Prédica: Deuteronômio 18.15-20
Leituras: 1 Coríntios 8.1-13 e Marcos 1.21-28
Autor: Nelson Kilpp
Data Litúrgica: 4º. Domingo após Epifania
Data da Pregação: 30/01/1994
Proclamar Libertação – Volume: XIX
1. O tema do Domingo
Encontramo-nos na época após Epifania. Aos poucos, a messianidade do menino nascido na manjedoura torna-se visível aos que com ele entram em contato. Nos três primeiros Domingos após Epifania, Jesus entrou em contato com João Batista, por ocasião de seu batismo (Mc 1.4-11), com Filipe e Natanael (Jo 1.43-51), e com os pescadores Simão, André, Tiago e João, que se tornaram seus discípulos (Mc 1.14-20). O quarto Domingo após Epifania propicia o contato de Jesus com uma pessoa sem nome: um endemoninhado em Cafarnaum (Mc 1.21-28). Esta perícope relata que Jesus foi ensinar, no sábado, na sinagoga de Cafarnaum. O seu ensino maravilhou os presentes por ser diferente da interpretação bíblica dos escribas. Jesus interpretava as Escrituras com autoridade. Quem, no entanto, reconhece Jesus como o Santo de Deus é o espírito imundo que está no homem possesso.
A Epifania de Jesus se dá através do ensino com autoridade. Jesus é, pois, um rabino, um mestre, alguém que ensina a partir das Escrituras, assim como os escribas e fariseus ensinavam. Mas a autoridade de Jesus na interpretação da vontade de Deus é comparável à autoridade de Moisés, que está na própria origem da codificação da vontade divina, a Lei. Ao contrário dos intérpretes que dependem da autoridade de Moisés, Jesus se destaca por ter luz própria. Os pregadores de hoje se baseiam nos textos e nos testemunhos bíblicos, pressupondo e aceitando a autoridade dos mesmos e dos que no-los legaram. Consideramo-nos intérpretes destes textos inspirados; geralmente não reclamamos o direito de ter autoridade própria, independente do Cristo que está por trás da palavra escrita. Somos, pois, bem mais parecidos com os escribas do que com Jesus.
É um tanto estranho para nós hoje conceber uma pessoa possessa por demô¬nios, apesar do impacto de O Exorcista. É mais estranho ainda que são exatamente os demônios que reconhecem com toda a clareza a messianidade de Jesus. Parece que inimigo reconhece inimigo. O Messias se revela na oposição. A identidade se define no conflito. Dessa forma, os opositores em potencial de Jesus são os primeiros a confessar o Cristo. Será que isto ainda vale hoje? É no conflito que pode ser reconhecido onde está Cristo? Torna-se necessário perguntar onde estão os demónios modernos. Seria fácil demais identificá-los com expressões sincretistas da religiosidade popular.
O tema do Domingo versa, portanto, sobre o reconhecimento da autoridade de Jesus no seu ensino e de sua messianidade no conflito com os opositores. A leitura da Epístola, l Coríntios 8.1-13, dificilmente se enquadra neste tema. A epístola trata da carne sacrificada a ídolos. Comer carne sacrificada a ídolos pode contaminar a consciência de muitos cristãos, apesar de os ídolos nada serem e, portanto, não poderem contaminar, em tese, nenhuma carne. O apóstolo recomenda evitar comer carne em um templo onde se dedica carne a ídolos por consideração aos irmãos que se escandalizam com o consumo de carne sacrificada a ídolos. A função dos ídolos neste texto da Epístola não equivale ao espírito imundo do homem possesso na leitura do Evangelho. Para a pregação talvez pudesse ser frutificada a seguinte divisa: O saber ensoberbece, mas o amor edifica. Além de ser um ótimo lema para professores e pastores, a frase pode ser considerada a moldura dentro da qual deve acontecer toda e qualquer atuação profética da comunidade. Estamos apontando, com isso, para o texto do Antigo Testamento.
2. A leitura do Antigo Testamento
Para texto de pregação foi escolhida a leitura do Antigo Testamento: Deuteronômio 18.15-20. No lecionário ecuménico, o texto de Dt 18 tem a função de secundar a temática sugerida pelo Evangelho do Domingo: Mc 1.21-28. Sem dúvida, Dt 18.15-20 foi escolhido para mostrar que Jesus é o profeta semelhante a Moisés (Dt 18.15). A promessa de enviar um profeta, em cuja boca estarão as palavras de Deus, os cristãos a vêem cumprida em Jesus Cristo. Por isto, na antiga série de perícopes da Igreja Evangélica da Alemanha, o texto de Dt 18.15ss era previsto como texto marginal para pregação no 4° Domingo de Advento. (Não entendi por que o mesmo texto foi transplantado, na série alemã revisada, para o 2° Domingo após a Páscoa Misericórdias Domini.)
