Prédica: Isaías 61.10-62.3
Leituras: João 1.1-18 e Efésios 1.3-6,15-18
Autor: Lori Altmann
Data Litúrgica: 2º Domingo após Natal
Data da Pregação: 02/01/1994
Proclamar Libertação – Volume: XIX
Tema: Natal
1. Contexto
Segundo Hans Trein (PL VII, p.44), o Trito-Isaías é composto por uma coleção de acrésciirios ao livro de Isaías, elaborado por várias mãos e em épocas diferentes. Possivelmente, tal coleção foi anunciada e escrita no último terço do 6° século a.C. Trito-Isaías é uma mistura de promessa, exortação e ameaças. O texto, por isso mesmo, agita, inquieta o leitor. Dirige-se a um povo desanimado, incentivando-o. O anúncio da salvação, nos capítulos 60-62, é considerado o cerne de Trito-Isaías, cujo início localizamos no capítulo 56, estendendo-se até o capítulo 66.
Provavelmente, o Trito-Isaías refere-se ao período do domínio persa sobre Judá. No ano 538 a.C., o rei Ciro da Pérsia decretou que o templo de Jerusalém, destruído em 587 a.C., poderia ser reconstruído. Permitiu também o regresso do povo exilado na Babilônia, o que aconteceu em 537 a.C., quando um grupo de israelitas retornou a Jerusalém. Este grupo encontra a realidade de uma cidade arrasada, necessitando ser reconstruída. Para dentro desta realidade fala o texto do Trito-Isaías. Fala da promessa de Deus, da esperança do fim das dificuldades materiais (62.8s), do fim da insegurança política (60.10.18), da devastação (61.4), das humilhações pelas quais o povo passou (63.4; 61,7).
Ë útil olharmos um pouco todo o livro conhecido como Isaías, obra extensa, que reúne tradições proféticas de quase 4 séculos, desde a pregação do próprio profeta (a partir de 740 a.C.) até a redação final do complexo literário atual, em torno de 400 a.C. Neste período histórico, o povo de Judá sofreu a dominação da Assíria, depois a Caldéia e finalmente a Persa, cada uma com características diferen¬tes, mas todas imperialistas. Em meio a esse período acontece o exílio babilónico de Judá. Este país viveu o final da monarquia, a escravidão do exílio e as tentativas de restauração sob o domínio persa. O Trito-Isaías apresenta reflexos dessa situação, reagindo contra as promessas utópicas de seu predecessor, num contexto pós-exílico deprimente e difícil.
A chave situacional para ler todo o livro de Isaías na sua forma atual, e não só o Trito-Isaías, segundo Croatto, é a perspectiva pós-exílica. Portanto, o horizonte de leitura do livro todo de Isaías é pós-exílico, por ocasião da dominação persa, da luta pela sobrevivência da comunidade judaica, da desonestidade da classe dirigente de Jerusalém, dos conflitos com os samaritanos, etc. A mensagem antiga de Isaías a respeito do julgamento divino tem ainda validade, mas é necessário estimular a esperança num povo frustrado.
O texto a ser estudado fala em justiça e salvação. Para melhor concretizar estes conceitos é importante considerar as condições políticas e sociais do povo na época: dominação estrangeira, corrupção da classe dirigente do país (parecem temas recor¬rentes). O Trito-Isaías ao que tudo indica quer corrigir e re-situar o utopismo salvífico de Dêutero-Isaías, propiciando novos canais de esperança.
Durante o domínio persa, houve uma restauração por mínima que fosse, uma recuperação da terra e da comunidade. É bom entender isso dentro da política dos persas de repatriação dos exilados, que permitia ter vassalos agradecidos no Império, resultando num menor custo econômico. Por outro lado, a presença imperialista da Pérsia significou empobrecimento e alienação registrados em Neemias 9.36s. Isso ocorre através do despojo econômico: impostos, sustento de tropas, trabalhos de infra-estrutura militar. Desta maneira, textos de Isaías sobre a dominação assíria passaram a readquirir valor na época persa.
A imagem era de um país devastado pelas sucessivas invasões, pela seca, pelas pragas (cf. Jl 1.4s) e pela fome. Havia pobreza (Ne 1.3a), administração injusta dos poderosos. Os camponeses produtores de alimentos eram os mais afetados (Ne 1.3-5.11). Esta realidade fazia com que se tornassem atuais as críticas de Isaías contra as injustiças sociais, os despojos dos camponeses, a exploração dos que não têm poder.
A recorrente exploração imperialista dos estrangeiros e o mau governo interno (abuso dos poderosos, degeneração da função sacerdotal, etc), denunciada por Isaías, eram também problemas da comunidade pós-exílica. Portanto, a crítica deveria ser recordada e transmitida pela tradição profética. Mas a situação grave da comunidade pós-exílica exigia que se olhasse para o futuro com mais esperança. Exigia um anúncio que fizesse sair do desânimo, da letargia.
Registre-se também a importância central de Jerusalém no período pós-exílico, outra coincidência com o contexto de Isaías.
O povo, de volta à Palestina, enfrenta a miséria da readaptação e da reconstrução. As profecias não precisam mais falar do desejo por libertação e regresso. Elas se voltam para as circunstâncias precárias na vida comunitária: pesados impostos, injustiça social (57.1ss) e governo falho (56.9ss) (von Rad, p. 290). Trito-Isaías se confronta com um povo de pequena fé (59.1ss), que estraga seu relacionamento com Deus através de injustiça e culto vazio (58.1ss). Acaba desacreditado da bene-volência divina.
O profeta Isaías não é apenas enviado ao povo em geral, mas especificamente aos oprimidos, aos que sofrem necessidade material e malogro espiritual (Schwantes, p. 183). A perspectiva não é meramente escatológica, mas significa já encontrar-se dentro da salvação. Os oprimidos já estão dentro da salvação. Provavelmente por isso, no texto em estudo, os termos salvação e justiça aparecem várias vezes juntos.
2. Meditação
O profeta se apresenta com a missão de comunicar uma mensagem de libertação aos mais necessitados. O profeta tem a função de mensageiro da boa nova. A consequência da boa notícia é um hino de júbilo e alegria (61.10), que irrompe no coração dos pobres (Burin, p. 21). A metáfora da veste (vestes de salvação, manto de justiça) justifica uma atitude de júbilo e festa. Há um reconhecimento da mudança de situação. Apesar do desânimo, o povo está de volta a sua terra. O júbilo e a alegria não é tanto a constatação de uma realidade, mas antes a esperança na realização de uma promessa. O júbilo e a alegria que o profeta antevê para o povo é comparável ao preparar-se de jovens para o encontro de amor. Eles se adornam e vestem suas roupas de festa.
O profeta insiste, no capítulo seguinte, na realização da promessa, comparando-a com a terra que faz brotar suas plantas e com o jardim que faz brotar o que nele se semeia. O Senhor fará germinar a justiça (62.11). Ele faz germinar, sim, mas há também a nossa responsabilidade. A planta é algo vivo, frágil. Pode amadurecer como pode morrer. Aí entra a participação de seu povo.
Em 62.1, o profeta fala da necessidade de não calar. Da necessidade de anunciar, de não deixar Deus em paz. A oração é insistente. Lembra Lc 11.5-8, a parábola do amigo importuno. Por amor a Jerusalém (Sião), o profeta não pode calar. De forma parecida, o autor do SI 137 afirma que não pode esquecer-se de Jerusalém (v. 5), quando assentado às margens dos rios da Babilônia (v. 1).
O profeta não pode calar (62.1) até que saia a justiça como um resplendor, a sua salvação como uma tocha acesa. A pregação do profeta está baseada no presente, mas se estende ao futuro. A sua missão deve ser levada em frente, até que …. O projeto é maior, o resplendor e a salvação não vão pairar exclusivamente sobre Jerusalém, mas sobre todos os povos (v. 2). As nações verão a tua justiça. E serás chamado por um nome novo que a boca do Senhor designará (v. 2). Participar da filiação de Deus é receber um novo nome. A filiação define a nomeação. Dar nome também tem a ver com criação/recriação. Quem dá nome cria. Tem poder criador/restaurador. Faz re-nascer através da palavra criadora. O nome faz surgir a existência social, seja para uma pessoa, seja para um povo. Por exemplo, entre o povo indígena Suruí (Rondônia), depois de uma situação crítica de doença, a pessoa recebe um novo nome, como se renascesse, se tornasse outra pessoa.
Para a compreensão dos vs. 1-3 do cap. 62, é importante ler toda a profecia. Pois, o que a primeira parte (v. 1-7) diz em termos abstratos (justiça, salvação, vitória), poéticos (as núpcias entre Deus e seu povo) e simbólicos (coroa, diadema), ilustrados com imagens bonitas e até comoventes (noivado), a segunda parte (vs. 8-9) concretiza em termos bem reais. Se lemos a primeira parte isoladamente, não conseguiremos captar o significado exato de justiça, salvação, vitória (vs. Is), felicidade (v. 5), glória (v.7). A que corresponde, de fato, esta linguagem abstraia e poética?
Por isso, é importante ver o texto no seu contexto literário mais amplo. Prestar atenção aos detalhes no texto bíblico em que transparece a realidade. No caso de Is 62.1-9, estes detalhes encontram-se nos w. 4a,8-9. Nunca mais te chamarão: Desamparada; nem a tua terra se denominará jamais: Desolada (v. 4a). Jurou o Senhor pela sua mão direita e pelo seu braço poderoso: Nunca mais darei o teu cereal por sustento aos teus inimigos, nem os estrangeiros beberão o teu vinho, fruto de tuas fadigas. Mas os que o ajuntarem o comerão, e louvarão o Senhor; e os que o recolherem beberão nos átrios do meu santuário (vs. 8-9).
A justiça de Deus é citada no cap. 61.10-11; e no cap. 62.1-2 de nossa perícope. Ou seja, em todos os versículos, com exceção do último. A justiça, a salvação, a vitória, a felicidade, o louvor, a glória, tudo faz parte da promessa divina. A contrapartida, e que faz supor a necessidade da promessa, é a realidade manifesta nos v. 4 e 8-9. Isto é, a injustiça do roubo do produto do trabalho pelos imperialistas estrangeiros. A concretização histórica do amor de Deus pelo seu povo, a sua promessa consiste e se revela, portanto, no pleno gozo do produto do seu trabalho. Na satisfação das necessidades básicas: comida e bebida, trabalho e festa (louvor).
O profeta não pode se calar nem se aquietar. Recorda/cobra de Deus as promessas feitas: justiça e salvação. O povo está desorientado, desanimado e numa terra arrasada depois de ter conseguido retornar do exílio. É difícil acreditar n;i realização da promessa nessa situação. O profeta tenta animá-lo, desafiá-lo.
A descrença e a inquietação do povo refletem as necessidades que só podem ser entendidas concretamente a partir da leitura do texto em forma negativa. O pagamento de impostos a imperialistas estrangeiros (sistema tributário antigo, hoje, talvez a nossa dívida externa), motivo de carestia e miséria, resulta, na pregação do profeta, na promessa do usufruto dos bens de seu trabalho, com a satisfação de necessidades básicas: comida e bebida e o consequente louvor a Deus.
A promessa de Deus é a restauração de Sião (Is 54.1-6). Mas o povo vive numa cidade semi-destruída, sem muros para a defesa, numa terra arrasada pela guerra, sem auto-estima e dignidade. A promessa anuncia (62.2): … os povos verão a tua justiça. Deus vai restabelecer a sua glória. O profeta estimula o povo a levantar-se, a auto-reconstruir-se, mas também o lembra da promessa que deve ser cobrada, exigida, reivindicada. Trata-se de pedir a Deus o cumprimento das promessas feitas durante o exílio.
O povo, pela sua própria existência, deve ser o sinal, o testemunho vivo da esperança, da presença e do agir de Deus! (62.2-3). Sinal de glória, mas também sinal de contradição, sinal de inquietação, de não conformismo com o estado de coisas vigente. Incomodar, inquietar, perturbar a aparente ordem das coisas. Desorganizar, agitar, sacudir, chacoalhar.
Não se consegue solucionar/superar os problemas com uma atitude fatalista, ficando parado, acomodado ou sem esperança. É necessário perguntar pela salvação. Buscá-la. Procurar saber o que significa salvação hoje, colocar-se em movimento, não calar-se (como o não calar-se de 62.1).
Inquietar desdobra-se em: pedir, implorar, exigir, não se calar diante de Deus, esperar, crer e lutar pelo cumprimento de suas promessas. Um esperar ativo. O povo de Deus tornou-se testemunho para o mundo do que Deus revelou em 62.10-12.
O texto anima, inquieta. Esta inquietação deve ser semeada na busca da concretização do Reino de Deus, que já começa aqui e agora e que, no caso do texto, significava a realização e satisfação de necessidades, direitos e desejos bem concretos.
Concluindo, gostaríamos de tentar uma interrelação entre os três textos previstos. A relação que Isaías estabelece entre justiça como resplendor e salvação como tocha acesa pode ser correlacionada com a luz citada em João. O povo de Deus como agraciado pela justiça e pela salvação participa da Luz. Assim, torna-se por sua vez luz perante as outras nações, testemunho vivo, sinal. Também Ef 1.18 fala em iluminados os olhos do vosso coração. Isto é, iluminados, entendamos a esperança e a testemunhemos. Para isso, veja em seguida, nos Subsídios Litúrgicos, a sugestão das velas acesas.
3. Subsídios litúrgicos
1. Sugestões de hinos: Canção de chegada, Libertação, Cântico de Maria, Jesus Cristo-Esperança para o mundo, Terra de Deus-Terra para todos, Momento Novo (Cancioneiro da PPL); Hino 177 (HPD).
2. Sugestões para prédica: fazer a releitura do texto dentro do contexto para concretizar as palavras justiça e salvação a partir da realidade histórica concreta da comunidade;
— qual é a nossa realidade hoje? Incluir aspectos locais ou nacionais que provoquem inquietação;
— a promessa de justiça e salvação se dirige também ao povo de Deus hoje, a cada comunidade local; como se concretiza esta promessa? Como podemos cobrá-la de Deus e também lutar em conjunto para conquistá-la?
— como cristãos, de que forma podemos ser testemunhos vivos dessa promessa para dentro de nossa realidade?
3. Sugestões para o encerramento do culto: A comunidade recebe velas na entrada do culto. No final, o grupo de jovens acende as suas velas na vela do altar. Primeiro um/a e este/a depois vai passando para outra pessoa. Então todo o grupo vai distribuindo a chama pela comunidade, simbolizando a luz mencionada em Jo 1.1-18 e a nossa adoção como filhos/as de Deus citada em Ef: iluminados os olhos do vosso coração para saberdes qual é a esperança do vosso chamamento. Devemos como pessoas cristãs ser luz. Luz como sinal, como testemunho da verdadeira Luz. Assumir a tarefa de não apenas dar luz e calor através da nossa própria chama, mas distribuí-la ao nosso redor.
O contexto do texto de Isaías era desolador, desanimador, escuro. Nessas situações é que a luz adquire maior significado e importância. Como um farol em noite escura, como a luz no fim do túnel. Isaías 62.1 fala também na justiça como um resplendor e na salvação como uma tocha acesa.
A luz e o calor se tornam tanto mais valiosos quanto mais adversa, escura e fria a situação onde nos encontramos. A promessa e a necessidade de alimentarmos a chama da esperança nela se torna mais premente quando a realidade é de carência, de desemprego, de falta de perspectiva. A consequência desse estado de coisas é a falta de auto-estima, é a atitude de desespero. É aí que nós, como parte do povo de Deus, temos a tarefa de gritar, de agir, de não nos aquietar, como o fez o profeta Isaías: Não me calarei, não me aquietarei, até que saia a justiça e a salvação.
Há pouco festejamos o nascimento de Jesus. Assim como uma criança nasce e cresce, também cresce a nossa esperança. Essa criança é a Luz. A concretização da promessa divina para o seu povo.
A comunidade poderia sair cantando o hino final com as velas acesas e as depositaria apagadas num vaso onde seria formada posteriormente, pela OASE, uma grande vela com a união das pequenas velas, como sinal da nossa unidade na esperança e no agir concreto do dia-a-dia como comunidade cristã, como povo de Deus hoje e aqui.
Outra sugestão poderia ser a leitura da poesia de Bertolt Brecht:
O pão do povo
Á justiça é o pão do povo.
Às vezes bastante, às vezes pouca.
Às vezes de gosto bom, às vezes de gosto ruim.
Quando o pão é pouco, há fome.
Quando o pão é ruim, há descontentamento.
Fora com a justiça ruim!
Cozida sem amor, amassada sem saber!
A justiça sem sabor, cuja casca é cinzenta!
A justiça de ontem, que chega tarde demais!
Quando o pão é bom e bastante,
O resto da refeição pode ser perdoado.
Não pode haver logo tudo em abundância.
Alimentado do pão da justiça,
Pode ser feito o trabalho
De que resulta a abundância.
Como é necessário o pão diário,
É necessária a justiça diária.
Sim, mesmo várias vezes ao dia.
De manhã, à noite, no trabalho, no prazer.
No trabalho que é prazer.
Nos tempos duros e nos felizes.
O povo necessita do pão diário,
Da justiça, bastante e saudável.
Sendo o pão da justiça tão importante,
Quem, amigos, deve prepará-lo?
Quem prepara o outro pão?
Assim como o outro pão, Deve o pão da justiça Ser preparado pelo povo.
Bastante, saudável, diário.
(In Poemas, pp. 309s.)
4. Bibliografia
BRECHT, B. Poemas (1913-1956). Brasiliense, São Paulo, 1986 (2a ed).
BURIN, Aguinelo. Pistas exegéticas. Primeira leitura: Is 61.1-2a.10-11, O Senhor
Deus fará germinar a justiça, in REB/36, fase 151, p. 21s.
CROATTO, J.S. Isaías, Vol I: 1-39. O Profeta da justiça e da fidelidade Vozes Imprensa Metodista, Sinodal, São Paulo, 1989. '
HAAG, E. Deus criador e Deus salvador na profecia de Dêutero-Isaías, m GERS-TENBERGER, E. Deus no Antigo Testamento, ASTE, São Paulo, 1981.
VON RAD, Gerhard. Teologia do Antigo Testamento, vol 2, ASTE, São Paulo, 1974.
Proclamar Libertação 19
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia