Prédica: João 6.37-40 (41-43) 44
Autor: Rolf Dübbers
Data Litúrgica: 20º Domingo após Trindade
Data da Pregação: 23/10/1977
Proclamar Libertação – Volume: II
I – Tradução
37 (Jesus lhes disse:) Tudo o que o Pai me da (ou:der) vira a mi m; e a quem vier ter comigo jamais repelirei,
38 Porque desci do céu, não para fazer a minha vontade, ruas a vontade de quem me enviou.
39 Esta é, pois, a vontade de quem me enviou: que eu nada de que me deu perca, mas que eu o ressuscite no último dia.
40 Esta, certamente, é a vontade de meu Pai: Qualquer um, vendo o Filho e crendo nele, tem vida eterna, e eu o ressuscitarei no ultimo dia.
41 Murmuraram então os judeus contra ele, por ter dito: Eu sou o pão da vida descido do céu!
42 E diziam: Este não é Jesus, o filho de José, cujo pai e mãe nos conhecemos? Como diz agora: Do céu desci!?
43 Respondeu Jesus e lhes disse: Não murmureis entre vós.' Ninguém pode vir a mi m se o Pai, quem me enviou, não o atrair; e eu o ressuscitarei no último dia.
45 Está escrito nos profetas: E todos serão ensinados por Deus, Quem ouve do Pai e aprende, vem a mim.
46 Não que alguém tenha visto o Pai; só quem é de Deus – este tem visto o Pai.
II – A perícope
Parece que o palco da passagem dentre a qual nossa perícope foi escolhida foi uma reunião em Cafarnaum (sinagoga, sem artigo, cf. v. 59, significa uma reunião fora do prédio sinagogal?) É necessário lembrar os ouvintes de hoje deste contexto local. A intenção do autor é evidente: Não devemos compreender o discurso de Jesus e o seu diálogo com os judeus como uma pregação colocada na boca de um Jesus posterior. O autor quer que se considere o ambiente, que se compreenda, pois, o que relata, como ocorrido e proferido dentro de um lugar e um tempo bem determinados, por
pessoas que se conhecem mutuamente: uma reunião, talvez numa sinagoga (prédio), em Cafarnaum, cidade na qual Jesus morava (2,12: Mt 4.13), na qual era um cidadão bem conhecido, ele mesmo como também seus pais; e um auditório que, apesar de murmurar, concordava com Jesus em muitos pontos, como por exemplo: a realidade de Deus, a inacessibilidade e invisibilidade de Deus. Concordava também com Jesus na convicção básica da teologia de Israel: Deus, apesar de jamais ser visto por alguém, tem falado por profetas. A meu ver, leria útil incluir na perícope os versículos 45s por dois motivos:
Um seria a referência aos profetas, contexto indispensável para compreender melhor o que é oferecido aos homens na pessoa de Jesus, porque este contexto, as letras sagradas de Israel, desconhecidas is comunidades dominicais de hoje, têm o poder de comunicar a sabedoria que conduz à salvação pela fé em Cristo Jesus (II Tm 3). Vejo o valor permanente destas letras sagradas na sua profunda teologia e na sua não menos profunda antropologia, indispensáveis para compreender o que é a salvação que o Pai oferece no e pelo Filho.
Outro motivo para incluir os versículos 45s seria a referência a importante humildade da teologia bíblica, tanto do AT como do NT: Ninguém jamais viu a Deus! Cuidado, pois, com afirmações humanas sobre o que Deus pensa e pode! Esta humildade faltou aos que murmuraram contra Jesus. Se entendo bem, um dogma teológico deles foi que o Divino, se aparecer na terra, jamais se revestirá de uma forma pessoal tão natural, tão histórica e tão humana dentro do vai-vem das gerações.
Não é aconselhável eliminar os versículos 41-43. Pois eles apontam para dois fatos importantes para o pregador de hoje: um é o quanto é levada a sério a existência carnal de Jesus, e o outro: contra Jesus surgiram protestos desde o início!
Sobre o uso problemático das perícopes escreve Bohren: Certamente não é por acaso que a falta de atualidade e o abstraimento da pregação contemporânea andam de mãos dadas com um afeto pelas perícopes.
