Prédica: 2 Coríntios 12.7-10
Leituras: Ezequiel 2.1-8a e Marcos 6.1-6
Autor: Dario Schaeffer
Data Litúrgica: 7º. Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 10/07/1994
Proclamar Libertação – Volume: XIX
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A capacidade de percepção que determinadas pessoas têm para além da realidade palpável não constitui novidade. Todas as religiões contam com destaque essas experiências. Paulo certamente recebeu desses fenômenos espirituais parte do conteú¬do de sua vida e de sua pregação, seu entusiasmo e a força para trabalhar até idade avançada. As revelações feitas a ele — nosso texto não se refere à experiência em Damasco — são do Senhor, contêm palavras não tangíveis, nem capazes de serem repetidas por seres humanos. Sentiu-se participante do terceiro céu e, repetindo a afirmação, diz ter sido arrebatado ao paraíso, para uma realidade de valor maior. Foi fisicamente? Ele não sabe dizer. Não importa tanto, por certo. Mas ele participou de algo que caracteriza por excelente (12.1-7) e, sem dúvida, lhe daria todo o direito de se orgulhar, de se exaltar por ter sido privilegiado por essa experiência de destaque. Pois as visões e revelações nas experiências religiosas não são acessíveis a todos os crentes, mas apenas a alguns escolhidos.
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Essa linguagem esotérica, de experiências supra-humanas, em geral é de aceitação massiva. Ela é testemunho da presença do religioso, do inefável e do mistério divino. Medo e reverência, mas também aconchego e paz são características atrativas das religiões. Elas dão à fé sua legitimidade, bem como criam a autoridade necessária para transmitir e exemplificar existencialmente a vontade daquilo que está além do ser humano. É essa experiência que possibilita a entrada do poder divino, ao mesmo tempo universal e pessoal, para dentro da esfera de vida dos seres humanos. Caracteriza sua existência e dirige seu destino. Essa necessidade da presença do espiritual ultrapassa a lógica da razão científica e as tentativas de dirigir a história. Perpassa o ser humano a nível psicológico e individual e acaba se expressando a nível social.
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Para Paulo, a experiência se coloca no nível da legitimação e da autenticação de sua autoridade de apóstolo. Atacado exatamente nesses pontos, vê se obrigado a falar do que não queria. Não vê outra maneira para enfrentar seus adversários e críticos. A visão do religioso em sua origem, a revelação do que não é revelado ao comum, dá o suficiente peso político para sua presença no mundo das comunidades como representante da vontade de Cristo.
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No entanto, essa condição de ter tido acesso ao que não é acessível a todos, apesar de legitimar sua ação como apóstolo, não lhe dá o direito de se gloriar e de se exaltar (vv. 5 e 7). Apesar da autoridade, da legitimidade que lhe foi confiada pela experiência de partilhar por alguns momentos do.terceiro céu e do paraíso, não lhe dá o direito de mostrar-se como um privilegiado, com poderes que outros não têm, com poder sobre os outros.
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Para que Paulo não caísse na tentação de se orgulhar pelo que lhe aconteceu, para que não assumisse um poder outro, baseado em seu individualismo, que não seja o de Cristo, foi-lhe dado um espinho na carne, um anjo diabólico esbofeteador. Certamente essa afirmação se refere a algum problema que Paulo carregou durante a vida e que sempre lhe mostrava sua fragilidade e sua limitação. Não interessa o que foi. Interessa que essa situação tornava-o consciente de que era fraco. Tornava-o consciente de que, através de sua personalidade, através daquilo que ele era, quem agia de fato era Cristo. Apesar, pois, de sua experiência pneumática, sua vontade não foi excluída. Nada mais distante de Paulo, de seus escritos, de sua atuação, de suas viagens, do que a ação de um zumbi, de um homem sem vontade e sem força própria. Muito pelo contrário, por natureza Paulo foi um forte; senão certamente não teria sobrevivido a tudo o que lhe foi colocado. Mas ele faz uma diferença até dicotômica, e que beira o masoquismo, entre sua força e a força de Cristo: sente prazer nas injúrias, na fraqueza, nas perseguições e é capaz de ser ao mesmo tempo forte e fraco. É um testemunho claro das duas forças que convivem dentro de uma mesma vida, de um mesmo corpo, de uma mesma psique: a de Cristo e a do ser humano, num processo dinâmico e dialético, que caracteriza a não-instalação daqueles que se colocam a serviço de valores outros que contradizem as verdades comuns da sociedade humana.
