Prédica: Ezequiel 2.3-8a; 3.17-19
Autor: Nelson Kirst
Data Litúrgica: 1º Domingo após Trindade
Data da Pregação: 12/06/1977
Proclamar Libertação – Volume: II
I – Considerações exegéticas
Tradução:
(3) Então ele me disse: Filho do Homem, eu te envio à casaa de Israel, aos (povos)b rebeldes que se rebelaram contra mim, eles e seus pais (se desviaram de mim)b , até este precisoc dia.
(4) (E aos filhos de rosto crueld e coração duroe eu te envio)b e dize a eles: Assim falou (o Senhor)b Javé.
(5) E eles – quer ouçam, quer deixem (de ouvir), pois são Casa Rebeldef – reconhecerão que tua foste profeta em seu meio.
(6) Quanto a ti. Filho do Homem, não tenhas medo deles e não tenhas medo de suas palavras, quando espinhosa te cercarema e estiveres sentado sobreg escorpiõesh. Não tenhas medo de suas palavras nem te espantesi dos seus rostos, pois eles são Casa Rebelde,
(7) mas dize-lhes minhas palavras – quer ouçam, quer deixem (de ouvir), pois são Casaj Rebelde.
(8a) Tu, porém, Filho do Homem, ouve o que eu te digo: Não sejas rebelde como a Casa Rebelde.
(3.17) Filho do Homem, coloquei-te como atalaial para a casa de Israel. Quando ouviresm da minha boca uma palavra, adverti-los-ás de mim.
(18) Sen eu falaro ao ímpio: Certamente morrerás!p e tu não o advertiste e não te manifestaste no sentidoq de advertir ao ímpio do seu caminhor, para que vivas, ele, o ímpio, morrerá por causa da sua culpa, mas da tua mão exigirei o seu sangue.
(19) No entanto, se tu advertiste ao ímpio e ele não se converteut de sua impiedade e do seu caminhor, ele morrerá por causa da sua culpa, mas tu salvasteu a tua vida.
Observações:
– a) com LXX
– b) as partes entre ( ) são acréscimos; faltam na LXX; pelo menos no trecho 2.3-5 convém omiti-las para facilitar ao ouvinte a compreensão do texto; embaralham a fluência do pensamento
– c) 'sm = ossos; nesta combinação representa um reforço
– d)ameaçador, violento, qasâh
– e)hãzãq, adj, a rigor: duros de coração
– f) em si: de rebeldia, m'riy
– g) ler v'l
– h) 'aqrâb
– i) juss ni htt
– j) cf. esp. 2.5.6; 3,9. 26.27; 12,2.3
– l) part qal sfh
– m) perf cons
– n) b'
– o) inf es qal
– p) inf abs + imperf qal mvt
– q) l
– r) cortar hrs'h, com LXX
– s) 1 + inf qal hyh i suf
– t) perf qal svb
– u) perf ni nsl.
Ezequiel foi deportado em 597 pelos babilônios, juntamente com um grupo de compatriotas, para Tel-Abibe, às margens do rio Quebar. Sua vocação ocorre no 5o ano de sua deportação, e ele atua durante cerca de 20 anos entre os exilados. Nossos trechos encontram-se no âmbito direto do relato de vocação (1.1 – 3.15). Aí temos, no cap. l, a majestosa visão da glória de Deus, e em 2.1 – 3.15 o envio do profeta. Os israelitas deportados viviam em terra estranha e impura. Para eles, Javé e seu cuidado ficaram lá na pátria distante. Havia um impasse religioso. Mas agora, com sua vocação e atuação, Ezequiel significa para os deportados: a glória de Javé não está limitada a Jerusalém; ela também se estende e quer manifestar-se aos israelitas deportados; nisso se expressa a fidelidade de Javé; ele quer alcançar seu povo, ainda que distante, com sua palavra de juízo, a oferta de conversão e o vislumbre de uma nova realidade.
Nosso primeiro trecho vem logo após a visão do cap. l e representa um dos blocos principais do próprio relato vocacional. Em 2.3-5 temos o envio e a tarefa do profeta; em 2.6-7, a exortação não temas!. O v. 8a, em si, faz parte da unidade seguinte mas pode ser mantido, uma vez que seu conteúdo não destoa. No bloco que segue ao nosso trecho, 2.8 -3.3, temos a narração bastante estranha de como Ezequiel come o rolo de um livro. Trata-se de um ato que deve simbolizar o seguinte: o profeta assume total e intimamente a mensagem que lhe é confiada, e também a aprova. O trecho 3.4-15 pode ser entendido com uma simples leitura e não carece de explicação especial.
Nosso segundo trecho aparece logo na unidade subsequente é parte de 3.17-21, onde Ezequiel é instituído como atalaia de Israel. O texto é de redação posterior, pois alia conteúdos que se encontram em 33.7-9 e no cap. 18 (33.10-20). A combinação deste trecho com o primeiro, como é sugerida para a pregação, é justificável, uma vez que aqui, na figura do atalaia, sobressai um traço que é especialmente característico para a incumbência de Ezequiel, qual seja, o da sua responsabilidade pessoal, como atalaia.
Assim, 3.17-19 amplia e caracteriza de modo especial a função do profeta, que é enviado e recebe sua incumbência em 2.3-7. Para o pregador é imprescindível a assimilação cuidadosa do contexto de nossas duas passagens.
2.3-5 – Envio e tarefa do profeta
Importante: as palavras que aqui enviam e dão tarefa ao profeta provem do Deus que se manifestou no evento narrado no cap. 1. Trata-se do Deus fiel, Javé, que busca seu povo mesmo na terra estranha. É nesta sua fidelidade que ele envia o profeta.
Ezequiel é denominado Filho do Homem, aqui como em diversos outros lugares do livro. A expressão pretende ressaltar a pequenez do ser humano Ezequiel, como criatura, em contraste com a majestade de Javé. A inclinação a este Filho do Homem manifesta, assim, a condescendência deste Javé que vai em busca dos seus.
O que Javé diz pode ser dividido em três tópicos:
1o) Javé envia Ezequiel a determinados destinatários. O profeta é profeta, porque é enviado. Atrás do seu agir profético está a autoridade de quem o envia. O profeta não vai porque quer: não vai movido por interesses próprios, por qualquer motivação subjetiva. O profeta vai porque Javé o envia, esta é a única explicação para o seu agir. A partir daqui entendem-se os dois tópicos seguintes.
O envio tem destinatário concreto. Ezequiel deve ir a Casa de Israel que se rebelou contra mim. Não é por acaso que o grupo de deportados recebe a designação Israel. Ela traz consigo a lembrança de uma história percorrida em conjunto entre Javé e o povo: promissões feitas e cumpridas, proteção e cuidados, acordos e compromissos, obediência exigida e negada. Aquele que envia o profeta tem com os destinatários uma história comum que desaparece passado a dentro. Como diz o texto, eles e seus pais, até este preciso dia.
Dessa história percorrida, o traço que agora resta é negativo: eles se rebelaram contra mim. Colocada, assim, no contexto de Israel como um todo, através da história, fica claro que a rebelião aludida não se reflete a este ou aquele ato isolado. Trata-se de uma atitude fundamental; ser rebelde contra Javé parece fazer parte da própria essência de Israel, desde o seu surgimento. É o que se
expressa também na designação Casa Rebelde, que tão gritantemente contrasta com Casa de Israel.
2o) Dize a eles: Assim falou Javé. Apenas isso. Ainda não há interesse pelo conteúdo. O que importa aqui, aparentemente, é ressaltar duas coisas:
a) ao profeta compete falar. O profeta não planeja, não organiza, não lidera, não estuda. O profeta fala. Mas não fala qualquer coisa.
b) Ele deve falar o que vem de Javé. Assim, retorna aqui o que já tínhamos salientado em 1o), no tocante ao enviar. Importante: como se depreende facilmente do texto, essas poucas palavras do v. 4b pretendem expressar o essencial da atuação profética. Ser profeta é falar o que vem de Javé a determinados destinatários.
3o) O v. 5b fala da finalidade do envio. O que fora descrito em 3 e 4 tinha por finalidade o reconhecimento de que Ezequiel foi profeta em seu meio. Ezequiel é o enviado de Javé. Reconhecerão, portanto, que através de Ezequiel Javé veio buscá-los na terra estranha. Reconhecerão a fidelidade de Javé. E isto, quer ouçam, quer deixem de ouvir. Reconhecimento inescapável. Nem mesmo com toda rebelião ou indiferença deixarão de perceber e terão que atestar que Javé veio ao seu encontro, que manteve a fidelidade, pois este é um Deus que, nas palavras do próprio Ezequiel, não quer a morte do perverso, mas deseja que ele se converta do seu caminho e viva (18.23 e 33.11).
2.6-7 e 8a – A exortação não temas!
Este bloco contém exortações ao profeta, com vistas aos destinatários de sua mensagem. Já os conhecíamos do bloco anterior, vv. 3-5. Aqui, porém, os destinatários são caracterizados mais especificamente: suas palavras podem causar medo ao profeta; eles são perigosos como espinhos e escorpiões. Ezequiel não deve contar com seguidores. Encontrará reação negativa. E não apenas indiferença ou desprezo, mas hostilidade verbal e física: acusações, ataques, difamações ; cerceamento de movimento e ação (espinhos o cercarão); agressão física onde se encontrar (escorpiões).
Dentro dessa situação não se percebe aqui nem sequer o apoio que um Jeremias recebeu (1.8: … eu estou contigo para te livrar). Apenas a exortação não temas!. Contudo, a relação entre o v. 6 e o 7 mostra que Ezequiel não é deixado sem ajuda. O v.7 deve começar com mas ou em vez disso. Como é que Ezequiel superará o medo frente à hostilidade dos que devem ouvi-lo? Não, fugindo. Não, com a esperança de um eventual sucesso posterior. Nem sequer, com a promessa do auxílio de Deus. Ezequiel superará o medo pura e simplesmente cumprindo a incumbência de Javé. Poderíamos perifrasear assim: Em vez de temer, dize-lhes as minhas palavras!.
Ainda um detalhe relevante: Ezequiel não precisa mais do que dizer as minhas palavras. Não é de sua responsabilidade converter os ímpios e trazê-los de volta a Javé.Javé não lhe cobrara essa tarefa impossível, nem ele mesmo precisará cobrá-la de si próprio. Ezequiel deve dizer as minhas palavras – nada mais e nada menos.
O v. 8a exorta o profeta a não cair na mesma rebeldia dos seus compatriotas. Pela sua obediência, deve ele contrastar com o comportamento do povo. Ele, como profeta, de-ve ser assim como o povo não é. Com isso, deve ele ser o sinal de como seria o povo, se fosse obediente.
3,17-19 – O profeta como atalaia
O cargo do atalaia é muito bem descrito em 33.1-6, que todo intérprete do nosso texto deveria ler. Atalaia é aquele que, em caso de guerra, fica na espreita e deve alertar os habitantes da cidade, quando observar a aproximação de um ataque. Caso alertar e alguém desprezar o alerta, o atalaia está isento de culpa. Em não alertando, e ele o responsável pela desgraça.
No nosso caso, o profeta é que deve ficar na espreita, como um atalaia, e caso observar o ataque de uma palavra proveniente da boca de Javé, deve alertar. Assim, l7b explica o que é ser atalaia (17a). Já o v. 18 desenvolve a questão no sentido negativo e o v.19, no positivo. O texto é suficientemente simples e claro; dispensa, pois, maiores explicações e dá margem as seguintes considerações:
a) O profeta só tem a responsabilidade de dar o alerta ao destinatário certo; e isto, no momento em que perceber a ameaça da palavra.
b) A atuação do profeta não isenta os ouvintes de sua decisão individual.
c) O profeta não advertirá as pessoas a partir de critérios pessoais de qualquer ordem. Só advertirá se ouvir da minha boca uma palavra.
d) Vida ou morte das pessoas dependerão da advertência do profeta. A decisão última é do indivíduo. Mas este não poderá decidir-se, se não tiver ouvido o alerta.
e) Nada é dito sobre o conteúdo da advertência. Ele deve ter algo a ver com a rebeldia da qual falava 2.3-5. De qualquer forma, o fato de ser feita ainda uma advertência deve ser visto como expressão da fidelidade de Javé apesar de tudo, como sinal da sua paciência, como um ato de graça.
II – Conteúdo teológico e atualização
A perícope, assim como nos é sugerida, com os dois blocos, apresenta três núcleos temáticos. Para cada um deles poderia ser extraído um escopo próprio. A seguir serão desenvolvidos os três núcleos, com suas possibilidades de atualização:
1o) O e n v i a d o. Caberia aqui desenvolver aqueles pontos que são fundamentais para a existência profética e que aparecem em nosso texto: o profeta é enviado por Javé (2.3) a determinados destinatários (2.3); sua tarefa é falar (2.4 e 7); ele deve falar o que vem de Javé (2.4);seu dever consiste em simplesmente dizer as minhas palavras (2.7) ; não deve contar com sucesso, mas com insucesso e hostil idade (2.6); o profeta superará o medo eventual diante dos destinatários unicamente pela obediência pura e simples à incumbência recebida (2.7). No curto espaço de uma prédica nem será possível elaborar todos esses pontos. Será preciso selecionar os acentos. Na atualização será preciso perguntar como e até que ponto a comunidade e o indivíduo cristãos podem ser considerados como enviados. Não deve ser difícil demonstrar que o discípulo de Cristo é por ele enviado. Feito isto, os pontos arrolados acima poderão ajudar a compreender toda a dimensão do ser enviado. Talvez pelo acúmulo de assunto que tudo isso representa seja mais aconselhável concentrar-se num dos dois núcleos temáticos seguintes.
2o) O a t a l a i a. Aqui caberia desenvolver essencialmente o que encontramos em 3.17-19, podendo-se, para tanto, desenrolar os pontos a) até e), expostos acima, nas considerações exegéticas. Este núcleo temático poderia ajudar a levar uma comunidade cristã a refletir sobre seu papel. Função de Ezequiel era auscultar e alertar, quando percebesse que a vontade de Javé representava condenação e juízo sobre alguém. Não tem a comunidade e o indivíduo cristãos, a partir de sua fé, uma função semelhante? O pregador não terá dificuldade em demonstrar que uma tal função efetivamente lhes cabe. Bastará apontar, por exemplo, para o chamado ao arrependimento, que vem do NT. Mais ainda: a própria ação salvadora de Cristo, se de um lado representa graça, de outro significa juízo justamente sobre as situações das quais ele redime. Se a comunidade cristã prega a Cristo, deve pregar também o juízo que ele representa. Cabe-lhe, pois, uma função de alertar, semelhante à de Ezequiel. Por isso, 3.17-19 podem ajudar uma comunidade a entender melhor o que ela deveria ser e fazer. Por saber a respeito de Deus e de sua vontade, uma comunidade cristã sabe mais do que a sociedade em que se encontra. A partir deste seu saber mais deriva-se seu papel de atalaia para a sociedade. A partir daí deve â comunidade cristã auscultar onde a vontade de Deus, que se revelou em Cristo, arremete contra a situação vigente. Desnecessário citar exemplos. Todo pregador deve ser capaz de detectar, na situação local e nacional, aqui Io que não condiz com a vontade de Deus.
Num ponto, porém, a comunidade cristã difere fundamentalmente de Ezequiel. Ao mesmo tempo em que é atalaia, a comunidade não deixa de ser também ouvinte do alerta. Seu papel é duplo, e ela deverá ter a humildade de reconhecê-lo, deve saber-se no mesmo nível que a sociedade, como destinatária do alerta – e deve demonstrar a sociedade como se reage ao alerta.
Com tais elementos, este núcleo temático, se bem desenvolvido, pode transformar-se numa prédica bastante atual e palpitante.
3o) A fidelidade de Deus. Pela atuação de Ezequiel, os israelitas deveriam perceber que Javé foi ao seu encontro, através de um profeta (2.5); mostrava-se nisso a fidelidade do Deus que percorreu longa história com esse povo (2.3), e cuja dedicação sempre de novo colheu rebeldia (2.3.5.6.7).(Mais detalhes na exegese de 2.3-5.) Uma prédica em torno desse núcleo temático poderia desenvolver-se através dos seguintes pontos:
a) Olhando ao nosso redor, vemos que vivemos uma situação sob o juízo. Exemplos disso são as inúmeras adversidades que vivemos e presenciamos, especialmente nas relações entre as pessoas, os grupos sociais e as nações, mas também na relação entre os homens e as demais criaturas. (A prédica deve ser muito concreta neste ponto.) Tais fenômenos são fruto do desgarramento, da desobediência. Eles acontecem quando o homem age por própria conta, sem o norteio da vontade de Deus, pois ao afastar-se de Deus ele se afasta do seu semelhante e das demais criaturas.
b) Já houve situação idêntica. Durante o exílio babilônico os israelitas viviam também numa situação sob o juízo, fruto de sua desobediência. Com seu Deus tinham percorrido uma história de constante decadência, e encontravam-se agora numa situação sem perspectivas. Aí aparece o profeta Ezequiel.
c) Leitura do texto.
d) Ezequiel personifica a fidelidade de Javé. Nele o Javé desprezado corre atrás dos que o rejeitaram. É como se o pai do filho pródigo fosse procurá-lo, entre os porcos, para propor um novo começo. (Desenvolver aqui os pontos mencionados nas considerações exegéticas sobre 2.3-5.)
e) Para nós, que vivemos também em situação sob juízo, Deus demonstra igualmente sua fidelidade. Deus também corre atrás de nós. Mas conosco é diferente. Não recebemos apenas o envio de um profeta-atalaia, de alguém que reafirma a vontade de Deus. Nós recebemos a vinda de Cristo que, pela sua entrega, também nos habilita(!) à obediência, torna-nos aptos para obedecer. Também neste ponto a prédica deverá ser muito concreta. Ela poderá terminar por aqui, não sem antes reafirmar a fidelidade deste Deus que corre atrás de nós. Lançando mão do núcleo temático anterior, poder-se-ia lembrar aqui ainda que o alerta do atalaia não isenta o ouvinte de um ato consciente e decidido de conversão. O mesmo deve valer também aqui: a fidelidade de Deus é graça imerecida, mas quer uma resposta decidida e consciente.