Prédica: João 4.31-38
Autor: Heinz Ehlert
Data Litúrgica: Dia de Ações de Graças
Data da Pregação: 14/08/1977
Proclamar Libertação – Volume: II
l – Considerações exegéticas
A tradição do texto da perícope não apresenta maiores problemas. O aparelho crítico não traz variações dignas de nota em relação ao texto g rego na edição de Nestle (16ª. Edição).
O contexto é o seguinte: Jesus, conforme relato neste quarto capítulo, se encontra na Samaria, de passagem (da Judéia para a Galileia). Nos vv. 1-30 é narrado o célebre diálogo de Jesus com a mulher samaritana na fonte de Jacó. Este diálogo veio a causar admiração aos discípulos: Um rabino não faria tal cousa(v.27). Esta conduta inconvenientes no entender dos discípulos, porém, não os leva a formular uma crítica ou pergunta sequer. A mulher, em virtude do dialogo havido, tem muita pressa em chegar a cidade para contar a sua experiência, deixando até o seu cântaro ali na fonte vv.28-29). O fato de lhe ter falado, de conhecer o seu passado e de se referir ao Messias, levou a mulher à pergunta: Será este, porventura, o Cristo? O fluxo da narração é interrompido com o v. 30. Os vv. 39-42 completam o relato sobre a mulher samaritana, contando as consequências do testemunho dela.
O trecho a estudar representa um interlúdio. A ligação com o anterior encontramos no convite dos discípulos a Jesus para comer. É que os discípulos se haviam ausentado justamente para a cidade de Sicar para comprar alimentos (v.8). Na volta encontraram Jesus falando com a samaritana.
Comida será o conceito chave para desenvolver o diálogo seguinte. Mas o conteúdo da exposição de Jesus não está diretamente relacionado com o acontecimento contado.
Se a conversa de Jesus com a mulher samaritana causou admiração e até estranheza aos discípulos, agora eles terão mais um motivo para se admirar: Jesus declina de comer. Justifica alegando que tem outro tipo de comida que os discípulos não conhecem. A maneira um tanto enigmática de se expressar serve para desafiar a atenção e a imaginação deles. Logo eles também começam a conjeturar entre si: Será que alguém lhe trouxe algo para comer? Mas isto não pode ser! A reação mostra que a imaginação deles não é capaz de se desligar do alimento físico para satisfazer a fome do corpo. O autor mostra que Jesus precisa continuar para tornar compreensível a sua mensagem.
Teria Jesus menosprezado o alimento físico? Teríamos aqui um indício de que Jesus sugere um ascetismo, isto é, uma vida que se caracteriza por privações, jejuns, abstinências? O testemunho do Novo Testamento é outro. O próprio Evangelho de João mostra Jesus num casamento (cap. 2) e conta a multiplicação dos pães (cap. 6). Não pode, pois, ser esta a intenção de Jesus.
Ele aponta para a vontade de Deus (v. 34). Aos que estão preocupados com a comida como meio de sobrevivência parece querer indicar que há outra razão de ser da nossa existência. Existe algo que mais do que a comida física é necessário para a vida. Aqui caberia a lembrança de Mt 4.4: Não só de pão viverá o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus.
Fazer a vontade daquele que me enviou e completar a sua obra lembra o ministério e a missão de Jesus. Sem se referir, perante os discípulos, ao que tratou com a samaritana, Jesus com estas palavras fala do mesmo assunto: Ele é o enviado de Deus para completar a obra de Deus, proporcionar verdadeira vida aos homens. Deus agiu no passado. Ele é o criador de todas as cousas. Também da vida do homem, da comida que o alimenta e sustém. Mas a sua obra não está no fim. Enviou o Filho para a obra da redenção. Esta é esperada do Messias por judeus e samaritanos.
Esta obra envolve inclusive os discípulos. Participar nela representa a sua missão. Podemos dizer que com o v.35 Jesus passa a explicar o ministério dos discípulos. Este ministério tem o dele como premissa. Deus agiu, Jesus agiu e age – a ação dos discípulos deve seguir. Fazer a vontade daquele que me enviou não compete só ao Filho. Ele possibilitou a ação dos discípulos. Ceifa (v.35) – a comparação é sugestiva para a mensagem que Jesus pretende transmitir. Tempo de ceifa (colheita) é tempo de trabalho e de alegria ao mesmo tempo. Importante é reconhecer que o tempo da ceifa já chegou.1 Será que Jesus quis referir-se ao que ficou expresso na parábola do semeador dos evangelhos sinóticos (Mc 4.1-20; Mt 13.1-23; Lc 8.4-15), fazendo ver que ele mes¬mo semeou a palavra?
O trabalho dos enviados (dos ceifeiros) é mais recompensador. A eles cabe colher o fruto onde outros trabalharam antes (v. 38). Mas a alegria é tanto do semeador como dos ceifeiros. Do Senhor e dos seus enviados (v. 36).
