Prédica: Jonas 3.1-5 (6-9) 10
Leituras: 1 Coríntios 7.29-31 e Marcos 1-14-20
Autor: Harald Malschitzky
Data Litúrgica: 3º Domingo após Epifania
Data da Pregação: 23/01/1994
Proclamar Libertação – Volume: XIX
Tema: Epifania
1. Observações introdutórias(1)
O livro do profeta Jonas é diferente dos demais livros proféticos, porque ele conta a história de um profeta e não contém palavras ou ditos do profeta. Em sua categoria, ele é único no Antigo Testamento, também porque não trata de uma pessoa histórica como os demais livros. Jonas, filho de Amitai, viveu longe no passado (2 Rs 14.22), e o livro provavelmente deve ser datado no período pós-exílico, alguns séculos mais tarde. Também Nínive, quando o livro foi escrito, já não existia; era, porém, conhecida como lugar onde o pecado campeava solto.
O livro de Jonas, assim como o temos, é uma estória. Poder-se-ia dizer também que é uma espécie de prédica dirigida ao povo de Israel, ao povo de Deus. O salmo no capítulo 2 poderia muito bem estar no livro dos Salmos por seu conteúdo e por sua estrutura. É provável que ele tenha sido inserido mais tarde, para mostrar como Deus continua agindo também quando o ser humano escolheu fugir ao mandado e à responsabilidade. Lendo o livro sem essa parte, não se perde o sentido do todo. Ao mesmo tempo, o salmo também não atrapalha nesse todo, mas aprofunda a descrição do desespero do profeta e da salvação de Deus.
O conteúdo do livro de Jonas é muito simples e muito bonito: um profeta tenta escapar do chamamento, fazendo de conta que vai, mas compra uma passagem para ir em direção contrária. Depois de ter sido jogado ao mar porque seria o culpado por uma terrível tormenta, é engolido por um peixe e vomitado por esse no seu ponto de partida, onde recebe novamente a ordem de ir a Nínive.
Dessa vez, ele vai e prega contra todos os desmandos que estavam acontecendo em Nínive. Acontece uma grande conversão, que vai do menor ao maior e que inclui até os animais. Deus não castiga o povo arrependido, e o profeta fica furioso, pois ele até tinha se colocado num lugar a partir do qual era possível observar o que iria acontecer. Sua fúria é tão grande, que ele deseja morrer (quando de sua fuga, ele sugeriu que os marinheiros o atirassem ao mar). O porquê da fúria do profeta: Eu sabia que és Deus clemente e misericordioso, tardio em irar-se e grande em benigni¬dade e que te arrependes do mal. Porque Deus é clemente, ele fugiu na primeira vez e agora simplesmente quer morrer.
O livro de Jonas é um recado para Israel, que se fechava em si mesmo e esquecia a universalidade de seu Deus. Alguns autores falam que isso ocorreu espe¬cialmente na época de Esdras e Neemias; já outros defendem a tese de que o livro não foi escrito só em função desse fenômeno particularista tardio. Verdade é que, ao que tudo indica e se sabe, o povo de Deus poderia ficar fechado em si mesmo,louvando seu Deus, sem ter que ter contato com os outros, sobretudo negando que também outros povos seriam capazes de ouvir Deus e de obedecê-lo. Através da história do profeta Jonas o autor (quem sabe poderia ser uma autora?) mostra que isso equivale a negar o próprio Deus. Privatizar Deus é o mesmo que transformá-lo em um ídolo incapaz de ir para além dos tênues limites estabelecidos por seres humanos em suas lutas por espaço e por vida. Se é que Deus é Deus, ele vai para adiante desses limites. Isso fica claro em dois momentos no livro de Jonas: No início, são os marinheiros que adoram o Deus que Jonas queria esconder (1.16) e, num paralelismo singular, depois são os ninivitas (3.1-10), que se convertem quando justamente o profeta apostava todas as suas fichas em que esses seriam destruídos como ele anunciara, pois — assim pensava — não haveria conversão e muito menos perdão.
2. O texto
O texto do capítulo 3 não oferece maiores dificuldades. Os versículos 6 a 9 retratam a reação do rei, as ordens que ele dá e a esperança de que Deus talvez se arrependa. Parece-me que eles são importantes para o todo do texto, embora a narrativa esteja completa sem eles.