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Essa sociedade, especialmente no que se refere à grande maioria, é e sempre foi caracterizada por valores negativos. Um deles é o da exclusão, do apartheid. Não há povo nem época da qual se possa dizer que os seres humanos tivessem conseguido construir uma sociedade na qual o nível de vida para todos fosse aceitável, onde não houvesse a necessidade de fortificar o forte e de enfraquecer o fraco. Essa característica, que é fundamental para a construção do senso comum social, passou por todas as eras e épocas da humanidade. E não há povo, por mais escondido que possa estar no fundo das últimas florestas, que não tenha essa lei como uma das máximas de sua organização. Quando Paulo foi arrebatado ao terceiro céu, para o paraíso, essa máxima lhe foi contradita. E essa contradição ele carrega em seu corpo: o de Cristo lhe é lembrado pelo anjo esbofeteador.
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Importante é saber que Paulo expressa uma mudança radical cm sua vida Desde que entrou em contato com o evangelho e com a boa nova de Cristo, ele teve que tomar uma decisão na vida, também a respeito de si próprio. Sua opinião agora não mais reside em seu talento natural apenas, mas é caracterizada pela mensagem de seu Senhor. E para ele, neste texto, a mensagem mais importante é a do que o poder de Cristo se aperfeiçoa na fraqueza. Fica claro que Cristo não está na mensagem de gente com opiniões criadas aqui e ali e que defendem essas opiniões com lodo o poder possível. A opinião de Paulo é a de Cristo. Esse, de agora em diante, ó sua definição de vida, e essa definição é o que ele defende com toda a força que tem. E esse poder, que emana de Paulo e através de Paulo, não é uma opinião qualquer ou uma filosofia poderosa, mas é a vontade de Cristo. É Cristo e nada mais que se torna forte quando outras vozes se calam. Paulo cala sua opinião, cala tudo o que aprendeu até aí — o que certamente não foi pouco! — e assim se torna fraco. Torna fraco tudo o que agora reconhece como estultice. E constrói sua vida a partir da vontade de Cristo, que se torna forte. Aí é que residem o poder de Paulo e o poder de Cristo. Paulo descreve uma opção, a mais radical que se pode fazer: deixar de acreditar que o forte sempre é forte e o fraco sempre é fraco. Cristo mostra a ele que é na fraqueza que se torna forte.
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Essa mensagem é cheia de consolo e de poder.
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Consolo porque rompe definitivamente com o cruel senso comum de quo o.s fortes têm valor e que seus valores são fortes.
Sou um ser humano extremamente limitado. Quando jovem não vejo isso com muita clareza, pois a vida está à minha frente e me sinto capaz de enfrentar qualquer coisa. O que me move nem são tanto minhas capacidades reais, mas principalmente meu imaginário, minha esperança, meu otimismo frente à vida. Nada mais correto. Imaginem se os jovens de hoje fossem derrotistas! Apesar de que um pouco mais de massa crítica não faria mal nenhum, gente que não fosse tão idiotamento otimista.
Mas a vida vai nos ensinando todo dia que temos limites. Crianças recém-nascidas morrem ao nosso lado, ou mesmo em nossas famílias, de desnutrição ou de doenças perfeitamente curáveis. Ficamos sabendo que isso acontece aos milhões em nosso país e que essa situação se agrava a cada dia. Se chegamos a estudar, começamos a ver que o acesso ao conhecimento é um privilégio de poucos, o sempre dos mais fortes, ou mais ricos, ou mais vivos. Os fracos vão ficando. São excluídos, crianças e jovens. Aos milhões. É o apartheid.
