Prédica: 1 Coríntios 15.50-58
Leituras: Mateus 22.23-33 ou João 5.24-29
Autor: Valdemar Witter
Data Litúrgica: Dia de Finados
Data da Pregação: 02/11/1994
Proclamar Libertação – Volume: XIX
1. Introdução
Quando Paulo voltou de Éfeso a Corinto, ele recebeu boas notícias de seus companheiros e ouviu também sobre os problemas e dúvidas. Várias pessoas que se haviam convertido ao cristianismo já tinham morrido. Isso suscitou perguntas, como por exemplo: Será que aqueles que morreram antes da parusia estão excluídos da salvação final? O próprio fato de que tal questão surgiu mostra como Paulo deve ter falado de forma realista da iminência da volta de Cristo. A ideia de que alguém dos que morreram ressuscitaria nunca ocorrera a seus ouvintes. O apóstolo Paulo tratou então desse assunto, dizendo que nem os que já morreram na fé tampouco os sobreviventes se perderão. Ressuscitados e transformados se encontrarão com seu Senhor. Com respeito ao tempo e à hora da parusia, essa questão não se pode responder e perde sua importância. O que importa é que os fiéis vivam como filhos do dia e da luz.
2. Comentários
O ser humano é, por essência, um ser a caminho de si mesmo. Procura realizar-se em todos os níveis, no corpo, na alma e no espírito, na vida biológica, espiritual e cultural. Mas, nesse anseio, é continuamente obstaculizado pela frustração, pelo sofrimento, pelo desamor e pela desunião consigo mesmo e com os outros. O princípio esperança que está nele faz com que elabore constantes utopias, como por exemplo: a República de Platão, a Cidade do Sol de Campanella, a Cidade da Eterna Paz de Kant, o Paraíso do Proletariado de Marx, o Estado Absoluto de Hegel ou, se quisermos ainda, o lugar onde não há lágrimas nem fome e sede, dos nossos índios Tupi-Guarani. Todos suspiramos como o apóstolo Paulo: Quem me livrará deste corpo de morte (Rm 7.24)? Ou ainda ansiamos, com o autor do Apocalipse, pelo lugar onde a morte não existirá mais, nem mais luto, nem prantos, nem fadiga, porque tudo isso já passou (Ap 21.4).
A ressurreição de Cristo quer ser essa utopia realizada dentro do nosso mundo. Ressurreição significa também a escatologização da realidade humana, a introdução do ser humano corpo-alma no Reino de Deus. Com isso são aniquilados todos os elementos alienatórios que dilaceravam a vida, como a morte, a dor, o ódio, o pecado. A esperança humana se realizou no Jesus Ressuscitado, e a partir daí, para o cristão, não existe utopia, mas sim topia se realizando em cada ser humano.
3. Mensagem
Ao lado da passagem que se liga a Oséias 6.2 (depois de três dias, Ele ressuscitará), encontram-se ditos totalmente diversos sobre os três dias. Depois de três dias, diz Jesus, será construído o novo templo (Mc 14.58 e par.). Hoje e amanhã, ele expulsa demônios e realiza curas; no terceiro dia, ele será consumado (Lc 13.32). Hoje, amanhã e no dia seguinte, ele prosseguirá no seu caminho e, depois disso, sofrerá em Jerusalém a sorte dos profetas (Lc 15.33). Ainda um pouco de tempo e eles não mais o verão, e ainda um pouco de tempo e eles o verão. Hoje, eles estão vivendo em comunidade com ele; amanhã será a separação e, no terceiro dia, o retorno (Jo 16.16). Assim fica claro que Jesus anunciou de muitos modos a reviravolta de Deus. Nessa morte, o que se concede ao Servo é a vida, da qual Deus é a fonte e da qual se pode participar com ele.
A absolvição de Deus não é um como se, não é uma mera palavra, mas sim a Palavra de Deus que opera e cria vida. A Palavra de Deus é sempre uma palavra efetiva. Enquanto penhor da absolvição final de Deus, a justificação é um perdão no sentido mais pleno. É o começo de uma vida nova, de uma nova existência, de uma nova criação pelo dom do Espírito Santo. Como disse Lutero: Lá onde existe a remissão do pecado, existem a vida e a salvação.
A ressurreição de Cristo suscitou a esperança de ressurreição para todos. Na primeira visão paulina, o Espírito, que é a própria presença do Ressuscitado no mundo, substitui a Lei. Urge aguentar um pouco, esperar ardentemente, não se preocupar com as coisas deste mundo, a observância legalista e piedosa de suas ordens, porque tudo isso em breve será tragado pela vitória de Cristo. Sempre que Paulo fala da morte de Cristo, é numa correlação com a ressurreição: aquele que foi morto, esse foi ressuscitado e vive.