III – Exegese meditativa
Parece-me de suma importância c o m o é levada a sério a existência histórica, a origem carnal de Jesus.'Será possível compreender o protesto dos primeiros ouvintes das afirmações de Jesus como susto sincero, ou já estarão zombando? Seja como for, ouvintes ou leitores posteriores desta passagem joanina poderão sentir certo alívio ao notar que já aos ouvintes de então aos contemporâneos de Jesus, não foi possível aceitar sem mais nem mesmo o discurso do filho de José e de Maria. Um cidadão cuja ascendência carnal não é posta em dúvida – nem por ele mesmo! – afirma: Do céu desci! Pode um homem de incontestada e incontestável origem histórica, e ainda tão modesta, ser o enviado, o representante, o executivo do céu? E dele depende a nossa sorte final? (Aliás, estamos passando pelas mesmas perguntas quanto à autoridade divina e a origem carnal dos documentos bíblicos!) Nossa perícope é um comentário observador e narrador do cerne da teologia joanina: Ho logos sarx egeneto! (1.14) Mas o Verbo não elimina a carne, nem a carne o Verbo, ou, com outras palavras: A Autoridade Divina fala e age no humilde filho do casal José e Maria. E age salvando, sanando como pão da vida a natureza humana de quem vier ter com o Filho, ouvindo e crendo.
Nesta mensagem esta o escopo da perícope: O Eterno se encontra entre nós no homem Jesus, o Divino na existência terrena deste filho de José, o Grande Distante está perto no próximo Jesus, o Pai invisível se tornou visível num co-cidadão nosso por nome Jesus. E a meta de sua descida não é salvar a Deus, mas servir de pão aos que se acham subnutridos e mal nutridos quanto a um comportamento agradável ao Pai e útil aos irmãos.
Mas, confrontando os ouvintes de hoje com esta perícope, o pregador se deve lembrar de uns pontos básicos nesta perícope que não foram problemáticos para os ouvintes de então, a fim de não exigir demais dos ouvintes de hoje, pois seria falta de sobriedade e de misericórdia. Ninguém se entregue a ilusões no tocante ao vácuo bíblico – não digo: vácuo religioso! – das nossas comunidades! Este vácuo bíblico não foi o mesmo em Cafarnaum. O abismo que se abriu entre o filho de José, de um lado, e os seus ouvintes de então, do outro lado, não nos deve levar a esquecer o que unia Jesus e este povo, apesar das murmurações. Já mencionamos convicções que tinham em comum. Repetimos e ainda acrescentamos: A fé na realidade de Deus, a certeza de Deus ter falado, a convicção de Deus ser capaz de conceder ao homem uma nova existência além-túmulo.Sobre estas convicções não houve discussão alguma na sinagoga em Cafarnaum!
Hoje, porém.,se deve considerar: Para aquele que nega a realidade de um Deus independente das leis da natureza e da história, a nossa perícope está ultrapassada; pois ele nega naturalmente qualquer descida de um ser de um céu imaginado por ordem de um Deus irreal. O reconhecimento consciente da realidade divina permanece a conditio sine qua non para estar disposto a ouvir perícopes como a nossa. É realmente assim como afirma a carta aos Hebreus que, uma vez perdidos os primeiros rudimentos dos oráculos de Deus, não conseguimos mais compreender a linguagem evangélica. E fé em Deus é, segundo a carta aos Hebreus, um dos artigos fundamentais, um ensinamento elementar a respeito de Cristo.
Creio que devemos ajudar o nosso povo, na sua pobreza teológica, a, se o Pai atrair os ouvintes, compreenderem melhor a salvação oferecida por Deus a todos no seu homem Jesus. A meta profunda desta salvação – Eu o ressuscitarei no último dia!- dificilmente será compreendida se crermos num Deus minimizado, não temido e não reconhecido por ninguém.
Mas como poderemos vencer a nossa pobreza teológica? Lembro o contexto teológico do NT: t o conceito de Deus no AT, principalmente como o encontramos no decálogo e nos profetas. Como é profunda a teologia do decálogo! Mas profundas são também a antropologia, a sociologia, a psicologia do decálogo! Seria uma boa e sábia atitude poimênica lembrar o que chamamos o primeiro mandamento do decálogo. Estaríamos assim de acordo com experiências da primeira cristandade: Sabemos, com efeito, que a lei é boa se for usada como uma lei (l Tm 1). Refiro-me à compreensão do Divino nas primeiras passagens dos Dez Mandamentos. Não há linguagem nem objeto que possa corresponder à grandeza divina. Segundo a teologia joanina, o próprio Filho declarou: O Pai é maior do que eu! Mas, conforme o testemunho apostólico, Jesus se compreendeu como Filho do Deus do decálogo. E a nossa perícope proclama a encarnação histórica do único Deus verdadeiro, Senhor permanente e independente no vaivém de mil gerações, em um cidadão da nossa terra. Fato interessante é que a nossa perícope não impõe a fé na concepção deste Filho no corpo virgem de Maria pela ação do Espírito Santo. Creio que esse fato pode ser mencionado, sem devermos pôr em dúvida a confissão e convicção da cristandade.
O fato da ação divina no Filho é proclamado sem violar a liberdade humana. Se fosse violada, as murmurações teriam sido logo sufocadas. Mas a censura, a crítica se levantou: Não duvidamos de que pode haver descidas do céu. Pois cremos que para Deus nada é impossível! Mas tu – tu és simplesmente um terreno.
Como Jesus enfrenta esta censura?
Ele salienta em primeiro lugar a ação indispensável do próprio Deus que o enviou: Ninguém pode vir a mi m se o Pai não o atrair! Mas ao mesmo tempo ressalta tanto a sua própria disposição de aceitar a quem se aproximar dele como também a responsabilidade do homem que dele ouvir. Depende ago¬ra do próprio homem se o enviado do Pai terá lugar na sua vida, se crê aprendendo e aprende crendo. A quem recusar ouvir, convém lembrar 3,36b!
As promessas dadas ao que aceitar o Filho são universais e ultrapassam, sem negá-la, a realidade amarga da morte.
O ato da fé não é, pois., segundo a teologia joanina, simples questão de boas disposições humanas. E obra de Deus. Requer a ação do Pai. Mas o mesmo ato exige também a ação do homem: aproximar-se daquele que merece esta confiança, que veio para ser próximo.
IV – Sugestões para a prédica
Eis a raiz verdadeira da tragédia universal: Deus se cala.' (Miguel de Unamuno, 1864-1936). Pode-se partir desta acusação do pensador espanhol e acrescentar considerações sobre as convicções do povo de Israel que pertencem também à fé da cristandade: Foi aos judeus que foram confiados os oráculos de Deus (Rm 3). E os próprios oráculos revelam que os pensamentos e caminhos de Deus se referem a todos os povos, e não somente o um único! Surgiu a acusação Deus se cala de uma omissão nossa? Silenciamos o fato de Deus ter falado e querer falar aos homens?
Nossa perícope proclama ainda mais: Somos convidados a aceitar o Filho de Deus que desceu do Pai. O que esta visita divina, na pessoa de Jesus, oferece ao homem ultrapassa o que Deus oferece ao homem pela natureza e pelo convívio humano. Oferece vida eterna.
A oferta é universal, mas não mágica! É graça divina ser atraído pelo Pai ao Filho, cidadão sem crime (Jo 18-19). Aliás, pergunte-se cada um o que ou quem o atrai?! Homem que não é atraído por isto ou aquilo não existe! Mas há atrações que prejudicam, arruínam. Cremos que fará bem a nossa natureza, ao nosso caráter sermos atraídos a Jesus. Mas depende também de nós, se nos aproximamos dele. O Pai de Jesus não viola a liberdade que nos concedeu. O que espera é antes de tudo: ver, vir, ouvir, aprender o que ele oferece à humanidade na pessoa de Jesus, homem verdadeiro.
Que está oferta divina não fica sem protestos orgulhosos e risadas da parte de homens teológica e sociologicamente seguros – a nossa perícope já o revela.
Mas o homem não espere que Deus peça desculpas aos chauvinistas, terroristas, teólogos desiludidos, cidadãos indiferentes à miséria humana, aos fariseus sem amor ao próximo e aos pecadores sem temor de Deus, etc., por ter resolvido visitar o mundo e agir mediante o Filho tal qual fez e continua a fazer. O homem fará bem em se lembrar sempre quão facilmente, para desgraça nossa e do nosso ambiente, somos atraídos por loucuras religiosas, políticas, filosóficas , por tantas vaidades masculinas e femininas. Desgraça é não ser atraído pelo Pai ao Filho. Graça é ser aproximado do Filho e permanecer, confiando, aprendendo, obedecendo, na comunhão com ele. Esta comunhão faz suportar as desgraças desta vida passageira e liberta das trevas do último dia.
O pregador deve tornar bem claro, suplicando sempre a colaboração do Pai, que não existe motivo justo para duvidar da tarefa salutar do Filho. Ele é qual pão e, como ser perfeitamente humano, está também perfeitamente a par da nossa situação humana.
O único perigo para nós, no caminho para a salvação, não parte nem do Pai nem do Filho. Está em nós mesmos. Seria unicamente uma falta de fome, uma comodidade íntima que diz: Comunhão minha com Jesus e dele comigo? Estou saciado! De nada mais preciso! (Lc 6.25; Ap 3.17).
V – Bibliografia
– BEA, Agostinho. A historicidade dos Evangelhos. Edições Paulinas,1967.
– BOHREN, Rudolf. Predigtlehre. Chr. Kaiser,1971
– FEUILLET, A. O Prólogo do Quarto Evangelho. Edições Paulinas, 1967.
– HEINTZE, Gerhard. Meditação sobre João 6,37-40(41-43)44. in: Eichholz/Falkenroth , eds . Hören und Fragen. Neukirchener Verlag,1967.
– SCHLATTER, Adolf. Der Evangelist Johannes. Calw,1930.
– SCHLATTER, Adolf. Der Glaube im Neuen Testarnent. 5a ed., Calw, 1963.