Prédica: Hebreus 4.9-16
Leituras: Isaías 53.10-12 e Marcos 10.35-45
Autor: Heinz Ehlert
Data Litúrgica: 22º. Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 23/10/1994
Proclamar Libertação – Volume: XIX
1. Considerações exegéticas
A tradução de Almeida, versão revista e atualizada, satisfaz. O capítulo anterior (Hb 3) já aponta o perigo da desobediência, que também é retomado no capítulo do qual é extraído o nosso trecho. A novidade temática aqui é o descanso. Esse conceito, que aponta para uma realidade escatológica de suma importância, em nosso trecho ocupa espaço nos vv. 9 a 11. Um segundo pensamento dá uma definição específica à palavra de Deus (w. 12-13). Nos versículos seguintes (w. 14-16), finalmente se retoma, sob o pano de fundo dos temas anteriores, a figura e o papel do sumo sacerdote excelente que é Jesus (cf. 2.16-18 e 3.1). A temática continuará a ser desenvolvida em toda a sua riqueza, aplicada sempre à obra salvífica de Cristo (até cap. 10 inclusive). Como ainda veremos, o nosso trecho destaca apenas um aspecto desse sacerdócio. Esse é, pois, o contexto do trecho em pauta. Vejamos agora, versículo por versículo, alguns detalhes que parecem dignos de nota para a melhor compreensão da mensagem do trecho.
V. 9: A referência a Josué ajuda na interpretação do termo repouso/descanso. Foi Josué (v. 8) quem conduziu o povo de Israel a um descanso, à terra de Canaã, depois de longa peregrinação pelo deserto. Ali teriam finalmente a paz, o descanso tão almejado (Dt 12.9 e 10; Js 1.15). Para Hebreus, porém, descanso é mais: designa a consumação. É, na verdade, a salvação, que começa para os cristãos no momento em que aceitam a palavra salvífica. Já no AT, descanso e salvação são termos correlates.
V. 10: Quer explicar o pronunciamento do versículo anterior. O descanso de Deus é exemplar para o nosso, que, no entanto, não contradiz a ação continuada do Criador e Salvador. As obras humanas têm um alvo e um limite. A consumação para a existência humana é chegar ao descanso de Deus. Por isso, entrar … no descanso deve ser preocupação e tarefa atual para os cristãos.
V. 11: Os cristãos devem ser até zelosos nessa tarefa da busca do descanso. Nisso se expressa toda a seriedade do assunto que aqui é discutido. E logo segue uma advertência: … a fim de que ninguém caia, segundo o mesmo exemplo da desobediência. Esse exemplo pode ser estudado na história do povo de Israel.
V. 12: Por que, de repente, se fala da palavra de Deus, descrevendo seus atributos e efeitos? Certamente porque ela é imprescindível na busca do descanso. Viva (cf. Dt 32.4-7; Is 55.11; At 7.38) é chamada a palavra, porque pertence ao Deus vivo, que cria a vida (cf. Gn 1). Pela palavra a vida de Deus se comunica. E sua eficácia poderá ser comprovada pela história do povo, como pela própria natureza, sua criação. Mas logo é comparada a uma espada cortante de dois gumes, o que ainda destaca o efeito cortador. A comparação é conhecida (cf. Sl 149.6; Is 27. L; Ez 21.9-10,13-22). Ela penetra no íntimo da personalidade, atingindo tanto o campo psico-espiritual (alma e espírito) quanto a existência física (juntas e medulas). Deixa a descoberto os pensamentos e propósitos — para quem? Certamente para Deus, mas principalmente ajuda a própria pessoa a se conhecer melhor, mostrando-lhe de que qualidade são os pensamentos mais escondidos, se estão em sintonia com a palavra de Deus e seus propósitos ou se se inclinam para a desobediência (Mt 15.10-20).
V. 13: De maneira radical, explica e reforça o afirmado (v. 12). E não há criatura — mesmo o ser humano, tão inteligente, sagaz, criativo (Sl 8.3-6, citado em Hb 2.6-8), continua completamente nu (todas as cousas estão descobertas — gymná — nus) diante de Deus (cf. Gn 3.8-11). O termo criatura ainda acentua que a pessoa humana está totalmente à mercê de Deus. Não consegue escapar dele. Mais: temos que prestar contas. Isso traz à consciência um relacionamento pessoal. Somos levados a sério como criaturas responsáveis. Ao mesmo tempo, essa afirmação nos remete outra vez à perspectiva escatológica (descanso).
V. 14: Após a severa advertência, o anúncio da boa nova pela lembrança da figura do grande sumo sacerdote, identificado na pessoa de Jesus, chamado de Filho de Deus. Ele é grande, porque faz o que um sacerdote terreno não consegue, como ainda será desenvolvido mais tarde. Mas aqui basta que penetrou os céus. É uma outra maneira de falar da ascensão de Jesus. Transmite a ideia de que há várias camadas a atravessar, até chegar ao santo dos santos. E esse sacerdote singular temos! Não por algum tipo de conquista, nem mesmo do saber que se apodera, mas por doação. É o ter da fé. Mas confirma e expressa um relacionamento muito pessoal. Ele se doou.
V. 15: Se, de forma positiva, foi exaltado o sumo sacerdote, agora na forma negativa diz como ele não é: Não é incompassivo. O que penetrou os céus é realmente o Jesus histórico, isto é, aquele que se tornou homem, esvaziando-se a si mesmo (Fp 2.6-8), submetendo-se à tentação (Mt 4.1-11 e par.). Mas a semelhança só vai até aí, porque Jesus não caiu na desobediência, no pecado. Mesmo assim, conheceu toda a fraqueza e vulnerabilidade humana. Por isso sentimos que pode compadecer-se, sofre com a fraqueza do tentado. A fragilidade humana é tanto físico-psíquica quanto espiritual, da fé.
V. 16: Mais uma exortação nesse trecho: Acheguemo-nos, ir ao encontro, ir para a frente (cf. Hb 7.25; 10.22; 12.22). É o que o sacerdote faz num andar ritual no culto judaico. Aqui é a comunidade cristã que recebeu esse direito, embora não para dar ou sacrificar algo, mas tão-somente para receber a comunhão com Deus pelos pecados perdoados, isto é, graça e misericórdia. Mas ao trono da graça, isto é, ao próprio Deus, só pode achegar-se quem aceita a palavra do sumo sacerdote Jesus Cristo. Ouvindo e crendo — assim acontece a aproximação (isso é detalhado cm Hb 10.19-22). Meta parraesias, com confiança; assumindo a atitude correta de criatura humilde e obediente, poderá fazê-lo com alegria confiante ou alegre confiança ou ainda corajosa liberdade, na liberdade dos filhos de Deus. É tão bom saber que Jesus leva a sério a aflição da comunidade, e ele é o vencedor que, sofrendo conosco, estará ao nosso lado.
Misericórdia e graça vêm estreitamente ligados (l Tim 1.2; 2 Tim 1.2; Tl 1.4), sem uma clara distinção no sentido. Exegetas tentaram definir misericórdia: o ato de Deus de voltar-se à miséria e culpa do ser humano. Graça seria a doação espontânea de sua benevolência. Em todo caso, é socorro, ajuda, quando a tribulação é grande e parece insuportável. Isso então é entrar no refúgio do descanso de Deus. Nova existência, de fato, perante ele.
2. Meditação
Três palavras-chaves parecem desafiar-nos à reflexão sobre nosso trecho: repouso/descanso, palavra de Deus, sacerdote. Buscando a significação do seu conteúdo — mensagem para nós, vamos desenvolver a meditação. Quando é que me interesso por repouso ou descanso? Quando tive que trabalhar muito sem parar, quando me perseguem, quando sou acossado de diferentes lados, quando estou numa luta sem trégua, quando proferi palavras ou cometi atos que me lançaram em conflitos com Deus e meus semelhantes. Podemos perguntar: Onde existem situações dessas hoje em nosso meio? A pronta resposta será: Em toda a parte, também na minha família, em minha própria vida, portanto. O evangelho descreve (Mt 9.36) uma situação do povo simples em Israel no tempo de Jesus, quando as multidões … estavam aflitas e exaustas como ovelhas que não têm pastor. E Jesus se compadeceu delas. Percebemos hoje uma grande inquietação entre os jovens. Que futuro os espera? Que futuro podem construir, onde a natureza se encontra depredada, onde os líderes (políticos, econômicos e religiosos) os deixam desiludidos, pela situação regional e mundial que criaram? Onde um sistema econômico privilegia poucos e joga na miséria as multidões? E que perspectivas tem o mundo das crianças abandonadas ou desassistidas de saúde e educação e mesmo de alimentação? E os que lutam para mudar a situação se sentem cansados e desanimados. Nas grandes cidades, principalmente, mas também em certas áreas do campo, a violência tem aumentado tanto, que o medo é a marca generalizada das pessoas. A própria existência está ameaçada onde não existem garantias de que o trabalho fornece sustento. A terceira idade também se sente constantemente ameaçada devido à polí¬tica previdenciária em andamento. Mas não é só isso. Abalados parecem valores como matrimónio, família, comunidade de fé. Os meios de comunicação, as novelas evidenciam isso e contribuem para isso ao mesmo tempo. Um ataque massivo de novas seitas, esoterismo e misticismo num verdadeiro supermercado religioso tendem a acabar com o resto de nossa tranquilidade e paz. Mas resta um repouso para o povo de Deus! A promessa continua. É preciso voltar-se a ela e levá-la a sério para a vida concreta do dia-a-dia, na situação em que vivemos. Isso, porém, requer esforço (v. 11). Ninguém diz, o evangelho não diz que é moleza. Exige. Exige atenção antes de mais nada e, sobretudo, à palavra de Deus, ou seja para o próprio Deus. Num mundo tecnicista, parece que não há mais lugar. Ele oferece paz agora e no futuro. Mas exige respeito a ele, obediência à sua palavra, que tão claramente manifesta o seu amor para o bem-estar e a salvação das pessoas. É preciso aprofundar-me nela.
A palavra de Deus não é palavra morta, fixa em papéis e códigos, fossilizada. Ela é viva, fala à situação atual. Aqui aprendo que ela tem efeito diagnosticador: torna descoberto como sou, como são, onde está a raiz do mal que a todos aflige. Desrespeito a Deus resultou em desrespeito a mim mesmo (trabalho demasiado, álcool, drogas), ao próximo (objeto, exploração) e à natureza (exploração, depredação). Reconheço as minhas omissões e as do povo do Deus, destinado para repouso. Revela Deus como senhor da história: a quem temos de prestar contas (v. 13). E, ainda assim, destaca as minhas potencialidades como as do povo de Deus, no meio do qual e por meio do qual Deus quer agir. Não precisamos, nem devemos cruzar os braços. É preciso unir-nos aos irmãos aqui, em nosso local e em todo o mundo. Discutir e tomar decisões para ações concretas de mudanças no quadro desolador que causa cansaço e desânimo.
O grande sumo sacerdote! Num primeiro momento, essa terminologia não me diz nada. Acostumados à pluralidade religiosa, não conseguimos ver sentido num chefe religioso universal. O particularismo de uma infinidade do líderes e mágicos locais parece ser trunfo. Afinal, somos indivíduos e donos do próprio nariz”, ainda mais quando se trata de religião. Tudo é tão relativo.
Acontece que as fraquezas não são relativas, porque são nossas. São tão reais. O corpo sujeito ao stress, à doença, à morte. Mas não só o corpo. Também a alma. Tudo que tem a ver com a dimensão psico-emocional. O nosso relacionamento com as pessoas, quantas fraquezas não aponta! Daí acontecem os emocionais que tanto atrapalham a vida tranquila que almejamos para nós e nossos familiares e, por extensão, para o nosso povo. E que dizer da fraqueza espiritual, a fraqueza da fé? Qual é a mensagem fidedigna a respeito da morte o que vem depois? Da consumação do século (Mt 28,20)?
Acheguemo-nos, portanto, confiadamente, junto ao trono da graça… (v 16). Pudera! E se me falta essa alegre confiança? O convite está aí. Mas não é um convite solto. Um convite que vem a partir da palavra viva de Deus. Ela não é só acusadora. É, sobretudo, criadora, vivificadora, salvadora. Anuncia o Filho de Deus como grande sumo sacerdote. Que abriu o acesso e continua abrindo o acesso ao trono da graça, a Deus como Pai. Ao aproximar-me do trono da graça, a confiança aumenta. A experiência dos irmãos na comunidade de fé, onde se proclama esse evangelho, ajuda também.
3. Indicações para a prédica
Ela poderá seguir os passos da meditação. Estaria também dentro da estrutura do próprio trecho. Mas pode também começar com as fraquezas, facilmente constatáveis. Esse caminho tomei numa prédica sobre o trecho. Falar sobre o estranho repouso/descanso, anunciado no trecho. O papel peculiar da palavra de Deus, descrito em nosso texto, pode ser elaborado bastante, como tentei ao longo da meditação.
A terceira parte seria naturalmente a mensagem evangélica, que anuiu m o socorro oferecido pelo grande sumo sacerdote. Ao apresentar a imagem desse sacerdote, convém descrever no ministério de Jesus as suas tentações (não só uma) e seu sofrimento, caracterizando-o como verdadeiro homem. Mas tudo culminará na sua morte e ressurreição, que possibilitou o repouso e a ajuda já agora o no futuro. Acentuar que está ao nosso lado e, ao mesmo tempo, à direita de Dons e intercede por nós.
4. Subsídios litúrgicos
Na confissão de pecados e na oração da coleta, podemos já mencionar a nossa fragilidade e as tentações em que caímos. Exaltar o poder da palavra de Deus, pedindo que aja em nós.
Além das leituras sugeridas na série ecumênica, eu posso imaginar bem a leitura de Jo 14.16-27 como leitura bíblica no altar.
Na oração final, sugiro colher sugestões dos membros presentes ao culto. Que coloquem algo que os aflige no momento presente, fraquezas e tentações próprias ou de familiares e da comunidade. É oportunidade de participação. Pode ser também na forma de não apenas citar assuntos, mas expressar em palavras de oração própria. Isso ajuda no ensaio de aproximar-se do trono da graça.
5. Bibliografia
HEGERMANN, Harald. Der Brief an die Hebräer (Theologischer Handkommentar zum Neuen Testament). 1a ed. Evang. Verlagsanstalt, 1988, Berlin.
MICHEL, Otto. Der Brief an die Hebräer, 9a ed. Vandenhoeck & Ruprecht, 1955, Göttingen.
STRATHMANN, Hermann. Der Brief an die Hebräer, NTD, Vandenhoeck & Ruprecht, 1949, Göttingen.
(Veja também os Auxílios sobre Hb 4.12-13 e Hb 4.14-16 em Proclamar Libertação XI.)