Nínive é uma metrópole, tanto que o profeta precisa de três dias para percorrê-la (cf. 1.2). Aliás, uma das poucas vezes na Bíblia em que se menciona uma metró¬pole. Ela, porém, não era conhecida apenas por seu caráter metropolitano, mas também por sua maldade no mais amplo sentido (cf. as passagens no livro de Naum). Aliás, o próprio rei reconhece em sua fala que as coisas não vão bem em sua cidade (v. 8b).
Jonas é mandado para anunciar o juízo de Deus justamente numa cidade que tem fama por sua crueldade. Pode-se imaginar que o profeta tenha até medo para enfrentar esse mundo… A cidade tem seu fascínio e tem seus riscos. Jonas (Israel) tinha em sua teologia apenas uma esperança (e seguramente também um desejo) para aquela metrópole cruel moral e socialmente: a sua destruição radical. Mesmo assim, esse profeta (Israel) tenta cair fora da tarefa que lhe é dada pelo Senhor. Eu suspeito que o nosso profeta sabia bem demais que a palavra de Javé não fica sem efeito e que dizê-la é iniciar um processo. Se esse processo levasse invariavelmente à destrui¬ção de Nínive, até que tudo estaria bem, mas o profeta sabia mais uma coisa: em última análise, Deus é o Deus da vida e, por isso mesmo, ele esgotaria todas as possibilidades antes de destruir (cf. 4.2).
Jonas, depois de cumprida a tarefa que o Senhor lhe impusera, fez uma enramada e repousou debaixo dela, à sombra, até ver o que aconteceria à cidade (4.5). Cabe aqui uma observação sobre a forma em que hoje temos o texto: estudio¬sos afirmam que o v. 5 do cap. 4 teve, em sua origem, o seu lugar no capítulo 3. Algum copista poderia ter esquecido o versículo quando copiou o texto, posterior¬mente o anotou à margem, e já outra pessoa voltou a inserir o versículo, só que em outro lugar. Ora, se a enramada fica onde está no texto, a planta que Deus fez nascer já não tem nenhum sentido, ao passo que no capítulo 3 a observação tem muito sentido: Jonas, após ter anunciado o juízo de Deus, senta-se num lugar seguro, à sombra, para ver o que aconteceu, torcendo provavelmente para que o circo pegasse fogo (cf. Wolff, op. cit.).
A pregação do profeta põe em movimento não apenas algumas pessoas eventualmente piedosas, mas todo o povo. É o próprio rei que ordena um jejum, cujo sinal exterior é o traje com pano de saco (um pano grosseiro até os nossos dias) e o assentar-se sobre cinzas ou espalhá-las sobre a cabeça. O jejum (…) era o grito de confiança lançado a Deus, para lhe dizer que tudo se esperava dele humildemente”(2). O jejum, o traje e o uso da cinza eram a expressão de um arrependimento muito sério (cf. l Rs 21.27; l Sm 7.6), embora essa prática tenha sido criticada mais de uniu vez pelos profetas (cf. Is 58.1-16), porque também servia para ocultar tremendo cinismo. Esse, porém, não era o caso em Nínive, conclusão que se pode tirar tia reação de Deus. Aliás, o jejum é radical, a ponto de também os animais serem envolvidos. A boa relação do ser humano com o mundo animal faz parte já da criação (Gn 1). O descanso sabático vale não apenas para os seres humanos, mas também para os animais (cf Ex 20.10), quase como parte da grande família. Vai daí que também o castigo de Javé pode incluir os animais (cf. Ez 29 p. ex.). Li o primogênito que Deus reserva para si também inclui os animais (cf. Nm 3.13). A partir desses exemplos, que podem ser multiplicados, é possível entender a radicalidade da penitência para qual o rei convoca o povo de Nínive.
Há ainda outro traço a ser destacado nesse processo que iniciou: o rei que convoca o povo para a penitência e o arrependimento não tem nenhuma garantia de que Deus vai ouvir e voltar atrás, quase que numa ação de causa e efeito automática. Ó jejum era o grito dirigido a Deus ; caberia, porém, a Deus atender ao grito ou não. Verdade é que Israel conhecia um Deus que sabia arrepender-se (cf. Gn 8.21; Ex 32.14; Jr 26.13 e outros). Mesmo assim, garantia não havia. Acontece que o profeta de Deus apostava justamente em que Deus não se arrependeria, mas trans¬formaria em realidade as ameaças que ele fizera a Nínive a mando desse mesmo Deus, afinal! Mas Deus volta atrás e perdoa, salvando, assim, todo o povo bem como os animais (inclusive as plantas que também seriam destruídas).