Problemas concretos na comunidade ameaçavam exatamente esse conteúdo teológico da ressurreição. A temática da ressurreição estava se tornando ópio, matriz de um entusiasmo que pervertia a vida e invertia todas as normas. São vários inimigos que Paulo encontra e que falsificam a Boa Nova da ressurreição. Nas concepções deles, não cabia a cruz.
O tema principal deste texto é a ressurreição, que inaugurou a novidade do mundo, mas seu pano de fundo é a morte. Só com esse pano de fundo tem sentido falar de ressurreição. Caso contrário, seria mitologia grega. Não haveria nada de novo. Paulo se confronta com pessoas que se converteram à fé cristã mediante a pregação paulina, mas que distorceram intuições teológicas suas. Afirmavam: Já não mais haverá ressurreição. Nós já somos agora ressuscitados. A recepção do Pneuma no Batismo (l Co 6.11) era representada de forma tão concreta, que se consideravam já ressuscitados.
Documentavam a posse do Espírito de ressurreição com carismas espirituais e de sabedoria (l Co l .20; 2.4-13; 12.8). Esses que viviam nesse entusiasmo quase fanático se distinguiam dos carnais ou imaturos (3.3; 13.11). Os espiri¬tuais se imaginavam já na plenitude e na ressurreição. Não criam numa futura ressurreição, porque ela já acontecera (15.12; 2 Tm 2.18). Daí não se importavam mais com o Jesus terreno e crucificado. Interessavam-se só pelo ressuscitado.
Em nome da ressurreição já acontecida, postulavam plena liberdade (9.1,19; 10.29; 7.21); tudo lhes era permitida (6.12; 10.23). Consideravam a moral já supera da. Frequentavam a prostituição (6.13ss.), participavam dos sacrifícios pagãos c comiam das carnes sacrificadas (8.lss.; 10.23ss.); passavam por cima dos outros mais fracos, como passavam por cima do próprio Jesus crucificado.
Aquilo que Paulo esperava para o futuro próximo, esses helenistas convertidos traduziam numa escatologia presente, num entusiasmo psíquico sobre uma plenitude e perfeição já alcançada. Paulo desfez as ilusões dos entusiastas e os confrontou com as realidades concretas do tempo presente, onde vigoram carne e sangue. Enquanto houver carne e sangue não haverá Reino presente em plenitude. O Reino já está aí com o Batismo, a fé, a Santa Ceia, o Pneuma; mas também subsiste a carne com suas obras. A cruz mostra o que pode a carne: Matar e levar à morte. Cristo foi morto por obra da carne. Daí o cristão deve viver uma dimensão ascética. A esperança na ressurreição não o transporta já para o mundo futuro. Ele tem que viver sua esperança dentro do velho mundo, onde impera pecado. Daí o dever de prudência, do seguimento humilde da cruz, da renúncia, do cuidado pelos outros e do amor para com todos. Viver a cruz assim é experimentar poder e sabedoria de Deus.
A ressurreição não pode ser entendida como sublimação da situação presente do homem. Ela só tem sentido se o homem morrer. Então ele pode ser reassumido e plenificado, não por seu próprio esforço e criação, mas por obra de Deus. Daí é que a ressurreição introduziu algo novo e qualitativo na história: a intervenção escatológica de Deus, pela ressurreição. Quem está em Cristo é nova criatura; o velho já passou (5.17). Isso deve ser entendido assim: Quem vive conforme Cristo viveu e por isso está em Cristo — portanto, assumiu a morte e a cruz — é nova criatura e ressuscita. Essa novidade de vida já está presente, mas não totalmente, pois ainda sofremos e penamos. Porém, ela fundamenta a esperança e a confiança naquele que ressuscitou os mortos para a vida.
Paulo, que fora fariseu e fizera a experiência do que significava viver sob a lei, moveu uma campanha teológica rigorosa contra a contaminação legalista do cristia¬nismo. Quem faz depender sua salvação da observância da lei está perdido. Nunca chega a cumpri-la de tal maneira que possa estar seguro. Está sempre devendo alguma coisa e, por isso, sob a força do pecado (l Co 15.56; 2 Co 3.23). Deus nos libertou do poder da lei mediante o nascimento, morte e ressurreição de Jesus. Eis o novo a ser lembrado neste dia, em contraposição ao velho.
A justiça de Deus tem o seu fundamento tanto no evento da crucificação quanto da ressurreição, isto é, tanto na sua morte como na sua vida. Quanto ao ter morrido, ele morreu ao pecado uma única vez; quanto a viver, porém, ele vive para Deus. Portanto, também vós considerai-vos ter morrido ao pecado para que vivais em Cristo Jesus, nosso Senhor (Rm 6.10). A justiça de Deus que se revela não encontra sua medida no pecado que ela destrói, mas na nova vida do domínio do Cristo Ressuscitado. Uma imagem de esperança contra a morte que não fundamenta o amor para a vida e a prontidão amorosa para morrer sempre traz em si o germe da resignação.
4. Algumas reflexões e ideias visando a pregação
Na doutrina paulina da ressurreição destacam-se dois elementos:
1) a afirmação da esperança cristã na ressurreição;
2) a afirmação de que essa esperança se realizará.
Levados pela influência grega que desprezava o corpo e só acreditava no espírito como constitutivo do ser humano, muitos coríntios, de fato, negavam a ressurreição elos mortos. Porém, se esse era o motivo da negação da ressurreição, teriam também de negar a de Cristo. No entanto, isso era absurdo, pois a fé tinha por objeto precisamente a ressurreição de Cristo: Cristo ressuscitou dos mortos, primícias dos que adormeceram.
Perguntas que muitos se fazem neste Dia de Finados: Por que… não pode mais estar conosco? O que aconteceu com os entes queridos? Como será a nossa ressurreição? O apóstolo Paulo responde dizendo: Os mortos ressuscitarão em incorrupção, em glória e em força numa realidade humana totalmente repleta de Deus. Esse corpo terreno, assim como está, não pode herdar o Reino de Deus. Ele será transformado. O germe da ressurreição já está depositado no ser humano pela fé, pela esperança, pelo seguimento do Evangelho e pelos Sacramentos. Todos os que se revestiram de Cristo são nova criatura, e a plenitude da vida já se manifesta parcial¬mente agora em todas as experiências do poder de Deus, que medeia nossa existência.
Estudando l Co 15.50-58 em grupos, surgiram ideias e interpretações que podem nos ajudar na atualização da mensagem. Transcrevo, a seguir, algumas colocações feitas:
— Explicar o que significa: carne e sangue não podem herdar o reino de Deus;
— Quem não é mais ninguém e volta para o caminho da lê, isso é ressurreição;
— Podemos acordar para a vida sem ter morrido;
— A vida precisa ser preparada. Quem não tem fé (em medo da morte;
— Tudo o que se fizer em Deus não é em vão;
— Diante da doença e da morte a vida exige firme/a, paciência;
— Nesta vida nem todos dormem. Alguns agem;
— Os vivos também podem estar mortos. Há dias em que tanto faz, não vemos sentido em nada;
— A vida continua. Estava triste, li a Bíblia e me animei;
— Pivetes não têm casa, nem escola, nem família – isso também é sinal de morte.
5. Subsídios litúrgicos
1. Confissão de pecados: Senhor, nosso Deus, tu és o Criador de toda a vida. Neste dia chegamos, mais uma vez, diante de ti, lembrando dos entes queridos que não mais vivem conosco. Reconhecemos que, muitas vezes, lhes ficamos devendo o amor, a solidariedade, a compreensão. Por isso te pedimos: Perdoa as nossas omissões e falhas. Perdoa quando não nos empenhamos devidamente para colocar sinais de vida ali onde a morte quer dominar. Dá-nos força e sabedoria para fazer o bem àqueles com os quais convivemos. Escuta quando pedimos: Têm piedade de nós, Senhor!
2. Oração de coleta: Senhor, neste momento de silêncio, queremos ouvir a tua Palavra, o que tu tens a nos dizer hoje, no Dia de Finados, em relação à nossa vida neste mundo. Aqui estamos diante de li, jovens e velhos. Buscamos a vida plena, planejada e oferecida por ti. Dá-nos força para lutar pela vida justa. Abre os nossos ouvidos e corações para que a tua Palavra encontre em nós solo fértil e produza frutos da fé, ressuscitando sinais de vida e esperança. Amém.
3. Oração final: Orar pelos enlutados e entristecidos; pelos que sofrem e estão doentes; pelos que ainda sentem saudades dos entes queridos; pedir que Deus ajude a guardar as boas lembranças daqueles que já partiram dessa vida terrena; pedir que todos ouçam a Palavra de Deus, acreditem na promessa de Jesus Cristo; que Deus nos encoraje a lutar por vida digna para todos neste mundo, pois a vida eterna já nos é oferecida por dádiva; agradecer a Deus que, por intermédio de Jesus Cristo, nos oferece a possibilidade de passar da morte para a vida; agradecer pelo encontro no culto e pelo convívio com as visitas deste dia nas famílias; agradecer pela vida que Deus ainda mantém em nós para fazer dela seu instrumento no mundo.
6. Bibliografia
GOPPELT, L. Teologia do Novo Testamento. Vol. 2, São Leopoldo, Sinodal, 1983. BOFF, L. Jesus Cristo Libertador. 8a ed., Petrópolis, Vozes, 1980.
KÜMMEL, W. G. Síntese Teológica do Novo Testamento. 2a ed., São Leopoldo Sinodal, 1979
SCHEFFBUCH, Winrich. In: Neue Calwer Predigthilfen, Vol 4-A, pp. 253ss, Calwer Verlag, Stuttgart, 1981.