básicos da vida. Em meio ao barroco mexicano, Sor Juana Ines de Ia Cruz18 foi expulsa da biblioteca para a cozinha, onde deveria ser dócil e serviçal como uma mulher deveria — futuro do pretérito — ser e, então, parar de questionar. Mas é ali, onde seu corpo é posto sob controle, junto à sabedoria da cozinha, que Sor Juana constrói — e portanto é — um contraconhecimento que não decapita corpo e mente (substantivo e verbo) em essências universais, mas que é inteiro como um ovo frito em manteiga ou azeite: E vendo estas coisinhas, eu só posso dizer que, se Aristóteles tivesse fritado ovos, teria escrito muito mais. E prosseguindo, no meu modo de perceber, digo que isto é tão contínuo em mim, que não necessito de livros… De maneira que aquelas coisas que não se pode dizer é mister ao menos dizer que não se pode dizê-las, para que se entende que o calar não é não ter o que dizer, mas não caber nas vozes o muito que há a ser dito.19 A poesia amorosa de Sor Juana sub-vertia instituições inquisitórias.
Nesse sentido, acho pelo menos mais interessante o jeito das comunidades de Madalena confrontarem as representações dos fariseus.20 Elas não saem tão fácil da sua marginalidade. Apresentam-se como uma puta pecadora, que toca o corpo do desconhecido com suas lágrimas, beijos e unguentos (vide Lc 7.36-50). São rituais eróticos: Não me deste ósculo; ela, entretanto, desde que entrei, não cessa de me beijar os pés… porque ela muito amou… Mas Jesus disse à mulher: A tua fé te salvou; vai-te em paz.
À postura pessimista, mas não fatalista, de Max Weber com respeito à moderna existência humana — a qual eu partilho — reconhece o simbólico como um espaço de possível subversão das regulamentações racionalizadoras da vida. Segundo Weber: O erotismo aparece como o único vínculo que ainda mantém o ser humano conectado à fonte natural da vida… No erotismo, o ser humano se sabe livre das frias mãos esqueléticas das ordens racionais, assim como também completamente livre da banalidade da rotina cotidiana.21
A comunidade de Mateus não vai. Fica em casa. Não beija, faz discursos legalizantes. Ë a tradição mais antiga da igreja universal. Papias, por volta de 130-140 d.C., escreveu que este livro fora escrito por Mateus na tentativa de conferir uma autoridade especial ao que a igreja considerava como o mais importante do seus evangelhos, das suas boas-novas.22. O chamado de Mateus em nossa perícope se reveste, pois, de grande importância, já que passa a se confundir com o imaginário fundante da igreja. Como diz Paul Rabinow: Representações são fatos sociais.23 Uma genealogia a Ia Foucault da eficiente institucionalização do modelo eclesiástico de Mateus em detrimento de outros, como o de Madalena, traz consigo uma possível transgressão presente.
Ao reler o que escrevi até aqui, achei o tom um tanto ambicioso — e corretamente assim.
4.
No princípio, Jesus partiu dali. Salvador Dali. Jesus crucificado no ar, arte, tear. A aranha faz a sua teia com a própria saliva. Ao sair da casa da comunidade de Mateus, Jesus volta a estar entre o mar e a cidade. É então que a comunidade segue o desconhecido com o qual ela se identifica. E sai da instituição onde ela cobra o dever de ser sujeitado, no sentido de posto sob domínio e de tornar-se sujeito. A burocracia desta instituição implica ficar sentado. Quando a memória do desconhecido retorna, já cativa da narrativa que ela funda, Mateus se levanta e a segue. Os escribas da comunidade registram isso como sinal de obediência devida. A liderança sacerdotal repre/senta-se como a encarnação do desconhecido, como seus dis¬cípulos. Ainda é possível ser errante junto a uma memória estranha que vive partindo de narrativas que a aprisionam? As comunidades que agora lêem este texto obe¬decem e ficam sentadas? Ou… o que não sei.
Ao visitar os Isolados do Presídio Central (comunidade de dez apenados HIV positivos e que já tiveram alguma infecção), junto com o grupo de visitação do GAP A (Grupo de Apoio à Prevenção da AIDS), pedimos que os presos desenhassem ou escrevessem algo sobre sua vida naquela comunidade. Luciano perguntou: Mas como colocar a vida no papel?24
Os que escrevem a vida da comunidade de Mateus já construíram uma casa, uma igreja, uma economia. Ficam sentados ao redor de discussões com os fariseus. Estão enredados na sua saliva. Já se estabeleceram como um poder possível. Publicanos e pecadores. Assumiram sua alteridade. Deixaram de ser grupos de risco para ser sociedade. São uma transgressão institucionalizada.
Mateus já é uma autoridade discipular. Parou de seguir. Agora, pode ser encontrado dentro de casa, ao redor da mesa com outros discípulos. O Jesus desta comunidade também deixou de partir. Aliás, Mateus já nem mais se identifica como sendo publicano. Ele é autoridade, e sua autoridade se legitima pela presença de outros publicanos e pecadores. O jogo de poder é extremamente imbricado e paradoxal. Ao redor de Mateus, estas marginalidades encontram espaço público. Neste movimento, elas se generalizam, suas práticas específicas não são mais mencionadas. Nesta instituição, seu cotidiano não parece ser relevante. Publicanos e pecadores são agora categorias que legitimam a suposta novidade daquele modelo comunitário. Os corpos pecadores e publicanos são realmente figurantes. Esta situação me lembra a utilização de pobres, mulheres, índios, negros etc. por tantas igrejas e organizações não-governamentais (ONGs) em projetos de verbas a benevolentes agências d'além mar, enquanto que estas instituições locais cosmeticamente reformavam seus anacrônicos e obsoletos poderios.
O GAPA de Porto Alegre discute no momento as complexas implicações da institucionalização de sujeitos políticos dantes da AIDS tomados como inexistentes. Como diz Gerson Winckler, atual presidente da entidade: Também aqui dentro existe uma tendência de nos tornarmos uma empresa da AIDS e daí nos domesticarmos. Aí vamos acabar reproduzindo os poderes normatizantes e discriminatórios contra os quais lutamos… É evidente que tem horas em que devemos sentar com o Estado; mas tem horas em que também não devemos … Outra tendência aqui, com a qual eu me identifico, acha que temos que vivei na eterna desordem. A chegada da desordem pode nos dar a clareza da descoberta de uma nova forma de viver… Devemos continuar sendo um espaço que permite a representação das diversas culturas com seus jeitos específicos. Trazer um antropólogo aqui para dentro também é parte do processo de institucionalização e cooptação. Há que se fazer o conhecimento a partir da travesti, do homossexual, da puta…25
Os publicanos e pecadores não estão na cena principal da comunidade de Mateus. Eles nem falam. O que importa é a discussão com os fariseus, ou seja, a consolidação do conhecimento daquela comunidade como sendo cientificamente divino. Os fariseus também não fazem perguntas aos pecadores e publicanos. Para Mateus, no entanto, o mais importante é deixar explícito que eles não reconhecem a autoridade de Jesus, que funda a autoridade das lideranças de Mateus. O conflito retórico se dá entre fariseus e discípulos. Por que come o vosso Mestre com os publicanos e pecadores? Na real, a ceia comunitária já não importa mais tanto para Mateus, para a igreja. Não há sequer menção de água ou vinho, ou de outros básicos da vida. Os discípulos não se representam tão corajosos quanto os fariseus. Fogem do confronto com uma estratégia primária. Deixam que seu pai simbólico os defenda da interpelação. O que a comunidade de Mateus ainda lembra de Jesus e que vale a pena ser lembrado hoje é que Jesus ouvia. Ouvir é ato metodológico fundamental. Talvez o neologismo ouver seja ainda mais representativo de como concebo contraconhecimento possível.
Como reacionam as comunidades religiosas que estão lendo este texto face aos questionamentos colocados pela normatização institucionalizada? E também face ao silêncio de publicanos e pecadores?
Mas Jesus, ouvindo, disse: Os sãos não precisam de médico, e sim os doentes (Mt 9.12). Interessa-me a ambiguidade desta afirmação. Jesus não se apresenta como mestre de leis cotidianas, da regulamentação burocrática da vida, mas sim como médico. Não é cura de almas, mas sim de corpo. Como diz Foucault, o corpo é prisioneiro da alma.26 Quem são os são e quem são os doentes? Desafortunadamente, o Jesus de Mateus cura pecados e não corpos. A resistência institucionalizada reivindica posturas genéricas de solidariedade, misericórdia. A situação é de holocaustos. O arrependimento regenera, normaliza os pecadores e publicanos, socializa-os como figurantes que não falam. A comunidade de Mateus quer que os fariseus aprendam este novo discurso institucionalizante, que pretende redefinir a própria tradição constitutiva do saber fariseu. Como diz Ana Cristina César o interlocutor é fundamental.27 Quais são os interlocutores das comunidades religiosas que lêem o mito fundante da comunidade de Mateus hoje? Que práticas são im/ possibilitadas por tal interlocução?
A comunidade de Mateus se apropriou da memória do desconhecido que sentava à mesa e comia junto com as marginalidades de então, reduzindo-a a uma moldura, a um cenário para a fundação do seu poderio doutrinário. É um poderio que se corporifica no que Rabinow chama de interminável auto-análise cristã.28 É um poderio que já silenciou efetivamente as margens que supostamente representava. É neste texto está interessado em chamar seus oponentes ao arrependimento, ou seja, instituir seu saber como normativo, a ponto de vir a ser reverenciado por sábios do Oriente. Que se fartem com seus sucessos.
Enquanto transcrevo algumas palavras do Gerson Winckler, que desdenha o estrangeiro do seu nome, e para quem Deus ou Jesus tanto faz. Ele é um ativista pessimista, que sai pelas noites beijando a feiúra da AIDS e se alimentando do mal. Que podem aprender (não prender) desde contraconhecimento experimental as comunidades religiosas que ainda lêem Mateus e não desejam desdenhar o presente?
Queridos amigos.
Pode ser que vocês não se lembram do dia da eleição na fundação do CAPA. Talvez aqui tenha pouca gente que tenha participado deste processo… José Eduardo deve lembrar disso. E também da cerveja que rolou após a fundação, da euforia da Happy e dos nossos sonhos de luta. Posso também lembrar do Jô, um teatrólogo que circulava muito naquela reunião e não deixava ninguém à vontade… espalhando sua AIDS pelos cantos.
Era uma sala cheia de psicólogos, buscando suas vítimas, religiosos sedentos pela salvação… de qualquer forma, ainda consigo visualizar, naquela sala da Igreja Luterana, os olhos azuis do Leonardo, a euforia de Richard Wanger e muitas outras pessoas que compareceram por lá. Depois começou o serviço. Reuniões e reuniões para discutir quem cuidava dos pacien¬tes, quem fazia psicologia e, por fim, quem rezava (no bom sentido). E os que rezam hoje são os mesmos que rezavam naquele dia. Pelo menos nisso nada mudou…
Lá se vão três anos… voltemos no tempo em que considerávamos emocionante e perigoso misturarmo-nos com putas e travestis… nosso medo de entregar camisinhas… nós nas praças, mortos de medo dos gigolôs e esperando à espreita qualquer canivete. Das reuniões na Senhor dos Passos; putas e travestis se misturando no altar, dando baforadas de seus cigarros e fedendo a álcool da noite anterior, lembram?…
Não sei se éramos loucos ou valentes. Como podemos esquecer quantos chopps toma-dos nas sextas-feiras… Quantos Dani? Lembra? Nossas propostas de rompimento, sonhos enlouquecedores… Depois vieram os baldes e as vassouras, os fins de semana inteiros limpando a nova sede, sacos e sacos de lixo, espantando os fantasmas dos ambientes burocráticos. Do choro do Geraldo, do aperto em nossos corações… quem lembra? A manifestação no Ambulatório, máscaras sobre máscaras… parte da nossa clandestinidade…
Esta reconstituição da memória ninguém fez. E tomei a liberdade de fazê-la porque acho que este é o nosso norte. A possibilidade de sobreviver está acima de tudo nestas visões de resgatar nossas propostas. Exorcizar o processo institucionalizador e romper com esta nova ordem: da normatização. Talvez, se necessário for, tenhamos que devolver os computadores belíssimos, ou os fax… ou quem sabe as máquinas e ganhemos tempo de nos encontrarmos e fazermos militância… Quem sabe possa reaparecer a figura da verdade ao invés do fantasma da traição… Ou se a busca de recursos pode estar matando nossas intervenções políticas, enquanto queremos luxúria ao invés da orgia? (não falo de sexo, mas desta forma nova de nos relacionarmos…).
As comissões estão nos matando no cansaço. Mas que parcerias são estas que escolhemos? A que nos permitimos enquanto ONG em dançar com o Estado? Deixemos os Danis gritarem… de suas formas mais loucas… se fosse uma traveca seria diferente??? Não estamos posando para fotografias…Talvez assim, essa chegada da desordem possa nos dar a clareza de uma nova forma de ser, de construir a possibilidade alternativa, desburocratizada de fazer ativismo. Para mim, só assim podemos reverter este processo, de colisão com o nada: nossa especialidade tem que ser CIDADANIA, um processo que nos leve â autonomia…
Não podemos ser governo e ONG, e nem toda a esmola é bem-vinda, as formas de cooptação estão aí escancaradas… nós temos sim é que buscar a participação dos doentes de AIDS na discussão de seus tratamentos, da participação do movimento negro, indígenas e formas de movimentos desconhecidos… instrumentalizar a mobilização, isto sim, ao invés de fazer o trabalho do Estado… Podemos pensar numa nova forma de ativismo. Deixando de lado as vaidades de cada um, refletindo sobre o nosso papel dentro desta entidade, e sem termos vergonha de nossa falta de 'organizacionismo'.