Deus se arrepende: Por trás dessa decisão divina está toda a teologia de que Deus está mais interessado na vida do que na morte, mesmo tendo que admitir que a sua criação é má desde a sua mocidade (Gn 8.21). Isso está ilustrado de uma forma magistral no final do livro de Jonas, quando Deus precisava chegar ao profeta e, por assim dizer, convencê-lo de que agira de forma correia (…não hei de ter eu compaixão da grande cidade de Nínive, em que há mais de cento e vinte mil pessoas, que não sabem discernir entre a mão direita e a mão esquerda, e também muitos animais? (4.11)).
3. A título de meditação
O livro de Jonas é um recado para Israel, que se fechava em si mesmo, preferindo prender o seu Deus entre os seus próprios muros visíveis e invisíveis. Era mais fácil manter a exclusividade, não se misturar com os outros povos, tão diferen¬tes e de costumes tão outros. Especialmente era importante não ter contato com gente como o pessoal de Nínive, pecadores em toda a linha. Mais: embora sempre se confessasse a universalidade de Deus, era bom ficar nessa confïssão.e não deixar que essa universalidade se tornasse muito concreta. Como misturar outra gente ao povo escolhido de Deus? Como derrubar os muros para conviver com os outros na sua iiuincira diferente de ser? Como, quem sabe, permitir que as próprias filhas ou os próprios filhos acabassem casando com pessoas de outros povos? Não apenas isso: não seria perigoso anunciar Javé para povos tão diferentes? E que dizer se, de repente, Deus ainda resolvesse mostrar sua imensa misericórdia em relação a outros povos que não Israel? Por tudo isso, era melhor fechar-se em si mesmo, ainda que isso pudesse significar a morte paulatina. Por trás do nosso profeta desajeitado creio que estão essas e mais perguntas, e em sua pessoa se caracteriza o que Israel, em tantos momentos de sua história, pensou e fez, indo quase o caminho do suicídio.
Na verdade, Israel não está tão distante, e Jonas deveria estar por aí, cami¬nhando entre nós. Nós, IECLB, ainda não superamos os nossos laços étnicos, que nos atrapalham (muita coisa de nossa herança, de-nossos costumes, de nossa tradi¬ções é boa, sem dúvida) numa atitude missionária. O melhor exemplo disso é o fato de que só excepcionalmente alguém de outra etnia ou raça entra em nossas comuni¬dades. Tanto isso é verdade que também as nossas comunidades mais ao norte do Êrasil carregam fortemente as marcas do sul. O pecado não está em ter heranças e tradições — isso também não era o pecado de Israel —, mas sim em pensarmos amiúde que por isso somos melhores do que os outros e que os outros — é claro — de alguma forma são ao menos um pouco inferiores. Não se trata de simplesmente apagar todas as diferenças que existem, o que, aliás, nem ao menos seria possível. Trata-se, isso sim, de reconhecermos que outros são diferentes e que também nós — do ponto de vista dos outros — somos diferentes e até estranhos. Mas, com todas essas diferenças, somos filhos do mesmo Deus, e cabe a nós, que dizemos conhecer o Deus, pai de Jesus Cristo, testemunhar o amor desse Deus em atitudes e também em palavras, na certeza de que ele pode e vai agir também entre outros povos.
Jonas é exemplo da cabeçudice de seu povo e da cabeçudice da igreja hoje, porque tanto um como o outro preferem imaginar que os outros não vão crer e não vão adorar nosso Deus e nem perguntar por sua vontade. Pior é que os outros, muitas vezes, são pessoas ou grupos que estão dentro das nossas comunidades: quantas vezes os mais velhos acham que os jovens não têm remédio e que por isso não deve haver lugar para eles na igreja; quantas vezes os grupos constituídos têm dificuldade em aceitar que surjam e se criem ainda outros tipos de grupos na comunidade; quantas vezes pessoas que vêm de fora se sentem rejeitadas ao invés de aceitas. Não só isso, porém: nossa dificuldade maior reside em que não.conseguimos ir em direção aos outros que não pertencem à nossa igreja, talvez a nenhuma igreja cristã…
O nosso Deus não é só nosso e exclusivamente nosso, e isso foi mostrado definitivamente no Cristo, cujo viver, sofrer, morrer e ressuscitar rompeu todas as barreiras que separam os seres humanos uns dos outros (cf. Cl l. 13-23). Isso precisa ser testemunhado para fora dos muros — visíveis e invisíveis — que nos cercam e separam dos outros. O livro de Jonas mostra que a palavra de Deus é mais forte do que a nossa boa ou má vontade: ela pode converter pessoas ao caminho da vida plena e deverá converter a nós para que vejamos o outro como nosso irmão verda¬deiro, pois aqui (em Jesus) está quem é maior do que Jonas (Mt 12.41).
A missão da igreja é sempre em direção ao outro. Pouco importa onde ele se encontra; em todo caso, o outro não está apenas entre aquelas pessoas que se parecem comigo.
4. Pistas para a prédica
4.1. O livro de Jonas se presta muito bem para, inicialmente, fazer uma apresentação desse personagem, contando a pequena história, dando destaque à briga desigual entre a sua vontade e a vontade de Deus.
4.2. Deus é o Deus da humanidade e do universo, o que se mostrou definitivamente em Jesus Cristo. É por isso que ele quer a salvação de toda a humanidade e do universo. O seu povo, a igreja, é chamado a ir e anunciar — com exemplos concretos e com palavras — esse Senhor da vida que chama à conversão.
4.3. Ninguém está condenado ou perdido de antemão (para Deus não há casos perdidos). Por isso não é justo querermos o nosso Deus somente para nós muna atitude egoísta e ciumenta.
4.4. A salvação pretendida por Deus é global e inclusiva: Não só os seres humanos são objeto do amor de Deus, mas também plantas e animais, o que é um recado muito forte para o nosso relacionamento com o mundo animal e vegetal.
4.5. Fica uma pergunta para a igreja, a comunidade em particular e para cada pessoa: Nós temos espaço para outras pessoas, se, de repente, Deus inicia um processo semelhante ao de Nínive?
5. Subsídios litúrgicos
1. Intróito: Mt 28.19-20.
2. Confissão de pecados: Pedir perdão porque somos fechados em nós mes¬mos e, muitas vezes, discriminamos as pessoas que pensam e crêem diferente do que nós, mas também não vamos ao encontro delas.
3. Oração de coleta: Agradecemos-te, Senhor, porque nos chamas para ser¬mos o teu povo na terra. Ajuda-nos a testemunharmos o teu amor a todas as pessoas e nas mais diversas situações. Dá-nos o teu Espírito Santo para que olhemos para cima e para adiante dos muros que nos rodeiam e nos separam dos demais.
4. Leitura bíblica: Marcos 1.14-20.
5. Oração final: Nessa oração se devia interceder principalmente pelos campos de missão que a Igreja ou grupos cristãos procuram levar adiante. Penso na missão indígena, penso no trabalho em nossas novas áreas, penso no trabalho da missão urbana e suburbana e nos diversos segmentos de atuação em nossas cidades; penso também no trabalho junto ao nosso homem do campo: colonos empobrecidos, acampados, assentados e outros mais. Finalmente, acentuar o pedido de que Deus nos dê o seu Espírito para que nos deixemos enviar e para que não procuremos fugir, a exemplo de um Jonas.
6. Notas bibliográficas
(1) Vale a pena ler todo o artigo de Hans Walter Wolff.
(2) J. D. Robert, Jejum, loc. cit., p. 149.
7. Bibliografia
ROBERT, J. D. Jejum In: V. ALLMEN, J.-J. Vocabulário bíblico. ASTE, 1963. pp. 149ss.
v. RAD, G. Theologie des Alten Testaments. 3. ed. Muenchen, 1960.
WOLFF, H. W. Bíblia, palavra de Deus ou palavra de homens. In: —. et alii. Bíblia, palavra de Deus ou palavra de homens? Sinodal, 1970.
WESTERMANN, C. Abríss der Bibelkunde. 2. ed. Muenchen, 1962.
Proclamar Libertação 19
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia