Prédica: Jeremias 11.18-20
Leituras: Tiago 3.16-4.6 e Marcos 9.30-37
Autor: Emilio Voigt
Data Litúrgica: 18º. Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 25/09/1994
Proclamar Libertação – Volume: XIX
1. O profeta e seu contexto
O texto de Jr 11.18-20 está intimamente ligado a sua pessoa, ministério e vida, razão pela qual iniciamos apontando alguns aspectos da vida do profeta e seu contexto.
Quando Jeremias nasceu, por volta do ano 650 a.C., em Anatote, a Assíria estava no auge do seu poderio. Mas, em 627 a.C., quando Jeremias iniciou a sua atividade profética, que durou 40 anos, o império assírio estava em franca decadência. Finalmente, em 512 a.C., o reino poderoso de Assur sucumbiu diante do império babilônico, que emergiu com rapidez surpreendente.
Nesse período de declínio do poder assírio e ascensão babilônica, Judá conseguiu respirar certa liberdade e prosperidade, conseguindo, inclusive, estender as fronteiras para o norte. Em 622 a.C., iniciou a reforma religiosa e social, encabeçada por Josias. Um ponto básico da reforma era a erradicação da idolatria. Com a destruição dos altares e lugares de culto no interior, o culto centralizou-se em Jerusalém. A lei deuteronômica era considerada lei básica, à qual também o Estado devia se adequar. A reforma também fez ressurgir o sentimento nacionalista, ancorado na teologia da eleição de Sião por Javé.
Ao que parece, Jeremias mostrou simpatia pelas reformas e pelo rei Josias (22.15ss.). Porém manteve a distância necessária para perceber que muito daquela reforma ficava só na aparência. Havia clero e cultos ativos, mas pouca prática da justiça de Javé; conhecimento da lei de Javé, sem ouvir a Javé; aliança sendo violada sob as bênçãos de profetas e sacerdotes. A reforma, baseada na aliança com Deus, deveria transformar as pessoas e o país, trazendo benefícios para o povo. Isso, porém, não aconteceu. Pouco a pouco, foi se transformando num instrumento a serviço de poucos. Jeremias não perdoou e denunciou (6.6ss.; 7.5-11; 8.8ss, etc.). Quanto mais a reforma se afastava do objetivo inicial, mais Jeremias intensificava sua oposição. Exemplo forte dessa oposição são suas palavras contra o templo (cap. 7 e 26). Jeremias relativizou a confiança na eleição de Sião, anunciando a invasão e destruição de Israel. Sua pregação centrou-se no anúncio da calamidade e da desgraça, exigiu arrependimento e o cumprimento da aliança. Em meio à euforia naciona¬lista, as palavras do profeta não repercutiram bem. Mas Jeremias era teimoso. Abraçou sua causa profética com todas as forças, encarando o conflito e assumindo suas consequências. Nosso texto é reflexo desse conflito.
2. As confissões de Jeremias
O texto de Jr 11.18-20 insere-se no contexto das assim chamadas confissões de Jeremias. É apenas uma parte da primeira de uma série de cinco confissões, encravadas entre os capítulos 10 e 20 (11.18-12.6; 15.10-21; 17.14-18; 18.18-23; 20.7-13). Nessas confissões, fala a pessoa do profeta. São palavras de desabafo, que exprimem toda a sua angústia. Mesclam sentimentos de revolta contra o povo e contra Deus, com sentimentos de confiança e compromisso para com a missão que Javé lhe deu. As confissões variam em forma e conteúdo, porém três elementos estão presentes em todas elas. Esses constituem uma espécie de fio vermelho, que perpassa as confissões, consistindo no seu centro:
— Perseguição: Por causa da pregação, Jeremias foi hostilizado. Sua atividade e sua vida foram ameaçadas (11.19; 15.10,15; 17.15,18; 18.18,22s.; 20.10s.).
— Legitimidade: Entre sua pregação e a ação de seus inimigos, Jeremias colocou Javé. Ele devia julgar e legitimar a ação do profeta (11.20; 15.11,15,16ss.; 17.16; 18.20; 20.12).
— Vingança: Jeremias clamou por vingança (11.20; 15.15; 17.18; 18.21-23; 20.12).
