Prédica: Hebreus 3.1-6
Leituras: Amós 5.4-7, 10-15 e Marcos 10.17-27
Autor: Hans Alfred Trein
Data Litúrgica: 21º. Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 16/10/1994
Proclamar Libertação – Volume: XIX
1. Introdução
Hebreus é um escrito distinto no NT. Amarra inseparavelmente o AT ao NT. Propõe uma releitura do AT a partir de um novo eixo semântico: Jesus Cristo é o Sumo Sacerdote, a pessoa mais importante na hierarquia de pessoas, seu sacerdócio é eterno (o levítico é provisório) e o seu auto-sacrifício é pleno (de uma vez por todas, não precisando de repetição). Ele não saiu de cena, mas continua intercedendo em favor dos seus (7.25; cf. também Jo 17 e Rm 8.34), assim como também, preexistente, já falou ao povo de Deus através do Sl 95 = 3.7-11 (cf. também a preexistência na figura de Melquisedeque = rei justo em Hb 7).
Hebreus é uma prédica com um final epistolar (13.19-22-25), que a denomina de palavra de exortação (13.22). O conteúdo aponta como destinatários os judeu-cristãos (reafirmação) e, por tabela, também os judeus em geral (conversão). O final epistolar (possivelmente de Paulo) insinua-se como um bilhete anexado ao sermão que virou texto e que obteve uma circulação panfletária: o sermão sacerdotal.
2. Considerações exegéticas sobre Hb 3.1-6
Os ouvintes e leitores do sermão recebem o tratamento de santos irmãos, participantes da vocação celestial, mas não precisam necessariamente fazer parte do grupo do autor, que tem uma identidade confessional: nossa confissão. É Jesus que reúne o status de enviado (Moisés) e sacerdote (Aarão) numa só pessoa. No v. 6b: a qual casa somos nós, o autor pode estar se referindo não apenas a seu grupo, mas pode estar querendo abraçar os ouvintes e leitores.
A fidelidade de Jesus e de Moisés (Nm 12.7) é exatamente igual em toda a casa de Deus. O autor não desfaz Moisés, para ressaltar Jesus; a primeira comparação é de igualdade. Deus constitui ambos, e ambos foram fiéis. A relação entre Deus e Moisés é imediata, boca a boca (Nm 12.8). Como o rosto de Jesus resplandeceu, quando de sua transfiguração (Mt 17.2), também o rosto de Moisés resplandecia depois de seus contatos imediatos com Deus (Ex 34.29-35).
Contudo, existe uma diferença: Deus os constituiu de modos diferentes; Moisés foi colocado em toda casa de Deus (vv. 2 e 5), Cristo, porém, sobre a sua casa (v. 6). Moisés foi fiel como servo; Cristo foi fiel como filho. Moisés faz parte dos móveis e utensílios da casa (v. 3), ao passo que Jesus estabeleceu a casa (v. 3) em co-autoria com Deus, que estabeleceu todas as coisas (v. 4). Hebreus não propõe a substituição de Moisés por Jesus, mas uma ideia de progressão qualitativa, hierárquica.
Em 1.2 se pressupõe que Jesus não é apenas o construtor da casa de Israel, mas o preexistente co-criador do universo (cf. a ideia da preexistência de Jesus em João l e em l Co 10.4). Jesus é ontologicamente preexistente, mas Moisés é enviado como precursor de Jesus para testemunho das cousas que haviam de ser anunciadas (v. 5; cf. também Dt 18.15,18). Entre os tesouros e prazeres do Egito e o sofrimento e os maus-tratos do povo, Moisés optou pela paixão de Cristo (11.25s.). Como precursor, Moisés já era movido por Cristo.
A casa aparece seis vezes nesse pequeno texto. Deus estabelece a casa, Jesus a co-estabeleceu, Moisés serviu na casa, foi parte da casa. Nos w. 3 e 4, casa tem o significado de uma construção qualquer, nas outras vezes significa Israel, o povo de Deus.
Cabe ainda um comentário sobre a delimitação do texto. A fidelidade de Jesus (2.17; 3.2a) parece recordar a fidelidade de Moisés (Nm 12.7). O autor usa essa brecha para advertir os ouvintes e leitores sobre o destino da geração do deserto, por causa de seu comportamento infiel. Apenas em 4.14 é retomada a ideia de 2.17s. e 3.1. Desse modo, a digressão proposital e bem pensada do autor, 3.2-4.13, forma uma unidade estrutural. Tê-la em mente na meditação ajuda; ampliar o texto-base para a pregação atrapalha.