Em que consiste esta ceifa? Quais são os campos que Já branqueiam para a ceifa? É o povo, são os homens, são as nações (Mt 28.19; Mc 16.15). Trazer-lhes a luz e vê-los iluminados, trazer-lhes a comida para a vida eterna e percebê-los alimentados, proclamar-lhes libertacão e vê-los livres, conduzí-los, enfim, ao Pai e enaltecer com eles a adoção de filhos, eis a alegria da ceifa. O mundo precisa disto, o mundo anseia por isto.
O ministério de Jesus na terra – consumado na cruz – criou as condições, possibilitou a ceifa.
Participar do trabalho já significa colher frutos para a vida eterna.
Não se pode ficar na preocupação pelo pão de cada dia quando o pão da vida é oferecido (Jo 6.35.48). Não se pode ficar absorvido na luta pela sobrevivência e perder a chance de participar da colheita escatológica, onde importe trabalhar na missão de Cristo: chamar e conduzir pessoas ao Pai que cria, salva, renova e santifica para a vida eterna.
Meditação
a. Reflexão meditativa sobre o texto
A perícope fala de comida, de ceifa, de semeador e ceifeiros. Esta sequência tornou, sem dúvida, o trecho sugestivo para uma pregação no dia da colheita. Em vista da pregação de Cristo, da mensagem da salvação, qual é o significado e o valor do trabalho, da luta pela sobrevivência, do fruto do trabalho?
Os discípulos saíram em busca de comida naquela cidade samaritana. Devemos imaginar que isto aconteceu depois de longa e exaustiva caminhada. Tal vez fazia tempo que tinham feito a última refeição. O próprio Jesus esteve cansado e certamente com fome quando descansou junto à fonte de Jacó, como descreve o evangelista. Arranjar comida teve, aparentemente, a aprovação dele. Mas no meio tempo, enquanto eles (parece que todos eles) buscam comida, Jesus tem oportunidade de dialogar com uma pessoa da Samaria.
Para surpresa desta mulher e nossa, a partir de uma coisa tão corriqueira como pedir um pouco de água para matar a sede resulta um diálogo profundo que trata do assunto mais palpitante: vida. A vida que é e que podia ser.
Quais são as esperanças e possibilidades de vida que os homens têm? Esta pergunta adquire um sentido muito especial em nossos dias, onde de um lado existe abundância exuberante e desperdício de comida, e de outro grande carência de alimentos e gente morrendo de fome. Num mundo onde em muitos lugares o crescimento da produção de alimentos não consegue nem de longe acompanhar a explosão demográfica. A comida, neste contexto, se torna uma preocupação prioritária. Ações como Pão para o Mundo, congressos mundiais que debatem o problema da fome enchem as manchetes dos jornais. Nós, na maioria dos casos, não sabemos nem o que é fome. E isto facilmente conduz a uma atitude de acomodação em dois sentidos: Não nos preocupamos com os milhões que morrem de fome ou que sofrem de subnutrição. Do outro lado aceitamos como natural que temos o suficiente ou mesmo superabundante, mesmo que isto custou o maior esforço de trabalho.
Esquecemo-nos facilmente que também o alimento físico é dádiva de Deus. A mensagem de Jesus no presente trecho, porém, quer evidenciar outra realidade.
É difícil para nós, como foi para os discípulos, compreender o que Jesus quis dizer. Ele mesmo não desprezou a comida. Pode-se até dizer que gostou de comer. E na oração que ensinou aos discípulos incluiu uma prece pelo pão de cada dia (Mt 6,11). Mas ao mesmo tempo adverte contra a ansiosa solicitude pela vida, dizendo: Buscai, pois, em primeiro lugar o seu reino e a sua justiça e todas estas cousas vos serão acrescentadas (Mt 6.33).
Parece que há uma coerência entre esta afirmação e a mensagem de nosso trecho. O trabalho pelo sustento, o cuidado pela produção de alimentos tem o seu lugar, também na vida do discípulo. Mas ele tem a ganhar ou perder mais do que esta vida física. E isto está intimamente ligado com a obra de Deus que o Filho veio completar. Esta é a mensagem primordial do Evangelho. A humanidade, hoje como outrora, precisa tão desesperadamente ganhar a outra vida, que Deus oferece, como busca a sobrevivência física. Mas que não só de pão vivera o homem não parece tão evidente por si. Existe, talvez, uma percepção disto, principalmente quando se tem pão fácil e em abundância. Mas que a busca do reino de Deus ajuda ao mesmo tempo a superar a fome e suprir as necessidades do corpo – esta lição todos temos que reaprender. Isto implica na disposição de modificar a nossa filosofia de vida e atentar para a vontade de Deus. Que esta aconteça é o mais importante para Jesus. Deve ser também o mais importante para os discípulos. Por quê? Porque ele é o criador. A vida – toda vida – depende dele.
O trecho em pauta não deixa nenhuma dúvida que Deus quer a vida eterna para os homens, Não só a física. Uma vida onde a luta pela sobrevivência foi superada pela vivência com Deus. Agora, neste tempo, de maneira ainda imperfeita e acompanhada de sofrimentos, mas, no reino eterno, de maneira plena.
Esta vivência com Deus que inclui aceitação, perdão dos pecados, consolo nos sofrimentos e esperança de vida futura, ao mesmo tempo representa participação na sua obra.
É tempo de colheita. Os campos branqueiam para a colheita – isto precisamos enxergar. Às vezes temos a impressão que não há mais fruto a recolher para a vida eterna, em nosso ambiente. Ou achamos que todos já se encontram de uma ou outra forma (numa ou noutra igreja) nesta vivência com Deus, ou sentimos que o nosso trabalho não recolhe fruto. Será que Jesus não repetiria as mesmas palavras sobre a colheita hoje? Quantos em nosso derredor ou quantos no mundo ainda não sabem nada deste outro tipo de comida de que Jesus falou, deste outro tipo de vida que ele mencionou? Qual e a esperança de vida que as pessoas, que grande parte da humanidade tem? Seja como for, a nossa impressão é menos importante do que a mensagem e incumbência de Cristo. Ele afirmou que existem os campos e que é tempo de colheita. Além disto, nos permite a participar, quer que trabalhemos com ele como ceifeiros. Isto, além de representar um grande privilégio, promete experiência de singular alegria. Aliás, vemos isto confirmado quando presenciamos como uma pessoa sai das trevas e entra na luz de Deus (por exemplo, da superstição e medo para a liberdade da fé), da escravidão do ódio para o alívio do perdão, da tristeza da descrença para a alegria da esperança em Cristo, do domínio das coisas deste mundo para a liberdade dos filhos de Deus.
Por isso a colheita, que nos enche de gratidão pelo fruto de nosso trabalho, que é dadiva de Deus, criador, ao mesmo tempo nos lembra a obra que Deus tem no mundo com os homens. O mais importante Cristo já realizou, quando morreu na cruz e ressurgiu dos mortos. Cabe a nos testemunhar este fato para que homens de hoje aceitem a vida que Deus oferece e que não se pode ganhar ou manter com a comida que perece. Mas que se pode ganhar e manter buscando a vontade do Pai .
b. Escopo homilético
Colheita e produção de alimentos são importantes e dão alegria, porque oferecem condições de sobrevivência. Existe uma comida que Jesus aceitou e proporcionou. Ela dá condições de vida com Deus. Repartir com os outros é nossa missão.
c. Indicações para a prédica
Sendo a festa da colheita, a pregação terá que aludir a este fato. Isto de maneira alguma violenta a mensagem do texto. Pelo contrario. É boa oportunidade para refletir com os membros, que talvez trouxeram frutos de seu trabalho ao altar, sobre o sentido de tudo isso, sobre o sentido de nossa existência.
Poderíamos começar constatando que uma boa colheita não é a coisa mais normal, mas a coisa mais desejada. A seguir analisar o que ela representa para o homem do campo em: investimentos, esforços (eventualmente decepções),esperanças, alegrias. Mostrar o lugar e o papel do homem e o papel de Deus na colheita, no produto de nosso trabalho. O lugar da gratidão que disto resulta. Nesta altura lembrar que nem todos têm o pão de cada dia e o que isto implica num dia de ações de graça e em vista do papel de Deus na colheita: O compromisso de repartir.
Apontando para as estranhas afirmações de Jesus no texto (vv.32 e 34), mostrar que o discípulo tem mais a ganhar e a perder do que esta vida física. Jesus conheceu e deu a conhecer uma comida diferente do que o pão para o corpo, tão Importante para nós. Esta afirmação aqui no texto não é uma afirmação isolada.
Encontramos muitas semelhantes entre as palavras de Jesus, A partir disto mostrar a outra vida que Deus tem a oferecer, em Cristo.
Finalmente falar do compromisso que daí resulta. Assim como devemos repartir o pão com os famintos, devemos repartir o que Deus em sua graça nos oferece: vida em sua comunhão. Explicar que a nossa missão é de ir aos campos, participando da colheita que ë de Deus. É claro que isto deve ser mostrado de maneira concreta. Cabe um testemunho de alegria sobre um fruto concreto de nossa ação missionária.
III – Roteiro para uma prédica
Tema: Alimentos para a vida
Introdução
I . Colheita e sobrevivência.
a) Deus e o homem na colheita
b) Gratidão, alegria e compromisso na colheita
II. Alimentos para o corpo e alimentos para a vida.
a) O que Jesus afirmou
b) O que os homens precisam
c) O que Deus fez em Cristo
III. Repartir os alimentos para a vida.
a) Os campos branqueiam para a colheita
b) Alegrias de ceifeiros
IV – Bibliografia
– BUECHSEL, Friedrich. Das Evangelium nach Johannes. In: Das Neue Testament Deutsch. 5a ed. Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1949
– BUELCK, Walter. Das Johannes – Evangelium und die Gegenwart. 2- ed., Hamburg, Agentur des Rauhen Hauses, 1948.
– LOEWE, Richard. Meditação sobre João 4,31-38. In: Eichholz/Falkenroth, eds. Hören und Fragen. Vol 5. Neukirchen- Vluyn,Neukirchener Verlag, 1967.