A sequência desses três elementos será útil para guiar a compreensão e interpretação do texto hoje. Vejamos como se dispõem esses elementos no texto proposto para o 18° Domingo após Pentecostes:
3. O texto: Jr 11.18-20
A delimitação quanto ao texto anterior é clara. O v. 18 começa de modo brusco, rompendo com os anteriores. O problema aparece nos versículos posteriores. Jr 11.18-20 é curto. Deixa dúvidas no ar. Quem planeja a morte de Jeremias? Qual a razão? Por que Jeremias não percebe isso? Os versículos seguintes dão as respostas, especialmente 11.21 e 12.6. Surge a pergunta: Não seria melhor assumir 11.18-12.6 como perícope para a pregação? Já os comentaristas perguntam pela ordem correta dos versículos, alguns propondo um reordenamento da perícope. Cito, como exem¬plo, a sugestão de W. Rudolph (p. 71): 11.18 +12.6+ 11.19,20a + 12.3 + 11.20b-23.
Aceitando ou não a mudança, é importante considerar 11.21 e 12.6, que tornam claros os motivos, os sujeitos e por que Jeremias não percebe o atentado. Para efeito de pregação, penso que é melhor deixar o texto como se apresenta na Bíblia (Almei¬da). O povo não consegue compreender e aceitar facilmente alterações na ordem dos versículos. Também podemos ficar somente com os w. 18-20, que formam uma unidade e contêm o cerne das confissões, que são os três elementos citados anteriormente.
V. 18: Não tem ligação com os anteriores. Não fica claro como Javé revelou o plano que se armava contra o profeta. 11.21 e 12.6 esclarecem que quem estava arquitetando o plano era gente conhecida, intimamente ligada a Jeremias. Gente da própria família. E Jeremias, que conseguia perceber muita coisa a nível de religião, política nacional e internacional, não percebia que sua vida corria perigo. Javé saiu em defesa do seu profeta e o avisou.
V. 19: O cordeiro é considerado um animal inofensivo, que não sabe o que o espera e segue assim mansamente as pessoas até o matadouro. Essa figura reforça a ignorância de Jeremias a respeito desses planos e caracteriza a traição que sofreu o profeta. A fala dos inimigos, introduzida no versículo, deixa claro que a vida do profeta estava em jogo. Comentaristas discutem a possibilidade de envenenamento da comida. A figura da árvore com seu fruto, ou árvore que está florescendo (outra possibilidade de tradução), sugere que ao redor do profeta já se juntavam adeptos. Era preciso acabar logo com ele, antes que seu círculo profético aumentasse e se firmasse.
V. 20: A causa de Jeremias foi colocada diante de Javé, que prova rins e coração. Conforme já aparece nos Salmos (7.10 e 26.2), essas palavras indicam que a justiça verdadeira é a justiça de Javé, que conhece o mais íntimo das pessoas. Jeremias tinha certeza de que, provados rins e coração, a justiça de Javé se posicionaria em seu favor, contra os inimigos. Ele esperou uma inversão na situação. Por isso, pediu vingança. Ele próprio não a faria, mas esperava que Javé a executasse.
4. Em direção à prédica
Na prédica (ou estudo bíblico), seria bom enfocar os três elementos básicos das confissões de Jeremias. Solto alguns pensamentos a respeito deles:
4.1. Perseguição
A perseguição por parte dos parentes é vista por alguns à luz da reforma. Ela centralizou o culto. Os sacerdotes de Anatote (Jeremias era de família sacerdotal) perderam seu ministério, tendo que se sujeitar ao clero de Jerusalém. Como Jeremias mostrou certa simpatia pela reforma, foi considerado traidor por sua família. Contra essa hipótese bastam as duas pregações sobre o templo (cap. 7 e 26), que mostram que Jeremias era contra o templo. Na verdade, o motivo da perseguição pelos parentes e por tantos outros foi toda a pregação profética (essa é a pista do v. 21). Jeremias não embarcou na crista da onda da reforma. Percebeu suas falhas e denunciou as falcatruas escondidas sob um pano religioso. Teve uma visão mais crítica e objetiva dos acontecimentos nacionais e internacionais, a ponto de relativizar a confiança na eleição de Sião. E justamente aí surgiu o conflito. Jeremias ousou desafiar a onda. Desafiou o rei. Também o templo. Desmascarou-os. Entre ver os erros e calar, assumindo cumplicidade, Jeremias preferiu combatê-los. E fez isso por incumbência de Javé. Fez isso por causa do compromisso com Javé e com o povo. Jeremias tinha um profundo compromisso com Javé. Jeremias tinha também um profundo compromisso com seu povo, mesmo só anunciando destruição. Anuncian¬do a destruição, ele estava, na verdade, querendo evitá-la. Prevenir o povo: essa é a função de suas palavras.
Os tempos são outros, mas ainda hoje podemos presenciar e experimentar perseguição. É nossa incumbência, como Igreja, nos comprometer com o bem do povo, seguir os passos de Jeremias. Vivemos num país considerado cristão. As estatísticas o comprovam. Mas somente as estatísticas, porque, na realidade, há fome, miséria, falta de respeito aos direitos humanos e à natureza, divisão de classes. .. Qual é o compromisso que nós, cristãos, temos com o bem do povo? Mal conseguimos nos comprometer com nossos próprios membros. Amostra disso são a estagnação e o nivelamento étnico de nosso Igreja. Quando se ensaiam passos para fora do gueto eclesial, chovem críticas. Para contorná-las, é preferível retroceder. Não enfrentamos o problema. Não permitimos o conflito — vocação de Jeremias. Silenciosos vamos seguindo em frente, mas a voz arde no peito. Até quando ela ficará presa?
O 18° Domingo após Pentecostes acontece na reta final do primeiro turno na campanha presidencial. Os problemas viram bandeira de campanha. Promessas de reforma não faltam. Lembram a reforma de Josias? Caducou com sua morte. Baseada numa pessoa, não conseguiu se manter. Talvez já estivesse viciada desde o começo. A verdade é que a maioria embarcou sem clara consciência. Jeremias foi voz solitária, tentando abrir os olhos do povo. Não teve êxito, mas não perdeu a esperança. Em meio à sua prisão e à destruição de Judá, comprou um campo em Anatote, sinalizando que havia futuro para o povo da terra.
Vale a pena ser voz solitária? Na época do milagre brasileiro, ouvimos promessas de um país rico, livre e forte. Mas o que se viu foi ditadura, exploração, dívida externa, miséria. E aprendemos a cantar este é um país que vai pra frente e eu te amo meu Brasil. Vozes contestadoras surgiram. Foram perseguidas, torturadas, exiladas, assassinadas. Vozes contra a maré. Vozes como a água que vai se infiltrando na parede até provocar rachaduras e levá-la abaixo. Processo longo, demorado, mas que vale a pena… se a alma não for pequena, como disse o poeta.
4.2. Legitimidade da causa
Jeremias colocou sua causa diante de Deus. Quis comprovar que não era causa própria, mas de Javé. É Javé quem a legitima. Qual é a legitimidade de nossos governantes, instalados no poder para fazer o bem ao povo? Qual é a legitimidade daqueles que criticam os poderosos, mas reproduzem sistemas de dominação nos pequenos círculos onde vivem? Quando Jeremias colocou sua causa diante de Deus, era o mesmo que dizer: Javé, veja se eu vivo de acordo com o que exijo das pessoas. Veja se sou coerente. Coerência é o que falta para muitos governantes, líderes e cristãos. Até nós obreiros/as caímos, muitas vezes, na incoerência. Criticamos a concentração de poder, ao mesmo tempo em que se concentra cm nossas mãos muito poder paroquial. O mesmo se aplica a líderes de comunidades. Conheci um presidente de comunidade muito ativo, inclusive no sindicato e no partido. Mas, em casa, a família não experimentava nada dos seus avanços sociais. Tinha bom discurso para fora, pouca prática para dentro. A legitimidade de qualquer discurso ou movimento está na coerência. Como cristãos, somos chamados a sermos coerentes com nossa fé, fundamentada no Reino de Deus. Coerência que se comprova no compromisso com o fraco, na prática do amor e da justiça, e não somente nas palavras piedosas ou revolucionárias.
4.3. Vingança
É o sentimento mais humano que aflora em nós. Basta olhar as manchetes:
— Pai toma para si a justiça e mata assassino do filho.
— Povo lincha estuprador.
— Marido traído mata mulher.
— Programa do Globo Repórter, aberto à participação popular: quase 80% são favoráveis à pena de morte.
— Esperança de pobre sempre pisado: um dia ainda vou ser grande e então vou mostrar a essa gente.
O sentimento de vingança brota como re-ação a uma ação sofrida. Acontece quando nos sentimos ofendidos ou prejudicados. Se alguém bater na sua face (ação), bata também (re-ação). Mas não é isso que aprendemos do evangelho. O cristianismo propõe eliminar esse sentimento. Não aprova a re-ação. Indica uma atitude para desestabilizar a ação sofrida: Ofereça também a outra face. Mas é uma exigência muito radical, difícil de seguir.
Até parece que Jeremias não conseguiu essa mudança radical. Ainda viveu a tensão entre o ser-humano e o ser-profeta. E aqui aflorou o ser-humano. Jeremias foi desprezado, humilhado, perseguido. Traído por seus amigos íntimos e pela família. Tudo por causa da palavra de Javé. Jeremias era um solitário. As suas confissões mostram o seu desespero. O ser-humano sofreu por causa do ser-profeta. E o ser-humano exigiu vingança. Com isso, Jeremias nos mostra que a função não absorveu completamente a pessoa. Se isso tivesse acontecido, teria deixado de ser tarefa humana. Teria sido delegada aos anjos. A legitimidade de sua função procede de Deus, mas brotou da necessidade do povo. Era dirigida ao povo. Por isso foi feita por alguém do povo, que tem sentimentos do povo. Até para clamar por vingança!
O desejo de vingança é um desejo humano, pessoal do profeta. Poderia legitimar a sede de vingança que aflora hoje diante de tanta injustiça. Mas é necessário ver mais a fundo a questão. Jeremias não fez vingança: clamou por ela. Não tomou a justiça em suas mãos, mas a colocou nas mãos de Javé, porque foi pela causa de Javé que ele sofreu. A tensão foi mantida. Nem a função de profeta engoliu o lado humano, nem o lado humano superou a função. Ambos estavam a serviço de uma causa maior. Como última palavra, convém lembrar que, quando aconteceu a destruição de Jerusalém e a deportação, Jeremias chorou amargamente a sorte do povo. Ele, que em momentos de desabafo chegou a pedir a destruição como vingança, sofreu quando ela aconteceu. Mais um sinal do compromisso que tinha com o povo, compromisso que legitimou sua vida e sua missão.
5. As leituras: Tg 3.16-4.6 e Mc 9.30-37
O evangelho apresenta uma sociedade em que os grandes mandam e os pequenos obedecem. Uma sociedade em que os pequenos (crianças, por exemplo) são desprezados. Jesus, porém, aponta para um quadro diferente, onde o serviço ao próximo é visto como ideal. Naturalmente, esse ideal contrasta com o ideal vigente. Jesus vai contra os valores da época. Vai contra a maré. E o único caminho contra a transformação é nadar contra a maré. Afinal, o único peixe que sempre nada a favor da correnteza é o peixe morto.
Tiago mostra a tensão entre seguir as leis de baixo e as leis de cima. As de baixo são as do mundo e causam guerras, confusão, desigualdade. As de cima procedem de Deus e são a misericórdia, os bons frutos, a justiça e a paz. O ser humano vive a tensão da escolha. Uma exclui a outra. A opção por servir à causa de Deus trará inimizades, mas Tiago também anuncia a recompensa: a justiça de Deus sempre se coloca ao lado dos humildes, contra os soberbos.
6. Bibliografia
BRIGHT. John. História de Israel. 2a edição. São Paulo, Paulinas, l978.
RUDOLPH, Wilhelm. Jeremia. Handbuch zum Alten Testament. Tübingen, J. C. B. Mohr Paul Siebeck, 1947.
WEISER, Artur. Das Buch Jeremia. In: Das Alte Testament Deutsch. Vandenhoeck & Ruprecht, 1966.
WESTERMANN, Claus. Tausend Jahre und ein Tag. Unsere Zeit im Alten Testament. Stuttgart, Kreuz-Verlag, 1957.