Prédica: Atos 10.34-38 (10.1-11.18)
Leituras: Isaías 42.1-7 e Marcos 1.4-11
Autor: Arteno Spellmeier
Data Litúrgica: 1º. Domingo após Epifania
Data da Pregação: 09/01/1994
Proclamar Libertação – Volume: XIX
1. Introdução
O 1° Domingo após Epifania é dedicado a rememorar o batismo de Jesus Cristo e o nosso próprio. Os textos para leitura e pregação nesse domingo abordam temas como:
— Vocação, convocação e qualificação dos que são incumbidos com a proclamação e colocação de sinais do Reino de Deus;
— Perdão de pecados, recomeço e novidade de vida;
— Justiça de Deus: como graça gratuita, como reconhecimento do senhorio de Deus e como vontade e modelo de relacionamento entre os seres humanos;
— Universalidade da graça e do amor de Deus, tendo todos(as), independente de etnia, credo, cor e língua, acesso a esse novo Reino, inaugurado com a vinda de Jesus Cristo.
O contexto maior de At 10.34-38 fala da universalidade da promessa de Deus e do primeiro batismo de gentios, de pessoas não ligadas ao judaísmo. O próprio texto dá os novos critérios de escolha de Deus: Em verdade, estou descobrindo que Deus não faz diferença entre as pessoas. Pelo contrário, qualquer que seja sua nação, ele acolhe quem o teme e pratica a justiça (vv. 34 e 35).
Para evitar a postura alienante de que o evangelho vale para todos igualmente, mas que a comunhão de todos os santos só precisa acontecer com as pessoas da mesma raça, língua, credo e grupo social, sugiro que consideremos, na pregação, todo o bloco de At 10.1 a 11.18, tematizando a universalidade da graça, da aceitação e do amor de Deus, que leva à comunhão mútua entre os(as) que são diferentes e supera as barreiras religiosas, culturais e linguísticas. A acusação da comunidade judaico-cristã de Jerusalém contra Pedro não foi: Você batizou gentios, mas: Você entrou em casa de incircuncisos e comeu com eles (11.3).
2. Considerações exegéticas
O redator de Atos dos Apóstolos deu um significado todo especial a esse episódio de Cornélio, destacando-o como o primeiro batismo e como o início da evangelização entre os não-judeus, mesmo que para isso tenha sido necessário esque¬cer o batismo do eunuco, efetuado por Filipe, e dos cristãos de origem gentílica de Chipre.
A história de conversão e batismo de Cornélio está em função dos acontecimentos relatados no capítulo 15, do assim chamado Concílio dos Apóstolos em Jerusalém. Lucas quer mostrar que a evangelização dos pagãos e a fundação de comunidades mistas de judeus e não-judeus, propostas por Paulo, têm sua razão de ser, porque Pedro foi o primeiro que fez o que Paulo propôs e que essa proposta está dentro da continuidade apostólica.
Mas por que Lucas escolheu o episódio de Cornélio e não o do eunuco batizado por Felipe, por exemplo? Entre outros motivos, os seguintes devem ser considerados: a) Cornélio era centurião romano, indicando a possibilidade de funcionários do império se converterem e estarem à disposição da divulgação do evangelho de Jesus Cristo; b) Cornélio era de origem gentílica, mas muito próximo da fé judaica, de sua espiritualidade e moralidade, tornando a nova proposta e a ruptura dela decorrente mais aceitáveis e assimiláveis pelas comunidades cristãs de origem judaica; c) no episódio de Cornélio, há dois componentes importantes da nova proposta: o batismo de gentios, incluindo o derramamento do Espírito Santo, a comunhão de mesa e a convivência com eles, que necessariamente levarão a uma ruptura com as leis da pureza e impureza, sagradas para os judeus (cf. 10.28 e 11.3). Aceitar que o(a) outro(a) também é amado(a) por Deus não me custa nada. Conviver com eles(as) pode exigir que eu mude e abandone posições, privilégios e pontos de referência que me são muito caros.
Texto e contexto se compõem de diferentes cenas:
1a cena: Ao centurião romano Cornélio, piedoso e temente a Deus, em sua fé muito próximo da moralidade e espiritualidade judaicas, aparece um anjo, anunciando-lhe que suas orações foram atendidas e que deverá enviar uma delegação a Jope para buscar Simão Pedro.
2a cena: Pedro tem uma visão: do céu desce um lençol, cheio dos mais diferentes animais, e lhe é dada (3 vezes) a ordem de matá-los e comê-los, acrescentada das palavras: Não chame de impuro o que Deus purificou.
3a cena: Pedro não encontra sentido na visão e na ordem que recebe. Obedecendo ao Espírito, ele, no entanto, acompanha os mensageiros de Cornélio, que o convidam a ir a Cesaréia.
4a cena: Pedro e um pequeno número de cristãos(ãs) de Jope acompanham os mensageiros e se encontram com Cornélio e seus familiares. Pedro compreende a visão do lençol com os animais e entende o que é da vontade de Deus: nenhuma pessoa é impura por sua origem étnica.
5a cena: Em seu discurso, do qual faz parte o texto de pregação previsto para o 1° Domingo após Epifania, Pedro já parte do novo reconhecimento: Deus não faz diferença entre as pessoas, mas acolhe quem o teme e pratica a justiça, independente de sua origem. Não mais a pertença a um determinado grupo étnico é critério de salvação, mas o temor a Deus e a prática da justiça. Nesse ponto, a teologia de Lucas difere da de Paulo, que em Rm 2.11 também diz que Deus não faz diferença entre as pessoas, para concluir, no entanto, que todos, judeus e gentios, estão perdidos por não cumprirem a lei integralmente. A condição de pecadores torna judeus e não-judeus iguais. Seria tão bom se conseguíssemos resgatar a consciência desse fato, pois então a arrogância inerente ao preconceito daria lugar à humildade comum entre irmãs e irmãos que vivem do perdão. Para Paulo, somente a fé no Cristo de Deus é critério de salvação. Para Lucas, são critérios de salvação: o temor a Deus e a prática da justiça. Estão as duas colocações em contradição? Porventura excluem-se elas mutuamente? Não necessariamente, se entendermos a nossa vida como uma longa caminhada com Deus, cheia de contradições, composta de diferentes fases, impasses, pecados nossos e aceitação de Deus. O temor a Deus e a decorrente prática da justiça pressupõem a articulação prática da fé, o supremo critério de salvação para Paulo. A fé propugnada por Paulo só é critério de salvação à medida que, como o Cristo de Deus, se encarna, se envolve na prática da justiça e se manifesta como temor a Deus.
Por meio de Jesus, Deus enviou uma mensagem de paz ao povo de Israel e deixou claro que Ele, Jesus Cristo, é o Senhor de todos, judeus e não-judeus. Nessa mensagem é anunciada a comunhão entre Deus e o povo de sua escolha, mas também entre Deus e os demais povos, judeus e não-judeus. Pedro está numa missão de paz, trazendo a reconciliação para os incircuncisos, anunciando a mensagem de que Deus quer unir todos num só povo, o seu povo.
Toda a atividade e pregação do Jesus histórico são resumidas na seguinte formulação: E ele andou por toda a parte, fazendo o bem e curando todos os que estavam dominados pelo diabo; porque Deus estava com ele (v. 38b). Nesse versículo, o temor a Deus e a prática da justiça por parte de Jesus Cristo se tornam evidentes. A cura dos dominados pelo diabo expressa o poder desse Jesus e de que Deus estava realmente com ele. Nos vv. 37 a 41, Lucas sintetiza o batismo de Jesus, a unção pelo Espírito Santo, a sua atuação, morte e ressurreição, destacando o papel dos apóstolos como testemunhas. Deus ressuscitou seu Filho, deixando claro que quer a vida.
No senhorio de Jesus Cristo, as barreiras entre judeus e não-judeus são superadas, e a comunhão plena é possível. Não mais é necessário ficar judeu para se tornar cristão: o senhorio de Jesus também abarca as leis e tradições, língua e a cultura, a economia e a organização social, superando-as, transformando-as, relativando-as.
6a cena: Enquanto Pedro fala, o Espírito de Deus desce sobre a pequena comunidade gentia, formada por Cornélio e seus familiares, que começam a falar em línguas, louvando Deus. Pedro mandou que fossem batizados e ficaram alguns dias com eles.
7a cena: Pedro volta a Jerusalém, é questionado pela comunidade local e consegue convencê-la de que tanto o batismo quanto a comunhão com os gentios são da vontade explícita de Deus.
Resumindo: a) Inicialmente, os cristãos (de origem judaica) eram contra a participação de gentios em suas comunidades; b) a objeção dos primeiros cristãos se dirigia, antes de mais nada, contra a comunhão de casa e mesa, pois esta implicava mudanças radicais; c) Deus mesmo conduziu os gentios para dentro de sua Igreja, de acordo com At 10 e 11; d) Deus interferiu pessoalmente para tornar mais uma vez claro que a sua aceitação e o seu amor são universais; e) se não tivesse ocorrido esse processo tão dolorido para os apóstolos e primeiras comunidades cristãs, a Igreja cristã se teria transformado, no melhor dos casos, numa pequena seita, que provavelmente teria desaparecido como tantas outras daquela época.
3. Reflexões
A graça de Deus é universal. Todos e todas têm acesso a seu Reino, indepen¬dente de cor, idade, credo e etnia. No batismo, essa aceitação incondicional de Deus se torna evidente para todos.
Calcula-se que 11 milhões de negros escravos foram trazidos à força para a América Latina até o ano de 1810. Alguns milhões morreram nos navios, que, por isso, eram chamados de 'tumbeiros'. Os comerciantes de escravos — holandeses, ingleses, espanhóis e portugueses — eram obrigados a pagar um imposto ao rei de seu país sobre cada escravo. Além disso, deviam batizá-lo. À marca de ferro em brasa servia, ao mesmo tempo, como recibo de imposto e como certidão de batismo (Raízes da Pobreza, caderno popular n° l, p. 4).
O batismo, a amostra do amor e da aceitação incondicional de Deus, é transformado em instrumento de valorização comercial de pessoas escravizadas. Pessoas essas transformadas em força de trabalho-objetos por cristãos.
No ano de 1628, uma bandeira enorme, formada por 69 brancos, 900 mestiços e mais de 2.000 indígenas cativos, deixou a Vila de São Paulo, comandada pelo mais famoso de todos os bandeirantes, Antônio Raposo Tavares. Eles foram direto para o Vale do rio Ivaí, onde havia aldeias de índios cristãos, sob a direção dos jesuítas espanhóis. Invadiam aldeias e prenderam mais de 4.000 indígenas. Ao sair, queimaram as casas, a igreja, destruíram os roçados e invadiram o convento dos padres (De: Esta Terra Tinha Dono — Benedito Prézia e Eduardo Hoornaert).
…E dessa maneira podem ser ensinados nas coisas da fé, como agora se faz, havendo contínua doutrina, de dia às mulheres e de noite aos homens, a que concorrem quase todos, havendo o alcaide que os obriga a entrar na igreja.
Têm-se já balizado e casado alguns deles e prossegue-se a mesma obra com esperança de maior fruto. Parece-nos agora que estão as portas abertas nesta Capitania para a conversão dos gentios, se Deus nosso Senhor quiser com que sejam sujeitos e postos debaixo de jugo, porque para esse tipo de gente não há melhor pregação do que a espada e a vara de ferro (Sermões — Padre Antônio Vieira, Ed. Cultrix).
Missionários com um ideal e uma utopia doidas na cabeça saíram por esse mundo afora, balizando e pregando, destruindo valores e domesticando, convictos de estarem participando na realização da promessa da graça e do amor universais.
Cornélio e seus familiares sonhavam com a universalidade da graça e aceitação de Deus. O dia do seu batismo foi dia de festa, de alegria e de Espírito Santo. 1500 anos mais tarde, a universalidade do batismo cristão acabou sendo, para os povos indígenas das Américas e os povos livres da África, um pesadelo, símbolo de destruição e da perda do que era seu: perda de sua cultura e identidade, de sua liberdade e de sua vida.
Como pode ocorrer essa inversão de valores?
Como foi possível que a igualdade de todos(as) na comunidade e no batismo de Jesus Cristo fosse pisoteada de uma forma tão vil?
Por que isso tudo continua a acontecer?
Onde está o erro?
Toda a luta de Pedro, as suas visões e argumentações, as intervenções de Deus, a alegria de Cornélio e seus familiares foram em vão. No decorrer da história da Igreja Cristã, os bitolas estreitas de Jerusalém se impuseram: conseguiram separar a fé da vida, isolar o batismo da eucaristia, secionar a eucaristia do pão de cada dia, sacramentalizar os ritos eclesiásticos e dessacramentalizar a vida. De nada valeu o reconhecimento de Paulo e de Lucas de que a comunidade cristã vive essencialmente da comunhão, em que dons materiais e espirituais são repartidos. Sem partilha de vida e pão não há comunidade de Jesus Cristo. Ambos também sabem que, numa comunidade assim ordenada, os conflitos são inevitáveis, pois as contradições e oposições das diferentes classes sociais e grupos de interesse acabarão explodindo, se¬não forem resolvidos em conjunto. Se judeus e não-judeus, homens e mulheres, pretos e brancos, ricos e pobres se reunirem, comungarem e comerem em lugares diferentes, a fé cristã acabará assumindo conteúdos, objetivos e formas diferentes cm cada grupo, passando a pregação de uma só Igreja, da qual Jesus Cristo é o Senhor, para o mundo da ficção pura. Mas é exatamente isso que aconteceu e ainda acontece: Cornélio e seus familiares ainda não foram aceitos pela comunidade de Jerusalém. Ainda são discriminados. Aceita-se que sejam balizados, mas a comunhão de mesa, em que as diferenças aparecerão e o modo de vida será questionado, continua sendo negada. Quem se nega a participar da mesa dos pobres e a conviver com eles rompe a Igreja e busca refúgio numa pseudognose (Comblin, p. 195).
Quais são as consequências?
Entende-se o batismo como garantia e se o transforma em instrumento para dominar e impor o nosso jeito de crer e de entender Deus. A confusão é diabólica: o que é dádiva gratuita de Deus se transforma em garantia humana; o que é graça acaba se transformando em imposição e dominação; o que era evangelho libertador vira ideologia dominante.
O que é um gesto de aceitação de Deus transforma-se em condição verificável para entrar no seu Reino. O gesto de aceitação de Deus, em que a universalidade de seu amor se evidencia, isolamos do resto de sua vontade e verdade: de sua Ceia, de sua justiça, de sua criação, da vida por ele criada, do Reino por ele sonhado.
4. Pistas para a prédica
A forma de exposição menos recomendável do texto de At 10.1-11.18 certamente será a leitura efetuada pelo(a) pastor(a). Por consistir de diversas cenas com muita ação, o texto se presta a ser recontado por grupos (OASE, JE, leitores/as) da comunidade ou, se não tiver outro jeito, pelo(a) pastor(a). O texto também se presta a ser encenado por grupos da comunidade, representando os cristãos de Jope, Cornélio e seus familiares e os cristãos de Jerusalém.
Apontar formas de discriminação em relação aos gentios nas primeiras comunidades cristãs de origem judaica, que só paulatinamente e à custa de muito sofri¬mento se abriram para fora, para as outras religiões, deixando de enxergar na religião judaica a única capaz de ser portadora da mensagem do Cristo ressurreto.
Apontar formas e contar casos de discriminação na história e atuais em relação aos índios, negros, mulheres, crianças…
Refletir sobre o significado da universalidade do amor e da graça de Deus e as suas consequências.
A Igreja se torna prisioneira de grupos sociais, económicos e étnicos e se transforma num dócil instrumento de domesticação e de imposição de valores e interesses estranhos, quando esquece que o batismo compromete com a vida e a comunhão mútua, física, econômica, de mesa.
A Igreja é um fator de poder dentro das sociedades de todos os tempos e não usará esse poder para promover a igualdade, o amor e a justiça, se não tiver um profundo respeito pela religiosidade alheia e se não refletir a fundo sobre a sua própria origem, sobre sua proposta de evangelização e sua identificação com o Reino de Deus.
5. Subsídios litúrgicos
1. Confissão de pecados: Deus, tu nos amas como uma mãe e como um pai. TU amas não somente a nós, mas toda a tua criação, desde os seres mais humildes aos mais complexos. Dos teus planos de salvação nenhum deles é excluído. Perdoa-nos quando brincamos de Deus, arrogando-nos o direito de excluir esse ou aquele da nossa comunhão. Na humildade daqueles que se sabem pecadores nós te pedimos: Tem piedade de nós, Senhor.
2. Oração de coleta: Jesus, tu nos aceitas como irmãs e irmãos. Agradecemos-te por nos reunires ao redor de tua palavra. Tu não fazes diferença entre as pessoas, mas acolhes quem te teme e pratica a justiça. Ajuda-nos para que possamos ser solidários uns com os outros, vivendo o batismo que evidencia tua aceitação e a comunhão que evidencia a nossa aceitação mútua. Amém.
3. Oração de intercessão: Senhor, não permitas que separemos batismo e Santa Ceia, fé e vida, vida de fé e vida diária. Permita, isto sim, que em tua comunidade convivam pessoas de todas as raças, idades e classes sociais, transformando-se em comunhão que aceita a diversidade e luta pela superação das diferenças. Pedimos por tua Igreja e pelo poder que ela tem, para que ele seja usado para a promoção da igualdade, do amor e da justiça. Torna-nos sensíveis para que possamos aprender da religiosidade e espiritualidade dos povos indígenas e assim superar a dicotomia que transforma nossa fé em puro exercício emocional e a nossa vida de fé numa farsa. Amém.
6. Bibliografia
COMBLIN, José. Atos dos Apóstolos, Ed. Vozes, Sinodal e Imprensa Metodista. Petrópolis, 1988.
HAENCHEN, Ernst. Die Apostelgeschichte, Vandenhoeck & Ruprecht. Goettingen, 1977.
VIEIRA, P. A. Sermões, Ed. Cultrix, São Paulo.
HOORNAERT, E. e PRÉZIA, B. Esta Terra Tinha Dono, FTD Editores S.A., Guarulhos, 1989.
MEINCKE, Silvio. Raízes da Pobreza e da Fome no Brasil, Caderno n° 01, São Leopoldo, 1990.