Deixemos nosso sangue gritar nas veias para fechar as portas da Odonto, garantindo a seriedade de nosso trabalho. Deixemos os portadores do Vírus passar quebrando os cristais. .. Deixemos nos beijar na boca, e chorar pela feiúra da AIDS… criando novos rumos, construindo um novo espaço, não institucional, não normatizador, mas sim um espaço de luta, em que todos os seres plurais possam discutir estas novas formas de pensar… Ainda é tempo de nos vermos uns aos outros e podermos dizerem que erramos ou no que deixamos de acertar. ..'29
Daí recordo ainda a sabedoria de um im/paciente com AIDS no hospital do Presídio Central de Porto Alegre: A gente não quer ser atendido por médico que só entende de pulmão. Precisamos de especialistas em AIDS. Já falei prós médicos deixarem de usar ratos e macacos. Eu quero ser cobaia da vacina da cura.30
Notas bibliográficas
1 The Concept of Cultural Translation in British Social Anthropology in James CLIFFORD e George MARCUS. Writing Culture: The Poetics and Politics of Etnography, Berkeley, University of Califórnia Press, 1987, p. 156.
2 Entrevista realizada em 28/05/1992.
3 Norman PERRIN e Dennis DULING, The New Testament: An Introduction, San Diego, Harcourt Brace Janovich, 1982, p. 263.
4 James CLIFFORD, The Predicament of Culture; Twentieth Century Etnography, Literature and Art, Cambridge, Harvard University Press, 1988, pp. 11, 12.
5 Vide minha dissertação Jammerthal, o Vale da Lamentação: Crítica à Construção do Messianismo Mucker, Santa Maria, UFSM, 1991.
6 E a natureza finalmente se tornará artificial in Ciência & Ambiente, Santa Maria, Editora da UFSM, n° 2, 1991, p. 70.
7 Vide PERRIN e DULING, op. cit., pp. 264ss.
8 Bruno LATOUR, Drawing Things Together, in Michael LYNCH e Steve WOOLGAR, Representations in Scientific Practice, Cambridge, MIT Press, 1990, p. 58.
9 In Jean Baptiste FAGES, Para Compreender a Lacan, Buenos Aires, Amorroru, 1973, p. 47.
10 George BATAILLE, The Tears of Eros, San Francisco, City Lights, pp. 50, 51.
11 PERRIN e DULING, op. cit., p. 263.
12 Vide What is Enlightment? in Paul RABINOW, The Foucault Reader, New York, Pantheon Books, 1984, pp. 32ss.
13 Marly Louise PRATT, Fieldwork in Common Places in CLIFFORD e MARCUS, op. cit., p. 50.
14 Entrevista realizada em 31/05/1992.
15 Die Arbeit unter den Evangelischen Deutschen in Brasilien — sechster Bericht,
Barmen, 03/1876 (Evangelisches Zentralarchiv, Berlin).
16 Roland BARTHES, A Lover's Discourse — Fragments, New York, Noonday Press, 1990, p. 90.
17 Donna HARAWAY, A Manifesto for Cyborgs in Linda NICHOLSON, Feminism and Postmodernism, New York, Routledge, 1990, p. 223.
18 Vide o trabalho de Octavio PAZ, Sor Juana, Cambridge, Harvard Universily Press, 1988.
19 No final de 1690, Sor Juana tem publicado, com o apoio do bispo de Puebla, Manuel Fernandez de Santa Cruz, a Carta Atenagórica, onde critica o jesuíta António Vieira. A repercussão junto às autoridades foi grande. O próprio bispo de Puebla ambiguamente a admoestara. Na Respuesta (in Reader Spanish 113, Berkeley, University of Califórnia, 1991, p. 458), ela como que atualiza metaforicamente sua situação numa cena do passado, quando fora enviada à cozinha por um período de três meses.
20 Vide Elizabeth SCHÜSSLER FIORENZA, In Memory of Her, New York, Crossroad, 1983.
21 In Gerth and Mills, From Max Weber: Essays in Sociology, New York, Oxford University Press, 1946, p. 346.
22 Vide Walter GRUNDMANN, Das Evangelium nach Matthäus, Evangelische Verlagsanstalt, Berlin, 1971, pp. 27ss.
23 Paul RABINOW, Representations are Social Facts: Modernity and Post-Modernity in Anthropology in CLIFFORD e MARCUS, op. cit., p. 234.
24 Entrevista realizada em 11/06/1992.
25 Entrevista realizada em 26/06/1992.
26 In Paul RABINOW, The Foucault Reader, p. 177.
27 Ana Cristina CÉSAR, Inéditos e Dispersos, São Paulo, Brasiliense, 1985, p. 198.
28 Paul RABINOW, The Foucault Reader, p. 344.
29 Carta de Gerson Winckler aos amigos do GAPA, lida na reunião de 15/06/1992, Porto Alegre.
30 Entrevista realizada em 11/06/1992.