O final do v. 6 apresenta uma condição para permanecer casa de Cristo: guardar firmemente até o fim a franqueza e a convicção da esperança. Parresía reaparece em outras passagens importantes do sermão (4.16; 10.19,35) e significa originalmente a liberdade de falar na assembleia pública da pólis, como era o direito do cidadão completo; parresía é o direito de dizer tudo abertamente. Kaúxema é o contrário de duvidar, hesitar, murmurar, é manifestação de estar firme e permanecer agarrado (Hegermann, 90). O pregador estimula a coragem civil e um comportamento livre, apesar da perseguição.
3. Meditação
3.1. Tudo muito interessante! Mas o que nós aqui no Brasil e na América Latina temos a ver com isso? O argumento de Hebreus calha muito bem para os judeus que têm o AT como parte fundamental de sua história e de sua formação cultural. Para eles uma comparação de Jesus com Moisés é significativa, mas para nós… Onde está o nosso Moisés? Será que já tivemos a nossa experiência de saída do Egito?
Pensando os hebreus (depois israelitas, judeus) como uma categoria política, nacional, o significado de sua história e de seus personagens tende a ter para nós apenas uma importância informativa: trata-se da história de uma nação entre ondas. A história das culturas dominantes explica suficientemente como é que essa história chegou a alcançar essa importância civilizatória para nós. Pois se hoje nos perguntamos honestamente como chegamos a ser cristãos, temos que encarar unia história de sucessivas culturas dominantes. A espada que, por fim, aportou no continente latino-americano estava majoritariamente aliada à cruz infligida ao outro, r não à cruz como contradição, como a face obscura da própria dominação.
Pensando os hebreus como uma categoria social (arameus errantes; ‘apiru; gente sem pátria, sem cidadania; pobre massa de manobra), a experiência do êxodo com Moisés torna-se paradigmática, formativa para os miseráveis em rodos os cantos da terra. Com Moisés a experiência de libertação foi localizada; com Jesus a experiência de libertação universalizada. Todos os povos podem ter acesso privilegiado a Deus; todos podem ter esperança de entrar no descanso de Deus (3.7ss.). A partir desse momento passa a nos interessar visceralmente uma história de Deus com os empobrecidos de todos os tempos e cantos.
3.2. A designação sumo sacerdote (v. 1) carrega dentro de si todo o sistema sacrificial do templo (Lv 16). Chamando Jesus de sumo sacerdote, que traz um sacrifício suficiente, de uma vez por todas (9.26,28; 10.2) com o seu próprio sangue (e não com o de animais), o teólogo de Hebreus penetra no âmago do sistema sacrificial, para superá-lo. Jesus foi o último e pleno sacrifício; não há necessidade de mais outros sacrifícios.
No entanto, não é isso que vemos em nosso derredor. Continua havendo despachos e sacrifícios de galinhas, bodes, etc. Fornecer galinhas pretas para a grande Porto Alegre é um alto negócio. Às vezes, eu tenho o sentimento de que ainda vivemos tempos veterotestamentários nesse país. Ou será que faltou pregar o evangelho no sentido e no método de Hebreus?
A ideologia do sacrifício está bem presente em nossa sociedade. E não me refiro apenas aos despachos da macumba e aos trabalhos da quimbanda, mas também àquela ideia bem presente em cabeças mais esclarecidas: é normal que uns tenham que morrer, para que outros possam viver; é normal que a contrapartida do desenvolvimento, de um lado, seja a miséria, do outro lado. Para que haja centro, tem que haver periferia. O deus-mercado, como valor supremo, com pretensões hegemónicas, justifica cada vez mais sacrifícios. Pregar Jesus como sumo sacerdote significa opor-se firmemente a esse curso e não apenas condenar as galinhas pretas, que representam a expressão religiosa menos maléfica do sistema de sacrifícios já superado.
3.3. O método de Hebreus é muito respeitoso frente à história e à cultura. Sem querer reduzir a riqueza do conteúdo, poder-se-ia dizer que o conteúdo de Hebreus é o método. Não é necessário jogar fora ou desfazer Moisés. A glória de Jesus é tanto maior quanto maior for Moisés. Felizmente, Marcião (falecido em aprox. 160 d.C.) — sua proposta reformatória cresceu, quando o chefe da Igreja deixou de ser um judeu-cristão e passou a ser um cristão provindo dos gentios — não foi exitoso em sua tentativa de excluir o AT da Bíblia cristã. O AT é a nossa história de fé mais antiga, e não podemos, numa atitude neo-marcionita, tratá-lo apenas como museu textual.
Pensando o método de Hebreus, podemos ter iluminação a respeito de evangelização e missão. A mesma hermenêutica que substitui Moisés por Jesus, que substitui o antigo Israel (judeus) pelo novo Israel (cristãos), também massacrou índios e negros. No método de Hebreus, Jesus não é uma figura alheia à cultura; pelo contrário, está perfeitamente integrado nela. Jesus vem cumprir a lógica interna da cultura específica. E exatamente nisso reside sua universalidade. Contudo, o que fazer dentro de uma miscelânia de culturas? Talvez tenhamos uma ideia de como resistir à invasão cultural. Mas como podemos seguir a fidelidade de Moisés e Jesus para com a casa de Deus, tão fragmentada, de modo que nem mesmo entre os cristãos estamos em condições de dizer nós ou nossa confissão?
4. E os textos auxiliares?
Amos 5.4-7,10-15 expõe os limites da lei de Moisés. A lei é boa, mas não ó cumprida. Israel, que vagou por 40 anos (= tempo completo) pelo deserto, não esqueceu o Egito e o re-instala: os pobres são sacrificados para que alguns possam beber vinho e viver em casas bonitas. Não adianta fazer teatro religioso. Buscar o bem é sair do sistema sacrificial. Só isso garante a sobrevivência; maquiar o sistema com procedimentos religiosos e culturais fatalmente resultará em destruição não só dos pobres, mas de toda a criação.
Marcos 10.17-27 constata a motivação principal da injustiça social: as riquezas. Elas ofuscam de tal forma, que é praticamente impossível vislumbrar uma sociedade onde não haja pobres por causa de ricos. Aqui os mandamentos são individualmente cumpridos desde a juventude, mas isso não é o suficiente para garantir um ordena mento social justo e conforme a vontade de Deus. É preciso mais: disposição de despojar-se, repartir, desfazer-se desse tipo de riquezas iníquas (cf. Lc 16.9), para ganhar o tesouro no céu, que é vida abundante para todos. Que o Espírito Santo nos ajude a crer que o sumo sacerdócio de Jesus torna possível o que nos parece impossível (v. 27).
5. Prédica
5.1. Uma sugestão de prédica seria temática: A nossa Bíblia contém dois testamentos. Ambos os testamentos têm validade e estão permeados por obras e graça, por lei e por evangelho (Jo 1.16s.) O AT não é velho, nem para ser tratado como museu; o NT não veio para substituir o AT. No AT, temos a palavra de Deus; no NT, a palavra de Deus tornou-se carne e habitou entre nós. Moisés e Jesus se encontram na mesma missão de Deus ao longo dos tempos, cada um cumprindo a missão que Deus lhe conferiu, e com fidelidade igual.
Uma distinção entre Jesus e Moisés não pode acontecer através da diminuição de Moisés; a exaltação do servo confere mais brilho ao filho. Os textos auxiliares podem complementar o modo como Hb 3.1-6 relaciona, resp., distingue Jesus e Moisés. Jesus não veio para revogar, mas para cumprir, ou melhor plenificar. Nada do AT deve ser jogado fora ou desprezado. Deus age analogicamente e não por oposição ou substituição. O AT só é bem compreendido pelo NT, e o NT só pode ser bem compreendido a partir do AT.
5.2. Uma segunda sugestão de prédica poderia apresentar duas pessoas à comunidade. Uma vestida como um empregado, e a outra, como um filho. No caso de serem homens, sugiro que o empregado esteja vestido com um macacão de serviço e o filho com uma roupa mais chique. No caso de serem mulheres, sugiro que a empregada seja caracterizada com um avental e a filha com uma roupa mais elegante. Há de se cuidar para distinguir claramente, mas não inferir uma dimensão de que um vale menos que o outro (p. ex., a roupa da empregada está suja e rasgada ou grosseiramente remendada). Se for possível, caracterizá-los segundo a apresentação que o texto faz de Moisés e Jesus. Apresentá-los não fazendo nada seria melhor, para não dar muito espaço para desvios.
