Prédica: Tiago 5.1-6
Leituras: Números 11.4-6,10-11,24-39 e Marcos 9.38-50
Autor: Ari Knebelkamp
Data Litúrgica: 19º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 02/10/1994
Proclamar Libertação – Volume: XIX
1. Como ler Tiago
A elaboração de uma exegese de um texto da carta de Tiago requer leitura e meditação exaustivas da carta toda. Ler e meditar, meditar c reler. A carta já foi objeto de muita discussão hermenêutica e teológica ao longo da história. Não são muitos os ensaios exegéticos numa perspectiva popular-libertadora. Além disso, a carta tem fortes características de carta pastoral. Interessam-nos aqui alguns resultados hermenêuticos mais recentes, frutos de leitura c da práxis populares. A carta de Tiago centraliza sua atenção na prática cristã e cotidiana. As situações e os exemplos contidos na carta são situações concretas, exemplos da experiência humana. Nesse contexto, o evangelho é força e garantia para renovar a vida. Há conexão entre vida c evangelho. Não há dúvida de que Tiago toma partido em favor dos pobres. Ele quer animar gente oprimida. E é sob essa ótica que a carta quer ser lida e compreendida.
Querer entender Tiago sob a ótica da teologia paulina não é possível. Tiago quer ser compreendido a partir dele mesmo. Tiago dá um aperto vigoroso na articulação da palavra com a ação, na justificação pela fé com as obras de justiça entre os homens, como dom da justiça de Deus e da nova liberdade em Cristo (Tamez, Elsa, p. 08).
Cai na vista o caráter parenético da carta, isto é, da exortação e do ensinamen¬to em estilo popular. A tradição sapiencial está presente aí. Conforme Elsa Tamez (pp. 29-86), a carta de Tiago deve ser lida a partir de três ângulos distintos e complementares:
1.1. O ângulo da opressão/sofrimento
Há uma comunidade de crentes que sofre. Há um grupo de ricos que os oprime c arrasta aos tribunais (2.6). Há camponeses que são explorados, cristãos e não-cristãos, pelos fazendeiros e latifundiários ricos que acumulam riqueza às custas dos salários dos trabalhadores (5.1-6). Há uma classe de homens e comerciantes (4.13-17) que leva uma vida regalada, sem preocupar-se com os pobres.
1.2. O ângulo da esperança
Essa comunidade de crentes necessita de uma palavra de esperança, de ânimo c de segurança quanto ao fim da injustiça (1.12). Tiago a dá desde o início. Isso observamos na saudação, na insistência de declará-los felizes, macáríos (1.12; 1.25; 5.11), na preferência de Deus pelos pobres (2.5), no juízo contra o opressor (1.10; 5.1-6), ou seja, contra o fim da opressão (5.9).
1.3. O ângulo da práxis
Esse é o ângulo mais denso; a maior parte do conteúdo da carta se concentra aí. Para Tiago, a denúncia de hoje e o anúncio da esperança não são suficientes. Requer-se algo mais: a práxis. Pede-se a esses cristãos uma práxis, na qual se deve mostrar uma paciência militante (l .4; l .3; 5.7-10), uma integridade no falar (3.2-12), crer e fazer, uma oração com poder (5.15), uma sabedoria eficaz e um amor incondicional (2.8-11), sincero entre os membros dessas comunidades.
O anúncio do Reino e sua concretização na prática de Jesus têm as marcas do contexto de exploração sistemática da população trabalhadora. É o contexto em que surgem os Evangelhos. Neles, o tema morte predomina. Jesus aparece com o Espírito da Vida. Em Jesus ecoa o grito daqueles trabalhadores (campesinato) extorquidos. Tiago retoma essa linha temática. As palavras de Jesus no sermão do monte reaparecem, sob nova perspectiva, na carta de Tiago. Ele escreve para cristãos espalhados fora da Palestina, principalmente na Ásia Menor, onde o cristianismo mais se difundiu nos primeiros tempos. Aqueles cristãos viviam em situação de marginalização e opressão (1.1). Viviam em pequenas comunidades/núcleos, com forte influência do AT e da religiosidade popular da época, que era o judaísmo contemporâneo. Essas pequenas comunidades não tinham força para transformar a sociedade. Eram minorias, pequenos núcleos de resistência. Sofriam provações (1.2), difamações, viviam um estilo de vida diferente (4.4). Em seu meio viviam também ricos, que não eram bem-vistos por causa de sua prática de exploração e discriminação. A expectativa pela vinda do Senhor como Juiz era um dos pontos centrais da fé que os caracterizava.
2. O texto e seu conteúdo
A maioria dos temas e dos conteúdos bíblicos brota da temática do trabalho. Alegria e sofrimento das mãos que labutam afloram constantemente como experiências teológicas e humanas significantes. Tg 5.1-6 é um grito profético contra a riqueza e a exploração do trabalho. A riqueza que tem sua origem no acúmulo, fruto do roubo, da retenção dos salários. O texto é escatológico no tom, e a linguagem lembra os profetas do AT. Leia também Am 5.10-11, Mq 6.10-11, Is 3.13-15 e outros.
V. 1: Atendei agora, ricos, chorai lamentando, por causa das desventuras (miséria) que vos sobrevirão.
V. 2: As vossas riquezas estão corruptas (putrificadas), e as vossas roupagens comidas de traça.
V. 3: O vosso ouro e a vossa prata foram gastos de ferrugens, e a sua ferrugem há de ser por testemunho contra vós mesmos e há de devorar, como fogo, as vossas carnes. Tesouros acumulastes nos últimos dias.
V. 4: Eis que o salário dos trabalhadores que ceifaram os vossos campos, e que por vós foi retido com fraude, está clamando; e os clamores dos ceifeiros penetraram até os ouvidos do Senhor dos Exércitos.
V. 5: Vivestes regaladamente sobre a terra. Vivestes nos prazeres. Engordastes os vossos corações em dia de matança.
V. 6: Condenastes e matastes o justo, sem que ele vos faça resistência.
O texto inicia com uma incisiva chamada à atenção e um forte juízo contra os ricos. Lamentação e choro (v. 1) não estão vinculados ao arrependimento (4.9), mas são provocados pelo julgamento inevitável. Isso mostra a intensidade e o grau de exploração. Ricos são os que oprimem, acumulam riqueza, vivem regaladamente, sonegam salários, condenam e matam o justo. Importante notar que suas riquezas são fontes de desgraça para os outros e para eles mesmos. Tiago usa toda uma linguagem simbólica para ressaltar esse fato (vv. 2,3). As leis do AT proíbem a opressão, o pagamento injusto, insuficiente, e a retenção dos salários (Lv 19.13; Dt 24.14-15). E aqui estamos na questão central do texto (v. 4): a sonegação do salário dos trabalhadores ceifeiros, diaristas, que trabalhavam no campo. Os ceifeiros dia¬ristas dependiam exclusivamente do salário que recebiam no final de cada dia de trabalho. Esse trabalhadores viviam numa situação intermediária entre a escravidão e a cidadania plena. Não eram escravos, mas também não tinham plenos direitos de cidadão. Eram explorados pelos ricos latifundiários. Tiago atualiza o êxodo (v. 4b). Ai palpita a grande esperança: clamores provocarão uma nova intervenção de Deus na história do seu povo. Tiago segue denunciando outros pecados dos ricos (v. 5), para, no final, apontar para o fato de que a justiça se verga ante o poder econômico (v. 6), permitindo a execução de pobres, gente justa, através de processos legais e assassinatos, sem que os pobres tenham condições de oferecer resistência.
3. A força da palavra
José Comblin faz uma análise do discurso evangelizador (A Força da Palavra, pp. 345ss.) e afirma: Em primeiro lugar, a evangelização é uma palavra que deve infundir vida, dar vida, criar vida. Onde há desânimo, indiferença, descrença, inércia, ela infunde confiança em si, confiança na vida e no futuro, vontade de viver e Animo para lutar. É uma palavra que desperta e faz viver… Em segundo lugar, a evangelização é uma palavra que desperta vocações de serviço. Abre os egoísmos. Abre os horizontes para a comunidade, cria comunicação e faz com que as pessoas se tornem sensíveis ao povo de que fazem parte… O discurso cristão proclama e anuncia uma ação de Deus. Proclama que Deus está agindo e libertando os pobres. … Proclama e anuncia o que vai ser. Anuncia que a força do Espírito vai dinamizar mais pessoas e comunidades e aumentar a ação libertadora… O discurso de evangelização exorta também em nome de Deus. Usa a autoridade de Deus para pedir com insistência uma mudança de vida, uma vida de responsabilidade. Desperta o sentido tia responsabilidade e a vontade de se comprometer. Tem autoridade para pedir esse compromisso, porque fala em nome de Deus.
Tiago 5.1-6 é uma palavra que torna manifesta a divisão que há entre pobres e ricos. E uma palavra que vem para libertar, e não para confirmar. É um grito profético contra a riqueza acumulada às custas do suor do trabalhador. Reter salário é provocar a morte! Tal situação e o clamor dos trabalhadores sonegados provocarão nova intervenção de Deus na história de;seu povo. O juízo aos exploradores é iminente. Ë inevitável. Nesse processo será necessário ter uma paciência militante (5.7-11). Essa é a palavra forte do texto, que deverá ser comunicada e assumida.
4. Rumo à prédica
Penso que o contexto da pregação influirá na maneira de trabalhar e pregar esse texto. Se for numa comunidade ou grupo rural, remeto para a exegese do mesmo texto que Carlos e Claudete Ulrich fizeram no PL XIII, 1987, pp. 285ss. Lembro apenas que ceifeiros diaristas corresponde, na Bíblia, mais ou menos à situação de nossos meeiros, diaristas capinadores, bóias-frias.
Trabalhei esse texto em diversos núcleos de uma comunidade. Membros que participam de algum movimento popular e que fazem análise de conjuntura, leitura contextualizada da Bíblia, mostram facilidade em compreender o conteúdo do texto e o seu desafio e apontam caminhos para a superação da injustiça social e econômica. No mais, a gente encontra e deve trabalhar com os seguintes impasses:
1) a maioria dos membros não é da opinião de que a fé em Jesus implica, hoje, uma prática que contesta a opressão e a exploração;
2) dificuldade em definir injustiça e desigualdade como pecado;
3) a categoria de povo organizado não é fator central em nossa teologia. No centro está o assim chamado homem pecador, que por Deus é feito homem justificado. Muitas de nossas bases teológicas foram elaboradas no contexto da transição do feudalismo para o pensamento liberal, moderno-burguês;
4) a dificuldade de destrinchar o sistema de opressão instalado em nossa sociedade;
5) distanciamento entre celebração e militância;
6) comunidades e seus presbitérios continuam bastante atrelados aos interesses do poder;
7) a falta de consciência de que sem organização não haverá justiça. Hoje, a palavra organização é chave para qualquer empreendimento. A organização implica dois elementos fundamentais: a comunhão e a participação.
A fome e a miséria se espalham pelo nosso país com tal intensidade, que se chega a duvidar dos próprios dados. Nos últimos dez anos, aguçaram-se as desigualdades na distribuição da renda. 50% dos trabalhadores ganham até dois salários mínimos. Dos cerca de 62 milhões da população economicamente ativa 24% recebem até um salário mínimo. Desses, 8% nada recebem pelo seu trabalho. Os 10% dos mais ricos detêm quase 50% da riqueza nacional. Esse é o projeto das elites, da proposta neoliberal, que persegue quatro objetivos estratégicos fundamentais:
1) transformar a estrutura e a dinâmica do processo de acumulação de capital no Brasil, tornando-o profundamente integrado à dinâmica da transnacionalização do capital. Para isso é preciso mudar o papel do Estado nesse processo;
2) consolidar, a nível político, uma estrutura de relações de poder que garanta estabilidade;
3) desenvolver um mecanismo de controle da trágica crise social;
4) impedir que o projeto democrático-popular venha a se expressar com capacidades estratégicas.
O capitalismo mundial vive hoje mais uma séria crise. Agora, a crise ocorre num período em que a maioria das pessoas mora nas grandes metrópoles. A comida só existe nos supermercados ou nos campos dominados por grandes corporações e latifundiários. Para onde estamos caminhando inevitavelmente? A característica da sociedade de hoje é o esgotamento de um tipo de desenvolvimento que se mostrou ecologicamente predatório, socialmente perverso e politicamente injusto. Esse esgotamento pode ser o raiar de um futuro com novas chances.
Tiago 5.1-6 é um texto que oferece inúmeras possibilidades de pregação. É um texto que se refaz facilmente nas nuanças da história. É mais um texto que emerge da realidade do trabalho. Um texto forte, libertador. É importante que se saiba para quem esse texto será pregado ou com quem ele será trabalhado. Em qualquer situação, é importante ter em mente os seguintes detalhes: o texto quer animar gente oprimida; sofrimento e dor dos espoliados chegam aos ouvidos de Deus, que está comprometido com as suas causas. Na Bíblia, alegria e sofrimento das mãos que trabalham afloram como experiências teológicas. Salário justo é intocável (Lv 19 e Dt 24). O opressor não terá chance. Necessidade de organização dos oprimidos. Projeto futuro inicia agora com mais comunhão e participação. É importante que trabalhadores assalariados participem na elaboração da celebração. Por que não dar a eles o direito de interpretação?
5. Bibliografia
COMBLIN, J. A Força da Palavra, Editora Vozes, Petrópolis, 1986.
TAMEZ, E. A Carta de Tiago, São Paulo, 1985.
CULLMANN, O. A Formação do Novo Testamento, Editora Sinodal, 1970.
HARRINGTON, E. J. Chave para a Bíblia, Edições Paulinas, 1985.
CHAMPLIN, R. N. O Novo Testamento Interpretado, Volume VI, São Paulo, 1980.