A delimitação do texto não é uniforme; depende da perspectiva que se quer dar. Encontrei uma pregação messiânica que só contempla o versículo 15. Na série de perícopes alemã, faz-se o corte após o verso 19, porque não se quer entrar na temática da falsa profecia, que aparece nos versos 20-22. A série ecuménica inclui o v.20, tocando de leve o tema da falsa profecia sem, no entanto, enfocar o critério dado pelo Deuteronômio para discernir entre falsos e verdadeiros profetas (18.21-22). Acho que esta delimitação é sábia; ela não exclui totalmente o assunto, mas evita uma discussão inútil sobre um detalhe perfeitamente dispensável na pregação. (Afinal, se o falso profeta se revelar falso somente se e quando sua profecia não se cumprir, não há como distinguir verdadeiro e falso profeta no momento da pregação. Qual é, então, a utilidade do critério de Dt 18.22? Não há como prescindir da decisão de fé do ouvinte ou, então, de outros critérios.)
Para a compreensão da perícope Dt 18.15-20 é importante ver o contexto. O bloco literário que tematiza o ofício profético abarca Dt 18.9-22. Esse bloco pode ser estruturado da seguinte maneira:
a) Vv. 9-14: práticas mânticas que buscam estabelecer contato com Deus e que devem ser evitadas;
b) Vv. 15-19: o ofício do profeta em Israel e a promessa de um profeta semelhante a Moisés;
c) Vv. 20-22: os falsos profetas e critério para distinguir verdadeira de falsa profecia.
3. Algumas observações sobre o texto de Dt 18.15-20
3.1. A função profética em Israel quer substituir as práticas mágico mânticas cananéias. Dt 18.9ss proíbe Israel de aprender as abominações dos povos cananeus. Estas práticas abomináveis são as causas que levaram Javé a expulsar os habitantes de Canaã. Os israelitas devem, pelo contrário, ser perfeitos (v.13). Os tipos de práticas são mencionados nos versos 10 e 11. Cito a tradução da Bíblia de Jerusalém Que em meio de ti não se encontre alguém que queime seu filho ou sua filha, nem que faça presságio, oráculo, adivinhação ou magia, ou que pratique encantamentos, que interrogue espíritos e adivinhos, ou ainda invoque os mortos. Não vou entrar na descrição detalhada de cada um destes rituais – também porque nem todos são claros. Se observo bem, pode-se classificar as práticas acima em quatro categorias:
a) Fazer passar o filho ou a filha pelo fogo foi um ritual cúltico conhecido entre moabitas, israelitas e principalmente fenícios. A este ritual se recorria em ocasiões de extrema necessidade (cf. 2 Rs 3.27; Jr 7.31). A fé israelita não podia admitir este tipo de sacrifício.
b) Os três termos seguintes do v. 10 tratam da adivinhação, ou seja, do uso de métodos supranaturais para descobrir o futuro curso da história. Não se fula de métodos mânticos específicos; deve-se pensar, por exemplo, na observação de entra nhãs de animais, de voos e cantos de pássaros ou no lançamento de sortes (cf. alguns exemplos em Ez 21.26).
c) O último termo do v. 10 e o primeiro do v. 11 falam de práticas mágicas (feitiçaria e encantamento). Os rituais de magia pretendem influenciar pessoas ou eventos com métodos supranaturais.
d) Consulta a mortos e a espíritos de mortos, provavelmente também paia descobrir e, quem sabe, até determinar o futuro.
Parece que o caráter abominável está, além do atentado à vida, nas tentativas de manipular o sagrado por meios escusos, não transparentes, supranaturais. Apesar de Israel ter adotado algumas destas formas mânticas, como por exemplo o lançamento de sortes, vale sempre a advertência de que uma relação estável entre Deus e o povo de Israel não pode estar construída sobre obscuros mecanismos de conquistar saber exclusivo e exercer poder sobre outras pessoas. Israel não precisa disso, pois terá um profeta.
Uma pequena advertência. Não seria apropriado iniciar uma caça às bruxas, acusando todas as formas modernas de adivinhação. Lembremo-nos de que estas práticas geralmente têm eco entre os membros das comunidades quando eles não encontram mais nestas aquilo que precisam. Além disso, Dt 18.10s não é o texto de pregação. Ele forma o pano de fundo diante do qual podemos entender melhor a função do profeta em Israel.
3.2. Em substituição aos especialistas em adivinhação, Israel terá um profeta. Pensamos logo que aqui o profeta é visto essencialmente como aquela pessoa que é capaz de revelar antecipadamente eventos futuros, como o faziam os adivinhadores. Mas o v. 16 indica numa eutra direcão. A função profética existe a partir da revelação de Deus no Sinai e desde a entrega da Lei ao povo de Israel. O v. 16 lembra Dt 5.22ss. Aí se reflete a impossibilidade de o povo entrar em contato direto com Deus. A voz e o fogo de Javé são experimentados como algo medonho e ameaçador. O povo, então, escolhe Moisés para ser o intermediário entre Deus e o povo. Moisés é considerado capaz de realizar esta intermediação perigosa.
Para nós esta concepção arcaica é um tanto estranha. Defendemos a ideia de que todos têm acesso direto a Deus. Afinal de contas, por ocasião da morte de Jesus Cristo, o véu que escondia o Santo dos Santos se rasgou (Mt 27,51); o que estava oculto ao povo torna-se acessível a todos. O que era manipulado em benefício de algumas pessoas privilegiadas agora é democratizado. Ainda há necessidade de um intermediário para as comunidades cristãs além de Cristo? Ou devemos entender o texto de Dt 18.15ss assim como o faziam a tradição judia, as primeiras comunidades cristãs e grande parte da pesquisa bíblica até o século passado, como uma promessa messiânica já cumprida em Cristo? Isto significaria que o texto do Antigo Testamen¬to perderia a sua luz própria, mas daria oportunidade para falar da messianidade de Jesus Cristo. Observações no texto, no entanto, indicam que o profeta deve ser entendido como coletivo. Israel sempre necessitou de um substituto para os adivinha¬dores de outras nações. Também Dt 17.14ss trata dos reis de Israel, apesar de falar no singular. O nosso texto fala, portanto, da função profética em Israel. A pergunta é em que medida o texto pode ter validade também para as comunidades cristãs.
3.3. Dois aspectos chamam a atenção em Dt 5.22ss e 18.16s. O povo necessita de um profeta e solicita que Moisés assuma a função. É a comunidade que vê a necessidade, toma a iniciativa, propõe, discute e decide nomes. Não há uma imposição do cargo profético nem do ocupante do cargo. De maneira análoga deve acon¬tecer também no futuro. Os futuros profetas suscitados por Deus deverão estar estreitamente vinculados ao povo: um profeta do meio de seus irmãos. Não serão pessoas estrangeiras, ou melhor, estranhas, mas pessoas que se identificam com o povo, se colocam ao seu lado, o compreendem, vivem a sua realidade e falam a sua linguagem. Exatamente por provir do seio do povo, o texto pode dizer que o profeta é suscitado por Deus.
Além disso, a função do intermediário profético é perigosa. Ela pode custar a vida de seu ocupante. Este intermediário escolhido pelo povo está aí para servir e, quem sabe, sofrer. Aqui são antecipados os destinos de muitos profetas em Israel. Incompreensão, desprezo, perseguição e morte é a sina do verdadeiro profeta em Israel (Am 2.12; Jr 26.23; 36.26). Os sofrimentos dos profetas se encontram de forma condensada no sofrimento do Servo de Javé (Is 50.5-7; 52.13-53.12). Não é por acaso que Dt 18.15ss tenha sido aplicado a Jesus Cristo no Novo Testamento (At 3.22s; cf.At 7.37).
3.4. O livro do Deuteronômio e a literatura deuteronomística concebem a função dos profetas de Israel a partir daquele que, na sua opinião, foi o profeta exemplar, Moisés: nunca mais se levantou em Israel profeta algum como Moisés (Dt 34.10). A fé israelita atribuiu, no decorrer dos séculos, muitas funções a Moisés. Uma das funções importantes – responsáveis para que Moisés também pudesse ser considerado profeta – é a intercessão em favor do povo. Dt 9.18ss,25ss nos relata do pecado do povo que fabricou o bezerro de ouro na passagem pelo deserto. Para evitar que a ira de Deus castigasse o povo apóstata, Moisés se dirige a Javé, permanecendo em jejum durante 40 dias. Também na época do Reinado em Israel, profetas nunca esqueceram de assumir esta tarefa de interceder pelo seu povo. Lembro, em especial, o profeta Amos, que, em suas duas primeiras visões (7,1-8), suplica: Se¬nhor Deus, perdoa, rogo-te; como subsistirá Jacó? Ele é tão pequeno! Lembro também Jeremias, que foi proibido de interceder por seu povo (Jr 7.16), já que a destruição de Jerusalém é coisa certa. Conforme o Deuteronômio, os profetas nau podem nunca deixar de ser intercessores. Esta é uma das tarefas do intermediário. Quem na comunidade cristã assume esta tarefa? Em que medida ela é necessária? As intercessões sempre fizeram parte do culto cristão. A pergunta que cabe aqui não é tanto se estas preces são, de fato, preces da comunidade e representativas das necessidades do povo, mas a quem cabe formulá-las e trazê-las diante de Deus.
Uma das funções mais importantes atribuídas a Moisés foi a de ter sido ;i pessoa a quem Deus aprouve revelar a sua Lei, ou seja, a codificação de sua vontade para com o seu povo. Esta Lei revelada a Moisés tinha que ser constantemente pregada, lembrada e incutida no povo. A vida em Uberdade e a sociedade justa não caíam do céu. Elas só podiam ser realizadas no cumprimento da vontade divina expressa nas leis da aliança. Para a literatura deuteronomística, os profetas tinham esta incumbência de pregar a lei ao povo. Eles eram os servos de Javé enviados para observar os mandamentos e os estatutos, conforme toda a Lei que prescrevi a vossos pais e para converter de vossa má conduta (2 Rs 17.13-17; Jr 25.4-7; 35.15). A vida da comunidade de acordo com a vontade de Deus – esta deve ser a constante preocupação do verdadeiro profeta. Atualizar a vontade de Deus para os nossos tempos tão confusos é tarefa de quem? Do pastor? A Igreja como um todo – mas também diversos movimentos seculares – tem dado alguns passos na direção de um resgate da ética na vida pública. Notamos, em especial neste ponto, que profetas não são necessariamente indivíduos isolados.
3.5. A nossa relação com Deus pode tomar diversas formas. Importantes são os gestos, os rituais, as práticas cúlticas e religiosas, as celebrações, os símbolos. Todos estes fenómenos carregados de conteúdo teológico e significado simbólico têm grande valor para a vida da comunidade. O texto de Dt 18.18 parece, no entanto, acentuar a palavra: em cuja boca porei as minhas palavras, e ele lhes falará tudo o que eu lhes ordenar. A palavra simples, lógica e, portanto, compreensível é essencial para a explicitação da vontade de Deus. O símbolo ajuda, mas pode permanecer ambíguo. O ritual é como uma casa aconchegante, mas é a palavra que lhe dá sentido e direção. O Deuteronômio parece querer acentuar a comunicação pela palavra por causa da grande quantidade de rituais e técnicas mânticas obscuras entre os povos vizinhos, que não eram entendidas pelo povo de Israel.
O profeta deve traduzir de maneira clara e atual a vontade divina. Para tanto ele deve saber comunicar-se de forma clara. Esta clareza evita que o sagrado possa ser manipulado por especialistas, que mantêm os conhecimentos esotéricos em seu poder e não têm nenhum interesse em dividi-los com todo o povo. A palavra compreensível é palavra colocada à disposição dos ouvintes; ela pode ser discutida, avaliada, aceita ou rejeitada. Ela convida à participação, ao envolvimento, à conversão.
4. Algumas considerações sobre a pregação
Não é fácil pregar sobre este texto. As perguntas norteadoras poderiam ser: Quem é profeta hoje? Quais são as funções proféticas necessárias hoje? Como e onde estas se expressam hoje?
Três frases me vêm à mente. Elas provêm de diversas épocas e foram ditas em diversos contextos.
a) O meu professor caracterizou certa vez um profeta da seguinte maneira: Um profeta nada sempre contra a corrente; na maioria das vezes ele é, por isto, uma pessoa solitária e sofredora. O sofrimento é uma das características do verdadeiro profeta.
b) Meu Pastor Regional disse já faz mais de uma década: Profetas a Igreja precisa de um só a cada 50 anos. Agora, de administradores a Igreja precisa de centenas por ano.
c) Um grupo de negros estudava o texto da vocação do profeta Jeremias e interpreta: ' 'O profeta Jeremias é o movimento negro que ganha consciência de sua vocação.
Certamente vamos reconhecer conceitos distintos de profecia por trás destas frases. A comunidade terá estas e muitas outras concepções. Tentar coletá-las antes do preparo da pregação ou encontrar meios de levantá-las durante o culto evitaria que o pregador lutasse contra moinhos de vento.
Creio que as funções e tarefas atribuídas ao profeta de acordo com Dt 18.15ss, na atualidade, não se encontram concentradas em uma só pessoa. O pregador não deve nem precisa carregar este fardo. Mas todas estas funções são ou devem ser assumidas pelo povo de Deus. Será que podemos detectar onde pessoas e grupos estão assumindo tarefas proféticas? Será que podemos trazê-los à celebração para compartilharem com o resto da comunidade o seu trabalho e a sua motivação? Mais fácil é, sem dúvida, descobrir que na comunidade falta assumir diversas funções proféticas. Será que é possível defini-las? Será que são funções essenciais? Será que a comunidade deveria procurar, no contexto maior, onde tarefas proféticas são realizadas e juntar esforços?