A comunidade é solicitada a ajudar a descobrir o que essas pessoas representam, o que as diferencia, mas também o que elas têm em comum (aqui talvez pode uni movimento ou uma ação comum que sugira igualdade e fidelidade; não desistir muito cedo dessa última descoberta). Essa brincadeira inicial é a porta de entrada para falar de Moisés e de Jesus, para refletir sobre o lugar do AT e do NT em nossa vida de fé. Bíblia não é tudo igual. No NT, Deus atua em analogia ao AT, mas Jesus vem depois de Moisés e não antes, nem ao mesmo tempo. A missão de Deus no mundo cresce, não fica estagnada.
6. Subsídios litúrgicos
1. Intróito: ' 'E o Verbo se fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade, e vimos a sua glória, glória como a do unigénito do Pai (Jo 1.14).
2. Confissão de pecados: Querido Senhor e Deus, que primeiro Te fizeste palavra criadora de vida e depois Te tornaste palavra encarnada em Jesus Cristo, queremos nessa hora confessar-Te:
— temos sido por demais exclusivos em nosso jeito de ser, e não admitimos quem pensa diferente, o que atesta nossa insegurança;
— temos sido pouco compreensivos para com as manifestações religiosas de outras raças e culturas;
— a ênfase que, com outros cristãos no mundo, temos dado a Cristo mais exclui, distingue e separa do que ajunta em torno do objetivo de Teu reino;
— temos confundido fé cristã e cultura anglo-saxã (europeia), e isso dificulta nossa relação com pessoas de outras raças, culturas e origens.
Dá que descubramos o Cristo inclusivo, que Tu puseste como redentor de nossa humanidade agonizante.
3. Anunciação da graça: Porque todos quantos fostes batizados em Cristo, de Cristo vos revestistes. Dessarte não pode haver judeu nem grego; nem escravo nem liberto; nem homem nem mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus (Gl 3.27s.).
4. Oração de coleta: Senhor, estivemos espalhados, cada pessoa em seus afazeres e preocupações. Experimentamos desgastes, tivemos atritos em nossos relacionamentos, sentimo-nos cansados e, às vezes, sobrecarregados. Estamos com fome da lua palavra. Recolhe, Senhor, os nossos pedaços, refaz a tua comunidade, restaura-nos a integridade com a tua santa palavra. Amém.
5. 1a Leitura: Amos 5.4-7,10-15.
6. Hino: HPD 263.
7. 2a Leitura: Marcos 10.17-27.
8. Assuntos para a oração final: Agradecimento por esse serviço que Deus nos presta com sua palavra. Que compreendamos, mais e mais, o Cristo inclusivo e por isso universal que a Bíblia nos transmite já a partir do AT; na imagem desse Cristo Cristo incluídos todos os pobres, fracos e doentes. O Sumo Sacerdote, Jesus Cristo, anima-nos a nos aproximarmos dos crucificados de hoje sem receios e preconceitos. Vamos lembrar: Quem está doente no hospital? Em casa? Quem está sofrendo as mazelas do sistema sacrificial do Brasil? No mundo? O Cristo sacrifício único e pleno nos autoriza a denunciar o sacrificialismo de nossa sociedade doente. Que Deus nos dê coragem para dar esse testemunho!
9. Hino: HPD 166.
7. Bibliografia
HEGERMANN, Harald. Der Brief an die Hebräer. Berlin, Evangelische Verlagsanstalt, 1988. (Theologischer Handkommentar zum Neuen Testament).
LAUBACH, Fritz. Der Brief an die Hebräer. 2 ed. Wuppertal, R. Brockhaus Verlag, 1972. (Wuppertaler Studienbibel).
STRATHMANN, Hermann. Der Brief an die Hebräer. Göttingen. Vandenhoeck & Ruprecht, 1963. (NTD).
VANHOYE, Albert. A mensagem da Epístola nos Hebreus. São Paulo, Paulinas, 1983. (Cadernos Bíblicos).