Prédica: 1 Samuel 3.1-10 (19)
Leituras: 1 Coríntios 6.12-20 e João 1.43-51
Autor: Martin Volkmann
Data Litúrgica: 2º Domingo após Epifania
Data da Pregação: 16/01/1994
Proclamar Libertação – Volume: XIX
Tema: Epifania
1. Introdução
A proposta de textos bíblicos para este domingo surpreende em duplo sentido: por um lado, a delimitação do texto do AT, que sugere o v. 19 apenas como acréscimo possível, referindo-se às palavras de Javé que Samuel não deixa cair por terra. Mas essas palavras são deixadas de lado no texto, pois é justamente no v.11 que Javé começa a falar. Além disso, os vv. 20-21 são um complemento indispensável para o v. 19. Quem acrescenta o v. 19 tem que incluir também os outros dois, possivelmente também a primeira parte de 4.1. Portanto, com relação à delimitação do texto de prédica, há necessidade de alguma consideração maior. Por outro lado, é estranha a combinação de textos. Entre o texto do AT e o Evangelho ainda dá para perceber alguma relação: em ambos se trata da vocação de pessoas. Mas a epístola aborda bem outra temática; enfoca um tema ético. O que determinou essa composição dos textos? Ao longo de minhas considerações iniciais ainda não percebi um elemento comum que possibilitasse uma reflexão conjunta, visando a unidade do evento litúrgico. Pensei seriamente em sugerir deixar fora, neste domingo, a leitura da epístola. Não para fugir da temática ali abordada, mas por causa da falta de relação para com os demais textos.
2. O texto de l Sm 3
2.1. Contexto
A unidade proposta para a reflexão deste domingo faz parte de um conjunto maior, ou seja, l Sm 1-3, as assim chamadas narrações da infância de Samuel. Esse conjunto contém, por um lado, a caracterização de Samuel, desde a descrição do lar paterno com a piedade materna (1.9ss.; 2.1ss.), a promessa de dedicar o filho ao serviço de Deus, caso fosse abençoado com tal dádiva, e o cumprimento dessa promessa, após o nascimento do filho (cap. 1), que cresce junto ao santuário de Silo, sendo introduzido no serviço cúltico (2.11ss.; 3.1). Por outro lado, essas narrativas mostram a decadência da casa de Eli, sacerdote de Silo e tutor de Samuel (2.12ss.; 2.22ss.; 3.11ss.), e o anúncio do juízo contra a casa de Eli (2.27ss.; 3.11ss.), justifi¬cando, assim, o surgimento de uma nova liderança.
Qual o objetivo desse conjunto todo? E qual o papel de Samuel: sacerdote ou profeta?
Sem dúvida nenhuma, a narração apresenta Samuel servindo no santuário de Silo (2.11,18s.), destacando, em breves observações intercaladas (2.21b, 26; 3.19), como o mesmo vai se desenvolvendo nesse serviço. Com isso, essas narrativas vão sugerindo que Samuel será o sacerdote sucessor de Eli, em substituição a seus filhos corruptos. Mas dificilmente essas histórias objetivam enquadrar Samuel na categoria de sacerdote, porque ele nem tem os pré-requisitos para tal, pois não é da linhagem sacerdotal. A prova para tal são os vv. 3.19-4.Ia, que representam a conclusão dessas narrações da infância e, por sua vez, o objetivo desse conjunto todo. Esses versículos justamente destacara que Samuel tornou-se o profeta de Javé, reconhecido em todo o Israel. Assim, as narrações da infância visam legitimar Samuel como o legítimo sucessor de Eli. Samuel — como profeta — passa a assumir função diretiva sobre todo o Israel (cf. Mommer, pp. 24-31). Samuel cresce no santuário de Silo, e tudo tende a que ele se torne o grande sacerdote de Israel. Mas, por vocação de Javé (3.1-10 — o texto específico de nossa reflexão), ele passa a ser mais: ele se torna profeta. Com isso ele passa a ser o grande líder espiritual do povo.
Mas não se pode deixar de considerar também a continuidade da narração, onde Samuel cada vez mais aparece em conexão com as grandes questões de ordem política (l Sm 8; 10; 16). E aí, além de profeta, ele é caracterizado como juiz (7.15-17). Dessa forma, Samuel se torna a liderança de Israel, em todos os sentidos. Depois de Moisés, Samuel é o grande líder, maior do que os profetas posteriores e, em certo sentido, um precursor do Cristo. Ele, de certa forma, preconiza o triplo ministério de Cristo: rei, sacerdote, profeta (cf. Hertzberg, p. 31).
Assim, a partir dessa nossa reflexão inicial sobre o contexto, já transparece a necessidade de considerarmos esses versículos finais do conjunto — 3.19-4.1a — como parte de nossa perícope.
2.2. Análise de detalhes
Os vv. 1-3 descrevem o ambiente da cena a seguir. Samuel se encontra no templo de Silo, onde exerce serviços junto a Eli. Esse, já velho, com a visão afetada, não tem mais condições de exercer plenamente suas funções. Por isso Samuel precisa ficar vigiando no santuário: Cuidar da arca? Ou da lâmpada de Deus para que não apague antes do tempo? O texto não o diz expressamente, mas sugere isso. Alguém deve ficar cuidando do santuário e dos seus utensílios.
A introdução ainda aponta para um outro detalhe importante, que vai determinar também todo o conjunto a seguir: Naqueles dias, a palavra do Senhor era mui rara e as visões não eram frequentes (v. 1b). Em torno desses dois aspectos gira toda a narração a seguir: uma teofania em que Deus fala a Samuel e que redunda na vocação de Samuel.
Os vv. 4-9 descrevem três vezes praticamente a mesma cena: Deus chama Samuel pelo nome; Samuel atende ao chamado e se dirige a Eli, porque supõe que é esse que o chama; Eli manda-o de volta a seu leito. Apenas por ocasião da terceira vez, Eli percebe que algo especial está ocorrendo — então entendeu Eli que era o Senhor quem chamava o jovem (v. 8). Por isso dá a orientação ao jovem de como deve reagir, caso volte a escutar a voz: Fala, Senhor, porque o teu servo ouve.
Em meio a essas cenas, retomando a observação inicial (v. 1b) e, de certa forma, justificando a incompreensão de Samuel, o autor inclui a observação de que Samuel ainda não conhecia Javé e que ainda não lhe tinha sido manifestada a palavra do Senhor (v. 7).
O v. 10 leva a cena ao auge: Javé vem e fica postado junto a Samuel. Nas cenas anteriores, apenas chamara Samuel; agora é dito expressamente que Javé entra em cena em pessoa. E, como das outras vezes, chama novamente Samuel. Esse segue rigorosamente a orientação de Eli e responde: Fala, pois o teu servo ouve. Deixa fora o nome de Deus, porque agora sabe que é Ele quem fala. O verbo ouve está no particípio. Expressa, dessa forma, a disposição para o ouvir: Fala, pois teu servo está pronto para ouvir.
Os vv. 11-14 trazem o conteúdo da mensagem de Javé a Samuel: o anúncio do castigo contra a casa de Eli (cf. 2.27ss.). Os vv. 15-18 relatam o encontro de Samuel e Eli, a quem o jovem não pode deixar de comunicar o anúncio de Javé. Chama a atenção aí (v. 18) a reação de Eli — semelhante a de Samuel antes, quando se coloca à disposição de Javé: É o Senhor; faça o que bem lhe aprouver.
Esses versículos podem ser excluídos do texto de prédica, tendo em vista o contexto e a mensagem bem específicos para o momento: juízo contra a casa de Eli. Importa ver a relevância de Samuel para Israel, que transparece no contexto maior e para a qual apontam os vv. 3.19-4.1a. Por isso, esses versículos devem fazer parte do texto de prédica. Aí se destacam os seguintes aspectos:
a) Javé permanece ao lado de Samuel (enquanto se afastara da casa de Eli — 3.11ss.);
b) Javé continua a se revelar a Samuel (enquanto antes a palavra de Javé era mui rara – v. 1); c) Samuel não deixa cair por terra nenhuma das palavras de Javé (enquanto os filhos de Eli não dão ouvido à palavra de Javé, através de Eli — 2.25c);
d) todo o Israel reconhece em Samuel o profeta de Javé (enquanto dos filhos de Eli eles só têm reclamações — 2.23).
Perpassa todo esse conjunto, como espinha dorsal, um termo em torno do qual gira toda a questão: palavra de Javé — dabar Jaweh. No v. l, é dito que a palavra do Senhor era mui rara. No meio do relato das manifestações de Javé, o autor justifica a incompreensão de Samuel com a observação: ainda não lhe tinha sido manifestada a palavra do Senhor (v. 7). Nos vv. 9 e 10, aparece o verbo: Fala, Senhor! Nos vv. 3.17-4.Ia, o termo, na forma verbal e substantiva, consta nove vezes: cinco vezes no v. 17 e uma vez nos vv. 18, 19, 21 e 4.1a. Fica evidente, a partir desse levantamento, que é em torno da palavra de Javé que se desenrola toda a cena: de palavra rara, no início, ela se torna palavra frequente para todo o Israel no final, depois que Samuel se dispôs a ouvir essas palavras e não deixou cair por terra nenhuma delas.
3. Repensando o texto
A palavra de Javé é o centro do texto. Em relação a essa palavra, no entanto, o texto descreve uma mudança radical: de palavra mui rara no início ela se torna palavra frequente. O outro elemento central do texto é o personagem Samuel: de alguém que ainda não conhecia Javé ele passa a ser aquele através do qual a palavra de Javé é transmitida ao povo de Deus. Assim como em relação à palavra de Javé o texto descreve uma mudança, o mesmo também vale com respeito a Samuel. Ele passa a ser o profeta de Deus, porque ele se dispôs a ouvir e, depois, não deixou cair por terra nenhuma das palavras de Javé.
Nosso texto inicia, pois, com a constatação de que Deus silencia. Também em outras passagens a Bíblia nos fala desse silêncio de Deus (l Sm 28.6; Am 8.11ss.). E em todas essas passagens fica evidente que o silêncio de Deus tem uma única razão: a desobediência de seu povo. Mas, se olharmos mais de perto para essas passagens, veremos que a desobediência diz respeito principalmente à liderança: são os filhos de Eli — os sacerdotes de Silo; é Saul — o novo rei; é a elite econômica e política na época de Amos — os detentores do poder. O silêncio de Javé se deve, pois, ao fato de que aqueles que são responsáveis pela orientação do povo de Deus não estão cumprindo o seu dever. Será esta a nossa situação, encarregados que somos do anúncio da palavra de Deus? Como pregadores, desempenhamos função de liderança na comunidade. E da nossa obediência à palavra de Deus depende a obediência da comunidade. Se Deus silencia, é porque nós não o deixamos falar.
Mas não seria correto ver a desobediência exclusivamente nos líderes. O povo de Deus também é desobediente, seja não dando ouvidos a sua palavra, seja escutando mais a voz de Eli do que a do próprio Deus.
Apesar do silêncio de Deus, o culto a Ele continua. O contexto de nossa passagem está cheio de exemplos disso. E, apesar de toda a religiosidade, Deus cala. Em nossos dias, a situação não é diferente com relação à vida de culto. Em nossas comunidades, há culto regularmente nas igrejas, os sacramentos são celebrados e os ofícios, oficiados. A comunidade ouve a palavra pregada e participa da instrução na fé. Ela vive a sua religiosidade. E, em geral, pode-se dizer que há uma forte religio¬sidade entre o povo, independente de sua crença específica.
Mas será que, em meio a toda essa vivência cúltica, a palavra de Javé realmente está sendo ouvida? Será que toda essa religiosidade nos atinge no fundo de nosso ser e passa a determinar o nosso dia-a-dia? Deus é realmente o Senhor sobre todos os senhores, criador e mantenedor de tudo o que existe? Ou ele é apenas o ídolo criado à nossa imagem, o Deus da nossa própria piedade?
Samuel, que em meio a e apesar de toda celebração cúltica ainda não conhecia o Senhor, é chamado e convocado mediante a menção do próprio nome. Samuel ouve o chamado de Deus e a sua palavra, que Ele tem a dizer nesse momento e nessa situação concreta. Apesar de se enganar, de pensar que o chamado vem de outro lugar — afinal, era ali, nesse, local, nessa forma de culto, nesse representante de Deus que Samuel está acostumado a escutar a voz de Deus — apesar de se enganar inicialmente por diversas vezes (!), Samuel ouve o chamado de Deus ali. Para a nossa reflexão é importante considerarmos isso: apesar de Deus ficar em silêncio quando o seu povo lhe desobedece, Ele volta a usar esses meios tradicionais da sua presença e fala para se comunicar. Quer dizer, na igreja da Palavra, através de sua pregação, de seu ensino, de seus ofícios, na leitura da Escritura a palavra de Deus pode e quer ser ouvida. Isso não significa garantia, certeza incondicional. Silo foi destruída. E o templo de Jerusalém da mesma forma. Mas a palavra de Javé abre espaços onde e quando agrada a ele. Condição única para tal é a disposição para o ouvir. E Samuel se dispôs a ouvir.
Isso diz respeito, antes de mais nada, a nós mesmos, os pregadores. É evidente que não somos como Samuel. Nosso texto justamente destaca a grande importância que esse personagem passa a ter para todo o Israel. Mas, de certa forma, nós somos também os seus sucessores, pois é através de nós que Deus quer falar para o seu povo. Não se trata de nos arrogarmos a exclusividade nessa tarefa. O próprio texto de hoje nos desautoriza a pensar assim, pois Deus escolhe para ser seu profeta alguém que, à primeira vista, não teria condições para tal: ele não é da linhagem sacerdotal. Mas com Samuel, à semelhança de Moisés no Egito, Deus abre um novo canal de comunicação com seu povo, onde os canais normais estão entupidos. Fu isso importa que nós ouçamos o falar de Deus, para transmitir a sua palavra adiante a seu povo, para que Deus não precise abrir sucessivamente novos canais dê comunicação, porque os normais estão obstruídos.
Muitas vezes, muitas pessoas apenas escutarão Eli chamar. Mas ali onde, através da pregação dos Elis de hoje, pessoas são atingidas no íntimo do seu ser, ali Deus mesmo fala. Onde pessoas percebem: isso vale para mim, ali Deus mesmo está chamando. Onde em meio à rotina normal da vida da comunidade alguém percebe um desafio específico para a sua pessoa, ali Deus o está chamando pelo seu nome. E aí importa seguir o exemplo de Samuel: Fala, Senhor, porque o teu servo está ouvindo. E a seguir não deixar cair por terra nenhuma de todas as suas palavras.
4. Encaminhando a pregação
Samuel e a palavra de Deus — em torno disso girou toda a nossa reflexão. De um Deus que deixara de se manifestar o texto nos conduziu, ao longo da revelação de Deus a Samuel, para um Deus que confirma Samuel como o seu profeta, através do qual Ele passa a falar a seu povo. Samuel, que não conhecia esse Deus e inicialmente não entende o seu chamado, escuta a voz de Deus e passa a ser sua testemunha obediente.
A pregação, num primeiro momento, poderia recontar essa caminhada do texto. A seguir, poder-se-iam aprofundar os seguintes aspectos:
1. Deus silencia — apesar de todo o nosso culto;
— por causa da desobediência.
2. Deus fala — de maneira surpreendente;
— também através dos canais convencionais.
3. Samuel ouve — mesmo que às vezes é confundido;
— assume postura de obediência.
Ao longo desses aspectos poderá ser feita referência ao texto do evangelho — vocação de pessoas —, bem como à época da epifania: Deus se manifesta a seu povo.
No final das reflexões não cheguei a outra conclusão com relação à epístola. Permanece a sugestão do início.
5. Subsídios litúrgicos
1. Hinos: Deus, o teu verbo guarda a nós (Hinos do Povo de Deus n° 90); Senhor, se Tu me chamas.
2. Intróito: Jo 12.46 ou 2 Co 4.6.
3. Confissão de pecados: Ó Deus, tu falas de diversas maneiras a nós. De forma especial, tu o fizeste através de teu Filho, Jesus Cristo. Disso a mensagem de Natal nos relembrou novamente. E tu queres que essa mensagem ecoe por lodo o mundo. Mas nossos ouvidos estão fechados, muitas vezes, para a tua mensagem. li nossos olhos ofuscados, de maneira que não ouvimos nem percebemos onde e como tu falas a nós. E por isso também acabamos não sendo um eco para o leu falar. Mas nós não podemos viver sem uma mensagem que nos sustente, que nos dê resposta para nossas angústias. Por isso nós buscamos o conforto e a orientação que tua palavra nos oferece em outras fontes. E assim negamos o teu senhorio sobre nós. Este é o nosso pecado. Por isso nós te pedimos: Tem piedade de nós, Senhor.
4. Oração de coleta: Senhor, nosso Deus, tu falas de múltiplas maneiras a teu povo. A forma mais clara nós temos na Sagrada Escritura. Dela nós queremos ouvir agora o que tu nos tens a dizer hoje. Prepara-nos tu mesmo, com teu Santo Espírito, para que possamos captar a tua mensagem para a nossa vida e para o teu povo. Amém.
5. A intercessão é uma oração tão contextual e do momento, que não pode ser formulada à distância. A partir do tema do culto sugiro não esquecer aquelas pessoas que não estão dispostas a ouvir o falar de Deus, respectivamente não percebem como e onde Deus fala.
6. Bibliografia
O texto para a pregação — l Sm 3 — não consta em nenhuma série de perícopes anteriormente em uso, de sorte que o mesmo não é analisado em nenhum ano anterior do PL. Baseei-me principalmente nessas três obras:
HERTZBERG, H. W. Die Samuelbücher. In: Das Alte Testament Deutsch. Vol. 10. 6a ed., Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1982.
MOMMER, P. Samuel. Geschichte und Überlieferung. Wissenschaftliche Monographien zum Alten und Neuen Testament, vol. 65. Neukirchen, Neukirchener Verlag, 1991.
WEBER, O. Predigt-Meditationen. Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1967.
Proclamar Libertação 19
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia