Prédica: Filipenses 3.12-16
Autor: Lindolfo Weingärtner
Data Litúrgica: Domingo de Confirmação
Data da Pregação: 03/04/1977
Proclamar Libertação – Volume: II
Tema: Confirmação
I– Texto
NĂŁo que já (o) tenha alcançado ou que já estivesse perfeito. Mas toco adiante, a fim de alcançar o alvo – uma vez que fui alcançado por Cristo Jesus.
Irmãos: ainda não creio que tenha chegado ao alvo. Mas uma coisa (está certa): Esqueço o que está atrás (de mim) e estendo-me àquilo que está em minha frente. Corro em direção ao alvo, o prêmio da vocação de cima, que parte de Deus em Jesus Cristo.
Assim, todos que somos perfeitos, sejamos conscientes disso. E caso em algum ponto tiverdes opinião diferente, Deus também vos revelara aquilo.
Apenas – quanto ao que temos alcançado – vale: viver de acordo!
II- Contexto
A perĂcope, um recorte nĂŁo muito satisfatĂłrio, cuja brevidade sĂł se justifica por motivos práticos, deve ser entendida a partir dos versĂculos antecedentes: O apĂłstolo, desde o seu encontro com Cristo, passou por uma transmutação total de valores, por uma revolução tĂŁo radical(por que nĂŁo dizer: por uma crise de identidade fundamental), que nada ficou de sua vida passada, em que, no presente,se pudesse apoiar, que lhe pudesse servir de ponto de orientação. Ele rompeu com seu passado: o que lhe fora saldo posi-tivo, se lhe tornou negativo – por causa de Cristo. O termo, com o qual qualifica os valores do passado (skybala -excrementos – m….) implica em rejeição total, em Ăłdio a si mesmo. (Freud compreendeu parte do assunto que está sendo visado em JoĂŁo 12,25 e Lucas 14,26, interpretando-o dentro de seus horizontes, que nĂŁo sĂŁo os de Cristo). Mas este Ăłdio nĂŁo o deixa paralisado, a roer as suas mágoas, a consumir-se em frustrações e negações estĂ©reis. A sua vida recebeu novo orientação e novo conteĂşdo em Cristo.
O cantus firmus, que passou a dominar a sua vida, se acha formulado no hino de Cristo, no capĂtulo 2,5-11. A vida do Cristo passou a ser a sua vida. A comunhĂŁo com os seus sofrimentos, o ser conforme a sua morte, simultâneo â experiĂŞncia do poder de sua ressurreição, sĂŁo o conteĂşdo e a razĂŁo de ser de sua existĂŞncia e de sua luta. Assim, o alvo que pretende alcançar, nĂŁo Ă© nenhuma coisa nebulosa ou indefinida – nenhuma saudade idealista de perfeição espiritual. O alvo Ă© a ressurreição dentre os mortos (vers. l!) – nĂŁo, como o ex-fariseu o havia imaginado – mas mediante a fĂ© em Cristo. E uma dialĂ©tica sui generis :Paulo persegue um alvo que já o alcançou, que já tomou conta dele. O alvo Ă© a nova vida plena, que o Cristo conquistou e que os que lhe seguem, haverĂŁo de alcançar, apegando-se a ele.
III – Situação
Parece evidente que entre os leitores da carta se encontravam pessoas que se consideravam perfeitas, prontas, Ă maneira de correntes existentes na comunidade de Corinto. Pessoas que se orientavam no prĂłprio passado, cristĂŁos realizados, cujos mĂ©ritos, reais ou presumidos, os convidavam a acomodar-se no presente. NĂŁo se pode excluir que o apĂłstolo tambĂ©m tenha visado cristĂŁos que já se consideravam ressurgidos (II Tm 2,18: asseverando que a ressurreição já se realizou). Para eles, a pregação de Paulo representa uma verdadeira ducha fria. Se ele, o fariseu imaculado e zeloso de outrora, considerava o seu passado uma mácula e uma perda – quem poderá ter a cara para apoiar-se em alguma coisa sua, em mĂ©ritos acumulados no passado – em justiça prĂłpria, afinal! – Mas o tenor da perĂcope nĂŁo Ă© a condenação de atitudes do passado, nem a confissĂŁo de imperfeições do presente. É convite a prosseguir rumo ao alvo, com a bĂşssola norteada em Cristo.
IV – Considerações exegĂ©ticas
V.12: Será essencial que vejamos este versĂculo em conexĂŁolĂłgica com o antecedente. Tal já será necessário por motivos formais e estilĂsticos. O verbo katantao (alcançar, chegar), usado no versĂculo 11, Ă© da mesma categoria dos verbos lambano, katalambano (tomar conta, alcançar) e dioko (prosseguir) , empregados no versĂculo 12: Implica movimento em direção a um alvo que por ora ainda se acha fora de alcance. Este alvo está claramente definido no vers. 11: É a ressurreição entre os mortos. – É difĂcil compreender–se que haja exegetas que tacitamente ignoram o vers. 11 (Manfred Mezger, Göttinger Predigtmeditationen 1962,8, nem o menciona: elabon hat kein Objekt und braucht keines). A consequĂŞncia será, quer que o exegeta queira, quer nĂŁo, que os versĂculos de nosso texto adquiram um caráter indefinido, que pairem no ar, suscetĂveis a muitas interpretações – seja no sentido de uma filosofia de vida cristĂŁ, de caráter idealista, seja no sentido de Lessing, que nĂŁo quis alcançar ou possuir a verdade, contentando-se com a eterna procura da mesma. Certamente nĂŁo nos será permitido apoderarmo-nos do alvo, em antecipação indevida Ă vocação de cima. Nem o pintaremos com cores apocalĂpticas, nem o definiremos como um cĂ©u platĂ´nico, que haveremos de alcançar apĂłs a dura luta neste mundo material. O que valerá,`’e que nos movamos dentro dos horizontes cristolĂłgicos do apĂłstolo – caracterizados por sobriedade e esperança – pela vocação de cima, que parte de Deus em Cristo Jesus. NĂŁo deixaremos de ver, em nenhum caso, que nosso correr, que visa alcançar o alvo da ressurreição, se baseia no fato que já fomos alcançados por Cristo – aquele Cristo que já consumou a corrida – que em verdade representa o alvo. O ainda nĂŁo, assim, nĂŁo implica sĂł incerteza humana; implica antes o reconhecimento de que estou sendo moldado, que vou sendo aperfeiçoado por Deus em Cristo; e o fato de Cristo me ter alcançado Ă© a garantia de que esta obra de Deus, que se manifesta em meu buscar e em meu correr, será consumada – que a procura nĂŁo Ă© um fim em si mesmo,mas que o alvo será alcançado.
Vv.13-14: O apĂłstolo nĂŁo banca nenhum ser agraciado,que por mero acidente ainda se encontra nesta terra imperfeita. Ele confessa: Ainda nĂŁo alcancei o alvo. Isso nĂŁo quer dizer: Uma distância geográfica ou um espaço de tempo ainda me separam da vida plena em Cristo. Quer dizer: Ainda sou pecador, criatura imperfeita, ambĂgua, totalmente carente da nova criação que em Cristo Jesus se realiza. Mas uma coisa ele deixa bem clara: NĂŁo se compraz com uma atitude confortável de agnĂłstico, que se aninha na realidade incontestável do seu ainda nĂŁo. Ele toma posição. Volta-se decididamente do seu passado, qualificado por mĂ©ritos mais ou menos questionáveis, estendendo-se para aquilo que está em sua frente (a saber, a vida plena em Cristo). Ele nĂŁo Ă© nenhum tronco ou pedra, passivo e insensĂvel ante a mĂŁo do divino artista que o molda a sua imagem. Ele se enquadra, se norteia conscientemente rumo ao alvo, ao escopo (kata_skopon). Ele quer esquecer – ele quer correr: e o que assombra Ă© que este seu correr e seu agir nĂŁo obscurecem a ação de Deus, a vocação de cima, que parte de Deus em Cristo Jesus.
V. 15: O termo perfeitos(teleioi)no vers. 15 será ironia? Bem poderĂamos imaginar que o apĂłstolo tivesse colocado a expressĂŁo entre aspas – caso houvessem sido uso no grego. Mas Ă© bem possĂvel que Paulo entenda o termo na dialĂ©tica entre o já e o ainda nĂŁo: Os perfeitos (teleioi contĂ©m a palavra telos = alvo!) se caracterizam por saberem que ainda nĂŁo sĂŁo perfeitos em si – que o sĂŁo unicamente por se apegarem a Cristo. V.15b: O cantus firmus dos que seguem a Cristo, em demanda do alvo, permite o contraponto de melodias individuais, contanto que sejam disciplinadas, e sincronizadas com o cantus f irmus – por Deus.
V.16: A semântica usada neste versĂculo parece estática – estranhamente divergente do dinamismo dos versĂculos precedentes. Mas precisamos considerar que o verbo ephtasamen (alcançamos) Ă© aoristo. Indica um inĂcio – nĂŁo uma posição assumida. O versĂculo basicamente diz a mesma coisa que os precedentes: Em nossa vida mantenhamos a direção em que fomos colocados por Deus em Cristo.
V – A nossa situação
Conforme a previsĂŁo dos editores, o nosso texto deverá servir de base para uma prĂ©dica de confirmação. A primeira vista parece uma perĂcope feita sob medida para tal oportunidade: o jovem, que ainda tem a vida pela frente, se vá compreendido por um apĂłstolo muito humano, que nĂŁo se agarra a nenhuma tradição, que nĂŁo se acomoda, que entenda os anseios mais profundos do jovem, o qual partiu para a longa jornada da vida, a procura de horizontes distantes . . .
Este será justamente o recife submerso, no qual o barco do pregador poderá encalhar. A procura de um ponto de contato, de ligação (Anknuepfungspunkt) entre o texto e a realidade biolĂłgica do ouvinte poderá deixar os jovens acomodados em seu ritmo de vida natural, em seus anseios peculiares a sua faixa etária, poderá idealizar o que nĂŁo Ă© e o que nunca será ideal: a vida humana natural – com sua primavera, seu verĂŁo, seu outono – e com seu inverno: seu declinar na morte. A tentação de confundirmos a realidade carnal, existencial, histĂłrica de nossos ouvintes com sua realidade pneumática e soteriolĂłgica se torna especialmente grande, porque a expectativa da comunidade (a prĂ©-compreensĂŁo existente) costuma seduzir o pregador a enveredar por caminhos condicionados pela biologia e pela psicologia: VocĂŞs, jovens, ainda estĂŁo no inĂcio da caminhada. Ainda nĂŁo alcançaram a meta. VĂŁo passar por muitas tentações e por muitas lutas atĂ© chegarem ao alvo distante. Mas Ă© isso que o jovem quer. Vejam como o apĂłstolo conhece os anseios de moços como vocĂŞs… – Se nĂŁo quisermos trair o texto, deveremos deixar claro que o ser jovem ou ser adulto nĂŁo tem a ver nada com a corrida e com o alvo a ser alcançado – que tanto o adulto como o jovem vĂŁo sendo colocados por Cristo em um novo caminho – o do discipulado -cuja meta fina Ă© a vida plena em Cristo, consumada em sua ressurreição, e a ser consumada em nossa prĂłpria ressurreição. SĂł neste caminho o ainda nĂŁo e o já terĂŁo a validade que nosso texto lhes confere.
VI – Sugestões para a prédica
Contemos a historia de FernĂŁo Dias Pais Leme (bandeirante do sĂ©culo 17)i o caçador de esmeraldas: Ele tinha ouvido falar de uma imensa jazida de esmeraldas, existente numa serra perdida nas matas do Brasil central. Um sonho, uma obsessĂŁo se apoderara dele: Preciso descobrir as pedras preciosas, custe o que custar! – Ele se põe Ă frente de bandeiras, que passam anos a fio no sertĂŁo bravio, enfrentando perigo, doença e morte, Ă procura do tesouro fabuloso. Velho e exausto, afinal encontra uma mina de pedras verdes, que julga serem esmeraldas. Morre na ilusĂŁo de afinal ter realizado o grande sonho de sua vida – embora seus companheiros desiludidos já tenham descoberto que a jazida nĂŁo continha esmeraldas, mas sim, pedras verdes, sem valor. – Um sonhador, um idealista, destinado a falhar, porque se agarra a um ideal irreal, sĂł existente em seus sonhos e anseios.
Maldita a vida, que promete e falta (Guerra Junqueiro).
Passamos a vida a buscar e a perguntar – atĂ© que nos tapem a boca com uma pá de terra. Mas aquilo será resposta? (Fr. Nietzsche).
(AnknĂĽpfung im Widerspruch – a ilustração mostra o que a corrida da fĂ© nĂŁo Ă©) – Jesus Cristo tambĂ©m põe os homens em movimento. NĂŁo os deixa satisfeitos consigo mesmo, realizados com seu prĂłprio trabalho, suas inclinações, seus hobbies. Exemplo: os discĂpulos que chama para lhe seguirem: Deixam as redes, deixam sua vida antiga, deixam tudo que os amarrara ao passado – para seguir a Jesus e para a-nunciar o seu evangelho. NĂŁo serĂŁo eles semelhantes ao caçador de esmeraldas?
Vejamos o caso do apĂłstolo Paulo: Ele já tinha sido um corredor antes de seu encontro com Cristo. Mas ele tinha corrido numa direção errada. Tinha corrido, seguindo o seu prĂłprio coração, que ainda nĂŁo tinha sido iluminado pela fĂ© em Cristo. Sua vida, assim, tinha sido marcada pelo fanatismo e pelo Ăłdio. Ele julgara que era dono da verdade, que tinha tudo, que estava cumprindo a vontade de Deus. Era um fariseu – e os fariseus, tanto no tempo de Jesus como em nossos tempos, sĂŁo os que pensam que já chegaram ao alvo, que sĂŁo perfeitos – ou que sua corrida nĂŁo precisa de orientação nenhuma – já que eles tĂŞm a orientação em si mesmos, em sua vida antiga, em sua prĂłpria justiça. – Foi a um tal homem que Jesus se pĂ´s no caminho, fazendo-o parar e acabando de vez com sua vida antiga. Depois de seu encontro com Jesus, a vida de Paulo mudou. Mudou para valer mesmo. Antes ele tinha agido como se ele mesmo era o dono da verdade. Agora descobre que Cristo Ă© a verdade,que a verdadeira vida sĂł se encontra com ele. Antes ele tinha bancado o mestre. Agora se transforma em aprendiz. E sabe que devera ser aprendiz por toda a sua vida. A sua fĂ© em Cristo, a sua convivĂŞncia com ele e com o povo de Jesus -lhe ensinam que ele nĂŁo poderá parar nunca, satisfeito e acomodado, como se já tivesse chegado ao alvo. Apesar de já viver nesta nova vida, marcada pelo perdĂŁo e pela graça,ele que ainda nĂŁo chegou ao alvo. Sabe que ainda nĂŁo temo que Deus lhe quer dar no fim da corrida. Sabe que continua um homem fraco e falho. Diz, em sua carta aos Filipenses:NĂŁo que já o tenha alcançado ou que já estivesse perfeito. Mas toco adiante, a fim de alcançar o alvo – uma vez que fui alcançado por Cristo Jesus. Notamos que Paulo nĂŁo olha mais para trás. Ele mesmo nĂŁo precisa. NĂŁo precisa mais ligar o prĂłprio passado. Cristo lhe perdoou as falhas de ontem. Paulo nem liga as falhas e fraquezas do presente (que eram muitas; ele era um homem adoentado e idoso). Liga Jesus Cristo. E sĂł. Corre para a frente, em direção ao alvo: a vida plena em Jesus Cristo. E aquele alvo nĂŁo Ă© uma coisa sonhada. Ele já sente o poder daquele alvo, que já tomou conta dele – como ele diz: que já o alcançou.
Há um dia em nossa vida em que Cristo tambĂ©m nos alcança; em que nos chama para desistirmos de seguir os nossos sonhos de grandeza e de realização prĂłpria; em que nos convida a lhe seguirmos, em fĂ© e obediĂŞncia. Será o dia de hoje? O dia da confirmação pode ser a grande oportunidade de nossa vida de aceitarmos o caminho de Cristo e de prosseguirmos orientados por seu evangelho. Deus nos quer confirmar neste caminho da fĂ©. Quer dar uma orientação clara a nossa vida. NĂŁo quer que corramos sem alvo, a toa, ou que nos deixemos levar por qualquer onda ou bossa – ou que nos acomodemos, como faz tanta gente, jovem ou idosa, que já nĂŁo quer nada com nada.
Claro que nĂłs nĂŁo podemos programar o dia em que Deus nos encontra e em que nĂłs nos deixamos alcançar por ele. É um milagre, quando acontece o que aconteceu com Pedro, Tiago, JoĂŁo e Paulo. É um milagre, quando uma Sandra e um Juliano, uma Cláudia e um Ricardo se dĂŁo por achados e entregam sua vida a Cristo. Mas nĂłs podemos ficar com os ouvidos e com o coração abertos – prontos para o milagre, desejosos que ele aconteça. E Ă© bom sabermos que nĂŁo precisamos ir ao longe, ĂŁ procura de um Cristo distante. Cristo está muito perto de nĂłs. Ele está agindo entre as pessoas que nos rodeiam. Poderemos ter a certeza que o seu evangelho nĂŁo nos vai deixar em paz. Que vai fazer arder o nos-so coração, quando nos desviarmos para caminhos que nĂŁo dĂŁo em lugar nenhum – sombra e água fresca que o dinheiro promete, honrarias e posição social, com as quais nossa ambição nos engana. O evangelho de Cristo nĂŁo nos vai deixar em paz, nesta falsa paz, em que o homem tĂŁo facilmente se vai acomodando. Pelo evangelho de Cristo, Deus quer nortear a nossa vida para um alvo definido e claro. Um alvo que sĂł será revelado totalmente na ressurreição, na vida plena do novo mundo de Deus. A bĂşssola – cada um a recebeu por Deus mesmo. Ela foi sensibilizada no tempo da doutrina. NĂŁo joguem essa bĂşssola fora. Deus nĂŁo quer que vivamos uma vida sem rumo. Cada um de nĂłs foi chamado para viver uma tal vida norteada por Cristo. Nada importa que sejamos imperfeitos ou fracos. Os discĂpulos de Jesus tambĂ©m foram. O que importa Ă© que fiquemos no caminho da fĂ©, junto com muitos outros – que nĂŁo tiremos o olhar daquele que vai em nossa frente, que garante que chegaremos ao alvo que Deus preparou para aqueles que o amam.
Proclamar Libertação 02
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia