Prédica: João 6.41-51
Leituras: 1 Reis 19.1-8 (9-13ª) e Efésios 4.30-5.2
Autor: Guilherme Lieven
Data Litúrgica: 12º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 14/08/1994
Proclamar Libertação – Volume: XIX
1. O pão que veio do céu
Todo o capítulo 6 de João traz o pão como figura, como metáfora, para o testemunho e revelação de Jesus. Ele é o capítulo que encerra a narração das atividades de Jesus na Galiléia. Esse final é polêmico. Jesus surpreende todos, também os discípulos, ao se revelar como o pão vivo que veio do céu.
Jo 6.41-51 é o terceiro texto do mesmo capítulo indicado para pregação numa sequência de cinco. Cada uma das cinco perícopes tem um enfoque especial. Nosso texto articula a superação do murmúrio. E preciso crer para assimilar a revelação do Enviado do Pai, para aceitar Jesus, o filho de José e Maria, como pão da vida, que alimenta a vida toda e concede a eternidade.
Em nossos dias, ninguém discute se Jesus é ou não filho de Deus. O fato de ser filho de José e Maria até tem uma conotação romântica. No presépio de Natal, tudo é tão bonitinho. O texto de Jo 6.41-51, mediado pela nossa realidade, promove reflexões cristológicas com outros enfoques e ângulos. Devemos perguntar sobre o que significa crer que Jesus é o pão da vida, que veio do céu. Em outras palavras, quais as implicações da vivência de fé em Jesus Cristo, qual a proposta de Jesus. Devemos decodificar essa figura: pão da vida. Desvendar essas questões teológicas é fundamental para o trabalho pastoral na metrópole. Nela co-existem muitas propostas religiosas e de vivência de fé; o sagrado tem vários rostos; são muitas as propostas para o exercício da cidadania sob a luz da fé; as ideias sobre a função da Igreja são igualmente múltiplas. Creio que a obra salvífica de Deus, revelada em Jesus Cristo, propõe mudanças para essa realidade difícil e sofrida.
Neste 12° Domingo após Pentecostes somos chamados pelo texto de João a anunciar o evangelho com esses enfoques.
2. O texto
Vv. 41 e 42: Os opositores de Jesus no quarto Evangelho são os judeus (1.19; 3.25; 5.16). Murmuravam… A revelação Eu sou o pão descido do céu era polêmica. Aceitar que Jesus era um mestre, um profeta, tudo bem. Mas engolir em seco que ele veio do céu como enviado do Pai, sendo aquele homem simples, conhecido de Iodos, filho do carpinteiro José, é um escândalo. Jesus encontra resistência. Isso era muito para os ouvintes de Jesus. Acreditar em Jesus como parte da obra salvífica de Deus (6.28-29) significa redimensionar todo o entendimento sobre Deus e também a prática até então seguida — a proposta de Jesus é contundente.
Esta é a marca central da cristologia do quarto Evangelho: Jesus é o Enviado do Pai, Ele já se encontrava com o Pai desde a eternidade (1.1; 17.5), Ele traz a vida, desceu do céu como alimento, pão.
Vv. 43-46: Jesus entende os murmúrios. Para aceitar a sua revelação, é necessária a ação daquele que o enviou. Os profetas já anunciaram que Deus ensina. Para tanto, é preciso ouvir e aprender. Atender ao ensinamento do Pai resolve o escândalo. Aprender de Deus é o mesmo que deixar-se atrair por ele, o mesmo que aceitar Jesus como o alimento que veio do céu.
Conforme o v. 59, Jesus estava falando numa sinagoga. A sinagoga era o espaço onde acontecia o ensinamento, onde Deus ensinava e atraía. Em outros pontos do Evangelho de João, encontramos registro da separação dos seguidores de Jesus da sinagoga (9.22; 12.42). Os judeus resistem a Jesus porque não se deixam ensinar, não ouvem. A revelação é única (v. 46), e eles não querem aprender e acreditar.
Creio que por minha própria razão ou força não posso crer em Jesus Cristo, meu Senhor, nem vir a ele (Martim Lutero, p. 11).
V. 47: Aquele que crê participa da ressurreição (v. 44) e tem a vida eterna.
A cristologia proposta por João pressupõe a fé. A fé surge como um elemento novo, que supera a prática da lei (fariseus). Para participar da obra de Deus e se alimentar do pão que veio do céu, é preciso crer — crer que o filho de José e Maria procede do Pai, o Verbo que se tornou carne e habitou entre nós.
A fé procede de Deus. É preciso deixar Deus ensinar para encontrar a fé e aceitar a escandalosa revelação de Jesus. A fé em Jesus passa a ser uma nova categoria na experiência religiosa do povo de Deus.
Vv. 48-51: Jesus é o pão da vida. Aquele que dele comer não morre. Viverá eternamente. O pão é a própria carne de Jesus, dada para o mundo (o ato da cruz).
Acreditar em Jesus como enviado do Pai, nos versículos 50 e 51, tem uma nova dimensão, a de comer. Agora quem come o pão tem a vida eterna. Nova argumentação que revela Jesus como procedente do Pai, do alto, do céu. O pão representado por Jesus supera a ação de Deus no deserto com o maná. Jesus alimenta para a eternidade.
Até então o caminho da salvação passava pelo cumprimento da lei. Agora, a salvação vem de Deus em forma de alimento — pão.
3. Jesus, revelação de Deus
Crer que Jesus é enviado do Pai torna a revelação de Deus um fato histórico, empírico. Jesus evidencia o projeto salvífico de Deus — Deus que ama, que se entrega para a sua criação e criaturas, sem se apropriar delas. O Deus que desce do alto, vem para a realidade caída e se apresenta como alimento (pão), alimento para uma vida completa. Em Jesus, Deus propõe a vida, revela seu amor, anuncia o caminho e a verdade de forma real, histórica e comprometida com a realidade.
Este é o limite em nosso texto. Os critérios religiosos de então, também os critérios da razão, não aceitam esta revelação de Deus. Ela é contundente, causa resistência.
A revelação em nossos dias
Também em nossos dias essa revelação de Deus causa murmúrios. Os critérios gerais da religiosidade, comuns entre os cristãos, resistem a uma revelação de Deus através de um projeto histórico, empírico. Assumem o ato salvífico da cruz e da ressurreição quando separados dos sinais da revelação de Deus, que iniciam com o ministério público do Jesus histórico. Trata-se de uma fé casuística e egoísta, que resolve necessidades pessoais e desintegra a proposta comunitária de vivenciar o projeto de Deus para a vida no mundo. Princípios éticos, engajamento diaconal, busca por mudanças, exercício da cidadania e participação da realidade como força social sob a orientação da proposta de vida revelada por Deus não fazem parte dos critérios dessa religiosidade comum.
No contexto urbano, as propostas religiosas são muitas. Elas absorvem as variadas necessidades religiosas. Estão expostas numa grande vitrine, para estimular o consumo. Nessa realidade marcada por violência, fome, insegurança, solidão, dor, desemprego, morte, o sagrado é revelado e propagado como um bem primário de consumo.
O anúncio da verdadeira revelação de Deus em Jesus Cristo se apresenta como um desafio, principalmente no contexto metropolitano. Poucos buscam vivenciar comunitariamente a revelação de Deus como alimento para a vida no mundo. Resistem ao compromisso de amor (Ef 5.1-2) com a realidade de vida; resistem ao ato salvífico de Deus, que transforma todos em sujeitos que anunciam e vivenciam a prática do amor em seu meio. A tendência de cada um é resolver o seu problema. A mediação comunitária para isso é complicada e desgastante. Na cidade, é comum você não contar com ninguém; e também não ajudar ninguém.
Em Jo 6.41-51, Jesus propõe algo novo. Propõe a superação dos murmúrios, da falsa cristologia, da resistência à vida. Para crer e assumir a verdadeira revelação de Deus em Jesus, é preciso deixar-se atrair por aquele que o enviou; é preciso escutar os ensinamentos do Pai e dele aprender. O Pai dá o alimento para a vida.
4. Deus ensina, atrai
A aceitação da revelação de Deus passa por um processo. Nesse, a ação de Deus é fundamental. Não se trata de uma sabedoria adquirida pela razão. Creio que o surgimento das comunidades cristãs atende a essa necessidade. Para crer e viver no mundo, sob a orientação do projeto de vida de Deus, é preciso deixar-se atrair por Deus. Deus ensina, fala, exorta, caminha ao lado, participa da vida das pessoas que buscam a verdade e a vida (Jo 8.31-32). Esse é o principal enfoque do nosso texto. Convida todos os que resistem ao projeto de vida, revelado em Jesus Cristo, a participarem de uma vivência comunitária onde Deus atua, ensina e atrai. Esses encontrarão a fé, perceberão o projeto salvífico de Deus, em que todos participam ativamente, onde Jesus é Senhor e Salvador.
O Ministério Eclesiástico está a serviço desse processo de busca por Deus e pela fé. Esse se dá num ambiente comunitário em que atua o Espírito Santo, onde e quando agrada a Deus (A Confissão de Augsburgo, p. 19). Todos simultaneamente participam desse processo à medida que se dispõem a deixar Deus ensinar, atuar.
Proposta pastoral:
A proposta pastoral no contexto urbano passa por esse critério: criar espaço comunitário, visível (celebrações, encontros, confraternizações, estudos, etc.), onde Deus possa atuar. Reunir pessoas com seus variados dons para assimilarem a verdadeira revelação de Deus em Jesus Cristo; facilitando o engajamento no projeto de vida de Deus; instrumentalizando o serviço de todos para a proposta de participar de sinais do Reino de Deus em nosso meio. Dessa forma, lançar a discussão sobre o papel da comunidade cristã, seu rosto, seu engajamento como anunciadora do Deus, que veio ao mundo na forma de alimento para uma vida sem fim.
5. Celebrar — deixar Deus atuar, ensinar
1. Saudação: Durante a saudação, mencionar as situações em que, pela fé, é possível detectar a presença salvífica de Deus. Enumerar os sinais da revelação de Deus no contexto comunitário e fora dele.
2. Adoração: Escolher um salmo que corresponda aos sinais mencionados e situar a adoração na perspectiva da atuação poderosa de Deus em nosso meio.
3. Confissão de pecados: Direcionar a confissão para a situação onde estão presentes os murmúrios, a resistência diante da revelação de Deus, murmúrios diante das propostas de vida em andamento na comunidade. Convidar os presentes para escreverem em papéis, antes distribuídos, palavras-chaves da sua confissão. Recolhei e partilhar as confissões.
4. Anúncio da graça: Tornar o anúncio da graça de Deus mais palpável. Anunciar o amor de Deus, convidando a comunidade para repartir o pão (também já preparado). Apresentar o pão como alimento usado pelos antigos para comemorar uma aliança, uma amizade (Gn 31.54). Repartir o pão entre os presentes para comemorar a amizade de Deus, o perdão de Deus, a sua ação salvífica revelada em Jesus Cristo — o lanche da graça.
5. A prédica: Nesta altura da celebração, a metade da prédica já aconteceu. Resta agora fazer algumas amarrações. Por exemplo:
— A revelação de Deus por meio de Jesus Cristo é histórica, empírica. Traz consigo um projeto de vida, uma proposta possível e acessível a todos, onde a liberdade e a participação ativa são instrumentos inerentes no projeto. A revelação é alimento para a vida. Os sinais dessa revelação estão presentes, e todos são convida dos a participar deles.
— Para tanto, é preciso crer. Para crer e superar a resistência diante da revelação de Deus, as pessoas precisam deixar-se atrair por Deus, ouvir e aprender de Deus.
— Essa amarração encaminha uma discussão sobre a proposta pastoral existente no contexto comunitário. Torna fundamental a reunião das pessoas paria celebrar e estudar a Palavra de Deus. Logo, Deus prepara as pessoas para aceitarem a sua revelação e participarem do seu projeto de vida, dos sinais do Reino. A celebração e o estudo se apresentam como uma etapa, como um espaço, para Deus atuar e fazer discípulos; preparar pessoas para a busca pela vida que não tem fim. Isso significa: ela não tem um fim em si mesmo, não é um espaço para o casuísmo da fé facilitadora do consumo de benesses de Deus. Mas, sim, parte fundamental do processo onde acontece a revelação de Deus e sua aceitação.
Creio ser essa uma questão pastoral desafiadora na comunidade cristã. Confio no poder de Deus de nos ensinar e atrair, fazendo de nós instrumentos do seu projeto de vida para o mundo.
6. Bibliografia
– STRATHMANN, H. Das Evangelium nach Johannes. Göttingen, 1963.
– GOPPELT, L. Teologia do Novo Testamento. Sinodal/Vozes, São Leopoldo/Petrópolis.
– LUTERO, Martim. Catecismo Menor, Sinodal, São Leopoldo, 1991.