Cedo demais somos confrontados com o fato de que vivemos numa sociedade onde a exclusão é vital para que ela sobreviva da maneira como é estruturada. O mercado é que determina a demanda de força e qualidade de trabalho. O mercado tem nas mãos a capacidade de regular o tamanho do salário de quem trabalha. Mas cedo descobrimos que o mercado não é uma força transcendente, comandada por uma mão invisível, como dizia Adam Smith. Essa mão é muito visível e se materializa nos empresários, no governo das forças hegemônicas, no Estado privatizado, na política dos oportunistas, mas também no prato vazio do/a trabalhador/a, no salário de fome e na falta de emprego. Enfim, na vontade todo-poderosa dos fortes. Essa vontade mata e exclui. Tem uma concepção de desenvolvimento que fez o Brasil ser um dos países que mais cresceu nos últimos cem anos. Mas nesse crescimento está embutido o terrível processo de produção da maior massa miserável da América Latina. É um desenvolvimento que mantém o mercado sob seu controle e que diz quem é forte e quem é fraco, quem fica c participa e quem é excluído.
A mensagem de Cristo através de Paulo coloca tudo isso em seu devido lugar. O valor original que está na memória residente de Paulo é certamente idêntico ao que produz as leis do mercado no mundo de hoje. Forte é o que tem poder financeiro, político, estatal, de mercado. Mas esse é o Paulo que se vangloriava de sua força. Com a revelação de Cristo a cie, esta posição é invertida: Na fraqueza, Cristo se torna forte.
Não é mais o forte que é forte, mas o fraco é forte. O Filho de Deus se torna forte no excluído, no que caiu na desgraça do mercado, no que perdeu a corrida.
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Mas será que o Cristo pau Imo então é o que vive das sobras da humanidade? Quer dizer, cresce sobre aquilo que não tem mais valor nenhum, igual ao mofo sobre a fruta podre? Num primeiro momento, diria que sim. Mas há uma diferença entre a figura e a realidade: enquanto o mofo destrói o que resta de uma fruta e depois morre também, a força de Cristo que cresce na fraqueza é uma força transformadora. É isso que Paulo sinaliza quando diz que é forte quando está fraco. Não é uma destruição, mas uma nova criação. É aí que, juntamente com o consolo individual, reside o poder de transformação social. O fraco se torna forte; o forte se torna fraco. O fim do senso comum, o fim da verdade absoluta do mercado é a base ideológica, teológica, filosófica e prática necessária para a construção de uma sociedade justa, onde não mais os objetos são sujeitos e os sujeitos objetos, mas onde essa realidade se inverte em favor dos seres humanos, de todos eles, mas em especial agora dos fracos e excluídos.
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Em nossa época sem rumo ideológico libertador, essa mensagem, que envolve ao mesmo tempo e com a mesma valorização o indivíduo e o social, é extremamente preciosa. Ela subverte a ideia do sacrifício, exigido pela sociedade e subsidiado por teologias, religiões e Igrejas, nas quais a massa é considerada pecadora, que, de alguma maneira, precisa pagar pelos seus erros. O sacrifício é substrato do inconsciente coletivo e é constantemente reavivado por práticas religiosas e aceito com muita gratidão por práticas políticas e policiais conhecidas. Sua tarefa diabólica é dicotomizar o indivíduo e o social a nível de consciência c de distribuição de renda, mas, a nível de exploração e de exclusão, atrelá-los firmemente um ao outro.
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Dentro dessa realidade, não há dúvidas de que o doente de AIDS v culpado por sua doença. É sua culpa individual, que é paga com a exclusão do convívio social. Não há dúvida de que a mulher assassinada pelo marido certamente andou fora da linha. A menina de rua que cheira cola e se prostitui carrega o estigma da exclusão, enquanto aquele que exclui é gente boa, bebe uísque e frequenta motéis. A ideia e a prática do sacrifício acabam não excluindo o pecador que anda na linha. E isso significa ser branco, homem, morar bem, vestir-se bem, beber bebidas ricas e, em vez de cola, usar cocaína para se dopar. De preferência supositórios! A sociedade se perverte quando alguém está errado, ou é pecador, não por causa do ato cometido, mas por causa de sua característica de excluído. Pecador é sempre o excluído, nunca o exclusor. Collor e PC andam livres nesta época em que escrevo. Mas as prisões em todo o Brasil estão abarrotadas de pobres, negros, enfim, exclui dos. A crueldade do sistema, o sarcasmo dos que detêm o poder, é fruto da ideia de que alguém deve ser sacrificado.
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Paulo inverte tudo: Na fraqueza, Cristo se torna forte. Mas como e onde acontece isso na realidade?
Creio que deve ser tarefa da prédica jogar luz sobre esse aspecto. Ou seja, da deve mostrar à comunidade onde acontecem hoje as inversões do senso comum, explorador e sacrificial, para uma ação libertadora e confortadora. Cada comunidade tem sua própria realidade. Mas posso lembrar alguns momentos em que isso pode acontecer. Lembro dos hospitais que ainda não viraram comércio e máquina de lucros, onde pessoas trabalham com abnegação e dedicação, especialmente dedicando-se a doentes em estado terminal ou indigentes. Lembro de familiares que doam suas vidas para acompanhar deficientes, doentes, durante longos anos, desistindo de suas ambições pessoais para fazer um trabalho considerado inútil pela sociedade- de mercado, caracterizada pela concorrência. Mas lembro-me também quando mulheres trabalhadoras ou donas de casa invertem o sistema de exploração, organizam se em sindicatos, lutam pelos seus direitos ou libertam-se do jugo familiar e social e assumem sua individualidade e voltam a valorizar-se como sujeitos, com direito a direitos, a prazer, a desejos próprios. Lembro de homens que mudam suas mentes e suas ações, lutam contra o machismo dentro deles próprios, convertem-se à luta libertadora dos que vivem ao seu redor, descobrindo que com isso se libertam também. Lembro de meninos e meninas de rua que se organizam, ajudados e assessorados por pessoas que certamente teriam capacidade competitiva no mercado de trabalho e teriam ganhos muito melhores em outras atividades. Gente preciosa. Outros exemplos certamente estão à mão.
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A prédica deve ser essencialmente confortadora. Não pode partir do princípio de que vai mudar o mundo. A história é mais complicada e exige mais. A contemplação e a meditação são componentes intrínsecos não apenas da liturgia, mas especialmente da prédica. Ainda mais em nossa época, em que nos defrontamos com uma crise ideológica que coloca todos os que sobrevivem neste país em constante pânico.
Mas é preciso dizer, logo em seguida, que nem a prédica e tampouco a liturgia devem fazer com que nos deixemos ficar orgulhosamente no terceiro céu, dos sonhos apocalípticos e religiosos, e egoisticamente individualistas. Mas devemos sentir o espinho na carne, o anjo esbofeteador do diabo, que é a fome e a miséria que grassara em nosso país, frutos de desmandos e da anti-ética colocada no poder. Nossa fé não é a do avestruz, que diz que um problema deixa de existir quando não falamos mais dele e que a realidade não é tão trágica quando não mais olhamos para ela.
Portanto, para a prédica a seguinte estrutura pode ajudar:
a — Leitura do texto e meditação em silêncio, ou coordenada através de alguma técnica. /
b — Análise curta e objetiva do contexto da comunidade. Onde existem situações em que se separa a fé cristã da vida diária e que apoiam a exclusão.
c — Colocar essa análise no contexto regional, nacional ou mundial.
d — Paulo mostra seu engajamento no sentido de inverter os valores forte e fraco e mostra que Cristo (seu amor, sua misericórdia, sua justiça) se torna forte na fraqueza. Que sociedade é preconizada com isso?
e — Entre nós certamente acontecem experiências onde fortes são fracos e fracos são fortes. A comunidade participa com exemplos de seu conhecimento. É preciso confortar os que sofrem com isso.
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BUCHWEITZ, Wilfrid. PL V pp. 26s e PL XIII p. 142ss., São Leopoldo — 1977 e 1987, respectivamente.
WENDLAND, Heinz Dietrich. Die Briefe an die Korinther. 10a ed. NTD 7. Vandenhoeck und Rupprecht, Goettingen, 1964.
LEUBE, Heinrich. Neue Calwer Predigthilfen. Ano IV, Vol. A, pp. 159ss., Calwer Verlag, Stuttgart, 1981.
SMITH, Pam e Gordon. Meditação. Um repertório das melhores técnicas. Ed. Rocco, Rio, 1992. Não devem levar a uma fé de avestruz!
BUARQUE, Cristovam. O colapso da modernidade brasileira. 2a ed. Paz e Terra, 1991. Fundamental!