Prédica: João 17.(9-10) 11-19
Leituras: Atos 1.15-26 e 1 João 4.13-21
Autor: Werner Fuchs
Data Litúrgica: 7º Domingo da Páscoa
Data da Pregação: 15/05/1994
Proclamar Libertação – Volume: XIX
(•••) Trata-se da práxis filosófica popular, oral e camponesa daquilo que poderia ser denominado, se adjetivo e substantivo tiverem pesos iguais, de cinismo judaico. (… O cinismo) implicava em prática e não apenas teoria, em estilo de vida e não apenas postura mental oposta ao coração cultural da civilização mediterrânea, num modo de apresentar-se, vestir-se, comer, viver e relacionar-se que anunciava inconformidade com a honra e a vergonha, a patronagem e o clientelismo. Eles eram hippies num mundo de yuppies imperiais. Jesus e seus seguidores (…) cabem muito bem nesse quadro. Os cínicos greco-romanos, porém, concentravam-se bem mais na praça que na roça, mais no morador citadino que no camponês. E mostravam pouco senso de disciplina coletiva, por um lado, ou de ação comunitária, por outro. Neste quadro Jesus e seus seguidores não cabem bem. (…)
O Jesus histórico foi, pois, um cínico judaico camponês. Sua aldeia rural estava bastante próxima de uma cidade greco-romana como Séforis, pelo que sua visão e seu conhecimento do cinismo não são nem inexplicáveis nem improváveis. Mas sua atuação deu-se entre os sítios e as aldeias da Baixa Galileia. Sua estratégia (…) foi a combinação de cura gratuita e refeição conjunta, um igualitarismo religioso e econômico que contradizia de maneira igual e simultânea as normalidades hierárquicas e patronais da religião judaica e do poder romano. (…) Seguia sempre adiante, não se estabelecendo nem em Nazaré nem em Cafarnaum. Ele não era nem agenciador nem mediador mas, de modo um pouco paradoxo, o anunciador de que não deve existir ninguém entre a humanidade e a divindade, e entre a humanidade e ela própria. Milagre e parábola, cura e refeição eram calculadas com o intuito de forçar os indivíduos ao contato físico e espiritual não mediado com Deus e ao contato físico e espiritual não mediado de uns com os outros. Em outras palavras, ele anunciou o reino de Deus sem intermediários. (Crossan, p. 421 s)
1. Destaques do texto
A oração de despedida de Jesus (ou desde o séc. IV chamada também de oração sacerdotal) conclui o bloco maior dos cap. 13 a 17 (o livro da comunidade, cf. Rubeaux, pp. 27-35, que também traça um paralelo com a oração do Pai Nosso nos sinóticos), seguindo logo após o sermão de despedida no final do cap. 16. Para analisar o trecho proposto, pode-se partir de uma esquematização temática, como a que segue:
9 — Jesus intercede pelos que o Pai lhe deu,
— não pelo mundo (cf. v. 21c).
— Eles são do Pai,
10 – tudo é dele.
— Neles está a glória de Jesus (cf. v. lb,5,22: hora da cruz).
11 — Discípulos continuam no mundo, guarda-os!
— Que sejam unidos (cf. v. 21 e 23).
12 — Somente um se perdeu.
13 — Que tenham satisfação plena.
14 — A palavra traz ódio e perseguição do mundo (cf. 16.32s).
— Discípulos não são do mundo.
15 — Não os tires do mundo, guarda-os do mal.
16 — Como Jesus, não são do mundo.
17 — Santifica-os na verdade (palavra).
18 — Enviei-os ao mundo (participam da missão de Jesus).
19 — Jesus se santifica (na cruz), para que eles também sejam santificados.
Constata-se que certos temas reaparecem e se interligam: pedidos de proteção, satisfação e santidade, o conflito no mundo, a participação na missão (v. 11 e 18), etc. Alternam-se preces ao Pai, afirmações consoladoras e explicações de caráter pedagógico. A linha de raciocínio lógico não descreve um movimento linear, mas cíclico ou circular. Há círculos maiores que contornam e cruzam o traçado dos menores.
O esquema acima facilita a decisão sobre a delimitação do trecho. A inclusão dos vv. 9s depende do objetivo e do planejamento do pregador em relação à conjun¬tura e às necessidades que constata ou presume na comunidade. Uma razão para manter os vv. 9s é que eles informam sobre o contexto dos vv. 11-19: É boa nova para a comunidade que Jesus está orando (bem como agindo e sofrendo) pelos seus. Dentro de um planejamento temático é bom considerar a possibilidade de continuação, no domingo seguinte, com a mensagem sobre os vv. 20-26 (unidade entre os cristãos e os que vierem a crer, igreja peregrina que estará com Cristo plenamente, etc.). Foi este o caso da prédica, cuja síntese é apresentada abaixo. O aspecto da unidade (v. 11b) foi deixado para o domingo seguinte, e a mensagem teve como alvo provocar reflexão e trazer esclarecimento sobre o conceito de mundo e a atuação cristã dentro dele. Aliás, o agir no mundo sem ser do mundo (cf. I Jo 4.13ss) constitui, por excelência, um tema de Pentecostes, assim como a unidade dos cristãos é, no movimento ecuménico, objeto da semana de oração que inicia no 7° Domingo da Páscoa e culmina no próprio Dia de Pentecostes.
A relação dos fiéis com o mundo deve ser vista em conexão com os cap. 15 e 16. A hostilidade do mundo (15.19) é consequência da palavra de Jesus (17.14a) e da comunicação que ele estabelece entre os fiéis e Deus (15.7s, cf. Veloso, p. 304s). O ódio concretiza-se em fatos como a expulsão das sinagogas (16.2). As obras e a palavra de Jesus provocam a reação do mundo porque testemunham que as obras do mundo são más (7.7), porque põem diretamente em questão o mundo como organização inteira da sociedade, exigem que o mundo deva transformar-se num inundo de bondade e de solidariedade, numa transformação completa que é o esmagamento de todo o precedente (Miranda, p. 100). O Consolador, enviado aos discípulos, convence o mundo do pecado, da justiça e do julgamento (krisis, 16.8), sendo assim o poder que dá eficácia à atuação deles (cf. 17.10). Quanto ao uso livre e positivo de estruturas e recursos do mundo, remeto à reflexão de Kliewer, p. 36. Não é possível eliminar a fértil tensão entre a proposta de uma contra-sociedade ou anti-cultura, por um lado, e a utilização dos recursos do mundo das pessoas para gerar muitos frutos nele, por outro (15.8).
É interessante acompanhar a argumentação de Jervell (p. 31ss) sobre o duplo sentido de krísis (juízo), uma vez como condenação, outra vez como julgamento. Ele parte de uma aparente contradição, em que Jesus afirma que não veio para julgar o mundo (Jo 3.17; 8.15; 12.47), mas para salvar, para dar vida em Deus. Por outro lado, Jo 3.19; 5.22,27; 8.16; 9.39; 12.48 indicam claramente que parte da sua atividade é precisamente ser juiz. O termo grego tanto pode significar separação. segregação como sentença, condenação em sentido negativo. Portanto, João é polêmico ao sugerir que Jesus não veio trazer condenação, vingança de Deus. O evangelho certamente adere à inevitabilidade do julgamento sobre a humanidade em relação a Cristo, mas isso não traz consigo o carimbo da condenação. É bem antes julgamento no sentido de ser dividido ou separado (p. 32), como a luz cria divisão em relação às trevas. A própria pessoa pronuncia julgamento sobre si, ao separai se da verdade e do amor de Deus (3.19). Jesus vence o mundo, porque este precisa recorrer à falsidade para crucificá-lo. Portanto, a crise do mundo é permanente desde que a palavra se fez carne: Devemos admitir que Jesus criou uma situação intolerável: sua ação e suas palavras representavam uma agressão constante contra o 'mundo', exigindo uma decisão coletiva inadiável (Miranda, p. 100).
Os discípulos são enviados com a palavra de Deus (Jo 17.14,18). A oração de Jesus antevê que outros virão a crer por meio desta palavra (v. 20). O lógos é palavra criadora, mas João destaca o seu caráter de alteridade, de interpelação, conforme a excelente demonstração de Miranda:
A redução a conceito é a grande arma de que dispõem os homens para suprimir a alteridade de quem fala e para encerrar-se na solidão com uma série de categorias que não são 'outra coisa', mas envoltório da identidade, parte do mesmo eu. A única vez que, em João, perguntam a Jesus: 'Quem és tu?', Jesus responde: 'Sou aquele que estou falando', ou seja, a palavra como palavra. (Jo 8.25).
Jesus recusa um predicado, um atributo ('Deus' seria um predicado como outro qualquer), uma categoria com cujas combinações e permutações o eu se encerraria em si mesmo para subtrair-se à interpretação do 'outro', à alteridade de alguém que não sou eu, alteridade que se mantém viva apenas na palavra como tal. Jesus Cristo é o fato que me está sendo falado, é a palavra. (… Jo 8.43:) O que os judeus não podem suportar é o fato de a palavra os interpelar; por isto não entendem o idioma. Não conhecem a linguagem (p. 106s).
Em relação ao nosso trecho, Miranda diz: A palavra passa de portador a portador: o importante é que o mundo continue a ser apostrofado pela palavra (p. 113). Mas deve-se destacar também que a alteridade da palavra pode se manter viva e insubsumível somente em virtude de seu conteúdo (p. 115), o qual está relacionado com a justiça e o amor ao próximo (cf. I Jo 3.13s; Jo 10.32; 13.35). Os que nasceram de Deus (Jo 1.13) são os que praticam a justiça (I Jo 2.29; 3.10 etc.).
A tese é deveras explosiva: somente aqueles que amam o próximo, somente aqueles que têm fome e sede de justiça foram capazes de entender 'a palavra'. (…) Pois bem, vimos que o mais 'espiritual' entre os autores do Novo Testamento faz depender a incredulidade do mundo com relação a Jesus Cristo do fato de que o mundo não sabe dar de comer aos famintos nem de beber aos sedentos, etc. (Miranda, p. 87 e 91).
2. Uma experiência de pregação
Na comunidade em que se realizou a prédica, apesar de cultos participativos a maioria das pessoas tem pouco conhecimento bíblico, e constata-se uma dificuldade de articular a fé com a realidade sócio-política, p. ex., sua insegurança diante do afastamento de Collor. Algumas reações após a prédica indicaram que as pessoas gostaram do estilo de aula (dada por professor de teologia), com perguntas retóricas, ou seja, provocando a reflexão.
Oração: Jesus, estás presente quando nos reunimos em teu nome. A decisão de reunir-nos e seguir-te é nossa, mas a promessa e a verdade são tuas.
Leitura do texto Jo 17.9-19, uma parte da oração sacerdotal de Jesus.
2.1. Muitos de nós sabem por experiência própria como é bom, é um consolo, que numa hora difícil alguém ora por nós, pede a Deus por nós. Jesus aqui está orando pelos seus amigos que crêem nele como enviado de Deus (v. 8). Pois sabemos que ternos problemas, sofrimentos, aflições, ameaças, tentações. Quanto mais abri¬mos os olhos, quanto melhor conhecemos a realidade, ou uma pessoa, nós nos assustamos. Mesmo pessoas boas, que deveriam ser exemplo, nos decepcionam. Ficamos desiludidos com as instituições, a igreja, o governo.
Jesus faz esta oração por nós numa hora difícil para ele! Exatamente antes de ir para o sofrimento na cruz. Quando seus amigos o abandonarão, o decepcionarão. Mas Deus está com ele. Jesus vai para junto de Deus. No meio e por meio do conflito e do sofrimento acontece a glorificação de Jesus e alegria plena dos discípu¬los (v. 10b,13).
Para que a oração? Para que os amigos de Jesus sejam protegidos e unidos (v. 11). E para enviá-los ao mundo (v. 18) com a palavra (v. 14) e o amor de Deus (v.26).
2.2. A palavra central de nosso trecho é mundo. Qual é a nossa compreensão de mundo, e como o evangelista João a entende? Parece um problema bastante difícil. Jesus diz que não ora pelo mundo (v. 9), que o mundo odeia e rejeita os discípulos (v. 14). Mas podemos lembrar outros textos de João que falam que Deus amou o mundo de tal maneira que deu seu único Filho… (3.16), ou de Jesus como cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo (1.29). Um pouco antes desta oração Jesus diz: No mundo passais por aflições, mas tende bom ânimo, eu venci o mundo (16.33). No final do nosso capítulo ele declara o seu maior objetivo: que o mundo creia (17.21). E no centro do nosso trecho ele pede que Deus não tire os discípulos do mundo, mas que os guarde do mal (v. 15). Portanto, quanto mais pesquisamos, mais confusos ficamos. E misturamos nossas próprias experiências e ideias. Afinal, o mundo é belo ou é mau? Ele é o terreno do maligno, que luta contra Deus, ou é o lugar em que se mostra o amor de Deus e no qual temos uma missão?
Primeiramente penso que devemos fazer uma distinção. Parece claro que a palavra mundo não está se referindo ao mundo das coisas, à criação, à natureza, ao cosmos. Portanto, o mal de que devemos ser guardados não é, neste nosso texto, a seca ou a enchente ou a doença. Podemos até aceitar como válida a preocupação com a saúde e o tempo bom. Mas Jesus está se referindo ao mundo dos seres humanos, à humanidade. Se imaginarmos atrás da palavra mundo o mundo das pessoas, as relações humanas, a organização social e cultural, o sistema político e econômico, então todos esses versículos fazem sentido. Aí os males de que devemos ser protegidos serão a descrença, a mentira, a desunião, a injustiça, a falta de amor, a criança que dá um chute na canela da mãe porque não ganhou sorvete, o filho que assalta a carteira do pai, o marido que corre tanto atrás do trabalho que não tem mais tempo para a família, etc. São as obras do maligno (cf. 16.11) neste mundo dos homens, neste mesmo mundo em que até é possível a satisfação completa de Jesus em nós (v. 13), porque ele tira os pecados do mundo. É o mundo do consumo, do medo, das tradições religiosas, da comunicação, diante do qual sempre de novo precisamos decidir que uso faremos dele. Este mundo, desde que Jesus esteve presente nele, entrou em crise, porque precisa se decidir diante de Jesus, diante de sua oferta, a palavra e o amor de Deus. É uma crise permanente, diferente das fases difíceis pelas quais passa uma família ou um país. A crise do mundo é uma espécie de julgamento. Não é uma condenação. Condenar o mundo seria dizer que ele é igual ao demônio. Aí Jesus teria dito: Tira-os do mundo, isola-os do mundo! Não, a crise existe porque o mundo resiste à transformação total que Jesus, já vitorioso, trouxe para este mundo dos homens.
Em segundo lugar, podemos agora entender melhor esta fórmula sobre a relação dos cristãos com o mundo: Estão no mundo, mas não são do mundo. Não ser do mundo, não ter sua existência orientada pelos critérios das pessoas, é uma marca de liberdade. O cristão é diferente, é desmundanizado. Ele se deixa guiar pela palavra de Deus. Isso lhe dá uma marca de alegria que não depende do mundo. Mas ao mesmo tempo este cristão tem uma relação positiva com o mundo. Sua missão é dirigida ao mundo, como Jesus foi enviado com o amor de Deus (v. 18). E para desempenhá-la ele precisa ser santificado pela verdade, a palavra de Deus (v. 17), que é palavra libertadora (8.32). Isso inclui que o cristão faça uso daquilo que o mundo oferece, para desempenhar sua missão. Isso inclui também que ele não julgue todas as pessoas de forma igual, mas sim descubra quem são os culpados e quem são as vítimas no sistema dos homens. A nossa missão é de santidade no meio do mundo. Ela acontece no conflito, e para agir nele é preciso a busca e decisão constante pela proposta de Jesus.
2.3. A santidade praticada no dia-a-dia é possibilitada por Jesus. Ele se santi¬ficou ao se sacrificar por nós na cruz (v. 19). Amém.
3 — Bibliografia
CROSSAN, J. D. The historical Jesus – The Life of a Mediterranean Jewish Peasant. N. York, 1991.
JERVELL, J. Jesus in the Gospel of John. Mineapolis, 1984 (original norueguês, Oslo, 1978).
KLIEWER, G. U. Meditação sobre Jo 17.9-19. In: Proclamar Libertação. S. Leopoldo, 1979, vol. IV, p. 33-7.
MIRANDA, J. P. O Ser e o Messias. São Paulo, 1982.
RUBEAUX, F. Mostra-nos o Pai – Uma leitura do quarto Evangelho. CEBI, B. Horizonte, 1989.
VELOSO, M. Comentário do Evangelho de João. Santo André-SP, 1984.