Prédica: 1 Timóteo 2.1-4
Autor: Silvio Meincke
Data Litúrgica: Dia da Independência
Data da Pregação: 07/09/1977
Proclamar Libertação – Volume: II
I – O endereço da carta
Fosse o endereçado exclusivamente Timóteo e Paulo não careceria de acentuar a legitimidade do seu apostolado (1.1; 2.7) junto a este seu grande colaborador e verdadeiro filho na fé (1.2), a quem já encarregara de importantes tarefas (l Tm 3.1s; l Co 4.17s; l6.10s; At 19.22; Fp 2.19s), que foi co-autor de várias de suas cartas (l e II Ts; II Co; Fp; Cl; Fm) e de cuja fidelidade, bom relacionamento e comunhão de fé o apóstolo dá testemunho (Fp 2.19-23).
Quando Paulo lhe dirige a carta, Timóteo encontra-se na função de dirigente de Igreja nas comunidades da Ásia Menor. Ali ordena ao ministério (l Tm 5.22) e vela sobre a disciplina eclesiástica (l Tm 5.19).
Conclui-se que a carta foi escrita a Timóteo e, através dele, a estas comunidades.
II – Situação e contexto
No início a vida comunitária nas comunidades primitivas processava-se livremente sob as manifestações dos dons espirituais. Cedo, no entanto, mostrou-se a necessidade de prescrições mais definidas, devido a uma série de dificuldades surgidas, conforme nos relata l Co 11. Os capítulos 2 e 3 de l Tm mostram-nos a mais antiga Ordem de Vida Comunitária. O cap. 2 regulamenta a vida do culto. O cap. 3 a vida e o procedimento dos ministros.
No cap. 2 encontramos a seguinte divisão:
2,1-7 Intercessão em favor de todos os homens.
2,8 O comportamento dos varões no culto.
2,9-14 O comportamento das mulheres no culto.
A vida dos que professam a fé no Deus da ordem (l Co 14,33) deve também processar-se em ordem, tanto no ambiente da vida familiar, quanto na vida comunitária e de culto (l Tm 3.4-5.12,15).
III – Texto
V. l – Antes de tudo deve ter o seu lugar na ordem do culto a intercessão. Intercessão em favor de todos os homens, sem discriminação, conforme o amor universal de Cristo. O texto usa quatro termos diferentes para ressaltar a importância da oração sob todos os seus aspectos.
V. 2 – A intercessão inclui os reis e todos os que se acham investidos de autoridade. O texto não nos diz diretamente do conteúdo da oração (o que devemos orar pelos reis e pelas autoridades), mas diz-nos do motivo (por que e para que) da oração:
a) orar pelos reis e pelas autoridades, porque também eles estão incluídos no desejo do Senhor de que todos os homens sejam salvos e alcancem o pleno conhecimento da verdade (v.4),
b) para que vivamos vida tranquila e mansa, com toda piedade e respeito. Está nisto expressa a confiança de que Deus, ao dirigir a história dos homens, dirija os atos das autoridades no sentido de que a comunidade possa crescer em paz.
O plural (l Tm 2a) faz concluir que a intercessão independe de posicionamento político da comunidade e de atuação política das autoridades. Também independe do bom ou mau uso que as autoridades fazem do seu poder.
V. 3 Isto (a prática da intercessão) é bom e aceitável diante de Deus nosso Senhor.
V.4 – o qual deseja que todos sejam salvos e conheçam a verdade – aceitem e confessem a verdade de Cristo. Convicção de que não só os justos, conforme se pregava na sinagoga, nem só os sábios, conforme pregava o gnosticismo, mas todos estão no plano salvífico de Deus. A cruz de Cristo é o preço desta oferta universal da salvação; preço de resgate, justamente de pecadores.
Resumo: Dentro da necessária ordem do culto cabe destaque a intercessão em favor de todos os homens, porque o plano de Deus, centrado no seu amor universal e realizado na cruz, é de salvação para todos; em especial cabe destaque à intercessão em favor das autoridades para que,além de incluídas neste plano,sejam também guiadas por Deus,para manterem a paz necessária para o tranquilo desenvolvimento da comunidade.
IV- Meditação
A oração faz parte da vida do cristão e da comunidade cristã. É mais do que apenas parte de uma Ordem da Vida da Comunidade. A oração pertence ã própria essência da vida cristã.
Mas orar todos os religiosos oram, com a diferença de que para muitas religiões a oração não passa de uma forma de meditar profundamente sobre aspectos importantes da existência humana. A oração cristã é mais do que isto. É o diálogo com Deus, onde quem ora abre o seu ser ao seu Senhor vivo, de quem espera ação.
O cristão e a comunidade cristã são também chamados a estarem aí para o outro, a amar o outro como a si mesmos. A medida em que compreenderem isto, seu ser estará ligado ao ser dos outros, sua existência estará irmanada a existência dos outros, seus anseios englobarão os anseios dos outros e o seu diálogo com Deus incluirá a lembrança do outro. Aliás, a oração é, certamente, o único lugar onde conseguimos cumprir efetivamente a nossa missão de estar aí para os outros.
A consequência da inclusão dos outros no nosso diálogo com Deus certamente nos levará também à disposição para o diálogo com os outros, sem discriminação e sem barreiras. Quem ora para alguém também encontrará disposição para estender-lhe a mão. E, para fazê-lo, devemos conhecer os que nos cercam, em suas virtudes, em seus anseios, em seus fracassos, em seus medos, em seu trabalho, em suas restrições,
em suas capacidades. E assim as barreiras, os preconceitos, os rancores e as discriminações serão vencidos através do diálogo:
– diálogo de Deus conosco, através da sua palavra,
– diálogo nosso com Deus, através da oração,
– diálogo nosso com Deus, em favor dos outros, através da oração,
– diálogo nosso com os outros, sem discriminação, como fruto do diálogo através da oração.
Os cristãos da Ásia Menor são exortados a orar pelos seus reis e por todas as autoridades. Autoridades pagãs, não raro hostis à fé cristã e perseguidoras dos cristãos. Apesar de tudo, também estes estão enquadrados no plano de salvação de Deus e também a eles Deus ama. Seu plano salvífico e seu amor incluem também aqueles que,para a nossa compreensão humana, parecem não merecê-lo. A cruz de Cristo concede-lhes a graça do amor e a graça de serem incluídos no plano salvífico.
Também os cristãos das comunidades de Timóteo vivem da cruz. Somente a compreensão vivencial desta verdade pode prepará-los para a oração pelos seus reis e pelas suas autoridades, porque torna-os gratos e a gratidão leva-os ao desejo de que outros e todos experimentem a mesma verdade; porque os liberta da necessidade de comparação que quer medir méritos para a salvação; porque lhes dá forças para orar onde as forças humanas falham nas suas reações afetivas e emocionais em relação as pessoas por quem devem orar; porque experimentam uma graça e um amor divinos que transpõem barreiras e limites para os humanos intransponíveis.
O nosso texto está previsto para o culto do dia 7 de setembro. Muitos, neste dia, tomam a palavra para exaltar a Pátria, para exortar o povo a amar ou até a adorar a Pátria. Para nós, a Pátria é povo. A Pátria que merece o nosso amor não é nenhuma grandeza abstraía e separada do homem, como muitas vezes parece ser entendida. A Pátria que merece o nosso amor é povo, com as suas características sociais, culturais e religiosas, que habita a nossa terra. Este povo, com os seus problemas econômicos, suas dificuldades, seu trabalho, sua esperança, sua luta, seu progresso ou falta de progresso, sua riqueza, seus desencantos merece o nosso amor. Pátria Brasileira é cada um de nós, desde a mais alta autoridade nacional até o mais humilde caboclo do sertão.
O cristão não adora, a não ser a Deus Criador, revelado em Cristo e presente no Espírito Santo. Não adora a Pátria. Mas intercede pela Pátria, ou seja, pelo compatriota, pelo povo de sua terra, pelos dirigentes do povo inclusive. Quando o cristão intercede pela sua Pátria, então o faz no sentido de pedi r a Deus que leve o povo de sua terra ao pleno conhecimento da verdade. Uma verdade que liberta. Liberdade que se manifesta em várias faixas:
– na faixa espiritual: esta liberdade acontece onde o homem se sabe aceito por Deus, apesar de suas restrições, dos seus erros, dos seus fracassos. Liberdade espiritual, advinda da certeza de que a sua aceitação por Deus não de¬pende do cumprimento de leis, preceitos e êxitos, mas sim do amor que Deus tem por ele. Certeza de amor que liberta de todos os medos, da superstição e dos falsos deuses, de todos os comprometimentos, de todos os preconceitos. Que leva a entregar a sua vida confiantemente nas mãos de Deus, a quem se sabe comprometido unicamente.
– na faixa da instrução: liberdade da escravatura dos poucos recursos intelectuais, de todo tipo de restrições, dos estreitos limites de visão do mundo. Liberdade para desenvolvimento dos dons e das habilidades, que recebe de Deus e com que serve a Deus. Liberdade para à independência da boa ou má vontade dos outros que sabem mais que ele; liberdade, sem a qual não poderá participar da dignidade de ser criativo e parceiro de Deus na criação, para o qual o Criador o destinou.
– na faixa econômica: liberdade da carência de recursos; liberdade para a independência da caridade dos outros na luta pela subsistência.
Portanto, o cristão, ao interceder pela Pátria, o fará pelos seus compatriotas, no sentido de que Deus intervenha na plena libertação dos mesmos. Sua oração será sempre cen-trada no interesse do homem, jamais no interesse de instâncias.
As autoridades são todas aquelas pessoas que decidem pelo povo, em circunstâncias ideais como porta-vozes do povo.
O conteúdo da oração será em favor da libertação, da salvação do povo e das autoridades e do seu pleno conhecimento da verdade. Ela não acontecerá em distanciada neutralidade daquilo que deve preocupar ao cristão, relativamente ao procedimento do povo e das suas autoridades, mas acontecerá sob a força da cruz, que derruba barreiras. Também não será uma oração de quem se posiciona como juiz, mas sim de quem se posiciona como agraciado e carente de igual graça. Tampouco será uma oração que simplesmente abençoa todos os atos do povo e das autoridades, mas sim uma oração que confia na orientação e iluminação divina para atos e procedimentos concordes com a vontade de Deus e responsáveis perante ele.
Uma oração fundamentada neste posicionamento e que sabe expressar este posicionamento terá chances de não ver sua sinceridade prejudicada pelas naturais barreiras, eventualmente existentes na comunidade, em relação a grupos ou Indivíduos que compõem o povo e em relação às autoridades. Barreiras (desprezo, desconfiança ou até ódio) oriundas do procedimento destes grupos ou indivíduos (marginais, criminosos, autoridades prepotentes) ou do posicionamento político ou ideológico divergente entre eles e membros da comunidade.
A prédica naturalmente não poderá omitir a mensagem central do plano salvífico de Deus, centrado no amor por todos os homens e realizado na cruz, no qual esta baseada a exortação do nosso texto.
A comunidade que ora entra em dialogo com Deus, que ele estabelece com os homens por meio de Cristo e pela sua mensagem. A comunidade que ora expõe a Deus, neste diálogo, as suas alegrias e esperanças; as suas tristezas e dores; as suas perguntas e dúvidas; os seus anseios e medos, enfim, a sua existência. A comunidade que intercede por outros leva ao dialogo com Deus a existência do outro, vê com os olhos do outro e assume como seus próprios os anseios, as vitórias e os fracassos do outro. E este diálogo com Deus em favor dos outros derruba as barreiras que nos querem separar do outro e leva à compreensão do mesmo e ao diálogo com ele.
A prédica exemplificará anseios, tropeços, dores, luta e medos do povo brasileiro, que comemora a sua independência política. Citará autoridades (cargos, não necessaria-mente nomes) pelos quais somos exortados a orar.
Paixões religiosas, políticas e ideológicas; extremismos de grupos e partidos; desníveis sociais e econômicos. Eis algumas barreiras que perpassam o povo brasileiro. A comunidade que sabe levar os anseios do povo em diálogo a Deus, assumirá estes anseios, livre da tentação de deixar-se arrastar para dentro do torvelinho de paixões, eventualmente advindas destas barreiras.
Assim, aquele que ora estará acendendo sua pequena chama de verdade, alimentada pela grande chama da verdade, revelada por Deus, e estará levando-a ao mundo e aos homens, dando a sua parcela de contribuição para que todos os homens cheguem ao pleno conhecimento da verdade, participando, como instrumentos, na concretização do plano que Deus tem para todos os homens.
A prédica será autêntica, na medida em que o pregador souber posicionar-se como alguém que sincera e honestamente assumiu os anseios do povo e não como alguém que, vivencialmente distanciado do povo, em posição de expectador neutro, apenas obediente à perícope, exorta outros no sentido de que anseios devam ser assumidos.
O dia favorece a colocação de todo o culto, como uma unidade compacta, sob o tema da prédica, inclusive orações, confissão de pecados e confissão de fé, que não deveriam simplesmente ser copiados da agenda.