Prédica: Lucas 19.1-10
Autor: Albérico Baeske
Data Litúrgica: 3º Domingo após Trindade
Data da Pregação: 26/06/1977
Proclamar Libertação – Volume: II
Preliminares
Se é preciso ter cuidado diante de qualquer texto, para não se repetir aquilo que a Comunidade já cansou de ouvir, então maior deve ser o esforço em relação a esta perícope, aparentemente conhecida, transparente e concreta.
A sua plasticidade atrai muito, pode envolver de tal forma que se torna difícil achar a saída para a sua atualização. A fim de transpô-la a nossa situação, acho necessário evitar os seguintes becos sem saída:
1) deixar que o v. 10 leve a discursos em termos sabidos até a exaustão a respeito da obra redentora de Cristo: todos somos perdidos; Deus, inconsolável e não querendo a morte do pecador, manda o seu Filho Unigênito para nos salvar no Calvário ensanguentado.
Além de se chatear os ouvintes, se aumentaria ainda a tua desilusão para com a Igreja se se tentasse convencê-los, dizendo simplesmente, mas com muito entusiasmo, que Christum cognoscere, beneficia eius cognoscere; reconhecer Cristo é reconhecer os seus benefícios (F. Melanchthon), sem que estes sejam, ponto por ponto, transcritos da presente perícope para o momento da sua proclamação num determinado dia dentro de uma certa Congregação, tanto moldada por uma conjuntura específica quanto moldadora da mesma;
2) entrar na apresentação de uma história de conversão, a mais refinada glorificação do homem. Existem diversos tipos desta encenação religiosa. Sem dúvida, a mais frequente na IECLB e esta:
Zaqueu se joga, por gosto e por ganância, e a qualquer preço, numa profissão abominável, que cada pessoa de bem e, sobretudo, piedosa, proíbe a si e aos seus: colaborar desavergonhadamente com as forças de ocupação na espoliação dos próprios concidadãos, a fim de enriquecer. Portanto, ele é moralmente aniquilado, separado dos outros para sempre como por uma parede invisível; seu simples aparecimento em público faz subir no povo, sedento de vingança, o puro ódio, faz cerrar os punhos atrás das suas costas e contar os dias até o seu extermínio completo.
O maioral dos publicanos, sensibilizado por tais consequências, enxerga aos poucos o seu estado pecaminoso; o coração, profundamente abalado, grita por salvação. A passagem de Jesus pela cidade o enche de esperança e o encoraja a vencer todos os obstáculos para vê-lo – e o Salvador não decepciona o desejo íntimo, persistente, do pecador contrito.
l -. A Personagem Central
1) Apenas quando Jesus, espontânea e surpreendentemente, olha para Zaqueu, o chama e se oferece para ir à casa dele, este chega a se conhecer de verdade. Antes foi como o Cavaleiro sobre o Lago de Constança, ignorante do perigo mortal de andar quilômetros a fio em cima do gelo. De Jesus depende tudo. Ele é o escopo da vida deste homem e de todos; é autor e consumador da fé (Hb 12.2). Sua iniciativa não pergunta por nossa disposição e preparação para recebê-lo, pois é criativa e suscita, inclusive, a estas.
2) Nisso uma pregação comprometida com a Teologia Reformatória necessita ser decididamente clara. Se não me engano, também neste ponto ela começa a ruir nas fileiras da IECLB. Por isso parece oportuno lembrar:
a) que, segundo M. Lutero, tão pouco alguém consegue crer em Deus a partir de si próprio, quanto crescer nesta fé e aperfeiçoá-la; ou, como afirma J. Calvino, o homem é tão incapaz para a fé como o burro o é para a sinfonia.
Mais ainda: Tudo o que empreendes é pecado e continua sendo pecado, por mais brilhante que seja; faze o que quiseres – não podes senão pecar (Lutero);
b) que o homem por si mesmo não tem a mínima ideia de que ou quem é Deus: ele brinca de cabra-cega com Deus, só erra e jamais acerta o golpe, denominando Deus o que não é Deus, e deixando de denominar Deus o que é Deus. Assim cai na burla, concedendo nome e honra divinos àquilo que lhe parece ser Deus, jamais acertando o Deus verdadeiro, mas sempre Satanás ou sua própria presunção inspirada por Satanás (Lutero).
Mais ainda: Non potest homo naturaliter velle, deum esse deum, imo vellet se esse deum et deum non esse; o homem natural não pode querer que Deus seja Deus; ele até quer que, embora Deus exista, Deus não exista (Lutero);
c) ao nos chamar à fé, Deus nos dá concomitantemente o próprio órgão receptor da fé: ele nos coloca o tesouro sobre a mesa – como Lutero gosta de dizer – oferecendo também a possibilidade de o tomarmos nas mãos; aquele que está disposto a dar o benefício (da fé), esse também cria a mão para recebê-lo (H. F. Kohlbrügge);
d) que f ides ex auditu; a fé vem do ouvir: Fé sem palavra (de Deus) não é válida. A fé não pode existir sem a palavra; e onde existe a palavra, também deve existir a fé. Pensando ou agindo incorres em erro; há somente uma situação em que não erras: quando ouves (Lutero);
e) que o crente confessa: eu não sei se creio, sei, porém, em quem eu creio (P. Althaus), em Deus que não nos pode esquecer, antes teria que se esquecer a si mesmo (Lutero) .
Por isso devemos agarrar-nos à palavra ainda que trevas nos envolvam e que tudo indique: essa fé será tua ruína, essa não é a verdadeira fé! Por que perguntar pela verdade ou falsidade de minha fé? Eu pergunto pela palavra! (Kohlbrügge). Pois a palavra é íntegra e pura, rica, reta, santa e alva, de sorte que o que a ela se prende, se torna tal qual a própria palavra: íntegro, puro, alvo, reto, santo, etc.. Como o ferro colocado no fogo se torna vermelho e adquire todas as qualidades do fogo, como o carvão, sendo preto, quando colocado no fogo se trona vermelho e adquire todas as qualidades do fogo, assim também ocorre com a fé, fazendo com que o homem fique totalmente limpo, pela palavra, penetrando e aperfeiçoando-o de modo que se conforme inteiramente com a palavra; e, como não se pode censurar a palavra, também não se pode criticá-lo a ele (Lutero).
II – Jesus e os murmuradores
Jesus é muito falado em Jericó. O povo começa a fantasiar a seu respeito (cf. 18.35ss). Sua passagem atrai todo mundo; a curiosidade impele as ruas e faz subir em árvores.
1) Jesus não fica embevecido pela presença da população inteira e do seu aplauso (cf. 18.43), não se faz jovial, misturando-se com o povo, nem se preocupa em como saudar as autoridades locais. Ele rejeita a imagem que se tem dele: pregador ambicioso e curandeiro das multidões. Triunfar sozinho e para si lhe é impossível. Ele segue o seu caminho, sóbrio e inabalável, com olhos abertos para os outros, para os totalmente diferentes.
Só pára ao ver aquele que em outras ocasiões é invejado, bajulado e solicitado devido a sua riqueza e influência e agora se vê forçado a subir a um sicômoro, empurrado para a periferia; aquele cuja culpa perante a lei de Deus e dos homens, cuja separação aberta e consequente exclusão silenciosa de Comunidade e sociedade estão sendo lembradas, e se sente que todos o consideram perdido, incorrigível, escória, verme. Jesus para e o chama pelo nome: Zaqueu/Zacarias, o Senhor recorda. Jesus chega para materializar esta recordação. Zaqueu de maneira alguma e esquecido. Ele é de-dicadamente procurado. Ele está à beira da estrada de Jesus, pois também é filho de Abraão, a quem Deus permanece fiel. Sua fidelidade é absoluta e supera a infidelidade de Zaqueu. Deus não está sujeito a afetividades; seu amor é de uma fiança imutável. Este o impulsiona a honrar Zaqueu a ponto de hospedar Jesus na sua casa. Pois Jesus só mora entre pecadores (Lutero).
Aqui nos é ilustrado qual é a maneira de ser de Deus, a saber, que ele olha cá para baixo. Não pode olhar para cima, pois não há nada além dele; não pode olhar para o seu lado, pois ninguém lhe é igual. Por isso olha apenas para baixo de si. Então, quanto mais baixo tu estás e quanto mais inferior tu és, tanto mais claro os olhos de Deus te vêem (Lutero). Isto Jesus vem exemplificar em Jericó: aponta em Zaqueu, o mais baixo e mais inferior, o amado de Deus, no monstro o homem, no inimigo o irmão, e o desafia (E. Lange).
2) Os habitantes de Jericó, descontentes e carrancudos em consequência das suas expectativas frustradas, murmuram. Eles apenas estão curiosos. Têm suas ideias sobre Jesus, mas não sabem quem ele é de verdade. E, mesmo ao observar como ele é, se consideram ainda preteridos per ele, em vez de en¬ganados pela própria fantasia. Continuam a achar ter direito à visita dele nas suas casas, em detrimento de Zaqueu. Estão convictos de que não convém a Jesus se hospedar com homem pecador. Com isso demonstram que pretendem dirigi-lo nas suas caminhadas.
Murmuradores que são, se escandalizam sobre a maneira de Deus se recordar e olhar para baixo. Consequentemente, desaprovam o resultado desta atitude, a saber: o perdido é buscado e salvo, o justo, porém, não (cf.31s; 19.10). Negam a divindade de Deus, que reside exatamente na derru¬bada de qualquer vanglória humana e na demonstração de que ninguém faz jus a sua graça. Desta feita os murmuradores são, sem o notarem, atingidos pela alteração das posições tradicionais: últimos virão a ser primeiros, e primeiros serão últimos (13.30).
Cegos são os habitantes de Jericó, finalmente, para o fato de que murmurar reflete a sua corresponsabilidade pela situação desastrosa de Zaqueu. Decerto este desejava ser publicano e fazer carreira na profissão. Mas, uma vez abraçada ela, não pode voltar atrás, os outros não o aceitam mais, se fecham perante ele e o obrigam a ficar consigo mesmo. Eles o identificam com o seu emprego, o pecador com o seu pecado (M. Link). Ninguém pergunta mais quem é Zaqueu, isto todo o mundo sabe (J. Tibbe). É quase inevitável que ele então, num instinto fanático de sobrevivência, jure: se os demais me julgam canalha, o quero ser também. Assim chegam a ser cúmplices de que ele permaneça aquilo que é e goste de o ser.
(Aí se levanta a interrogação vital a nós, os pregadores: Somos imunes ou abertos para Deus? Até que ponto estamos já acostumados com os seus feitos? Podemos ser surpreendidos ainda por ele? Nos damos realmente conta do assombroso de que o imoral e irreligioso ë o alvo de Jesus? Vemos na sua luz os capitalistas e os comunistas, os cristãos de quatro rodas e os ateístas, os membros incansáveis da Igreja e, não por último, a nossa própria religiosidade e moralidade? Resumindo: estamos nós tentados a murmurar?
Quer me parecer que esta reflexão existencial prepara melhor para a ousadia de confrontar a Comunidade com tal acontecimento que arrasa os aliceres da – como formulou certo presidente paroquial – nossa moral e religião.)
III – Hoje
Quando Deus decide se recordar de Zaqueu, não há tempo perder, i.vjm para Jesus nem para ele.
1) Jesus tem de ficar hoje em sua casa; por isso o intima: desce depressa! Deixá-lo para amanhã não dá, por causa de Zaqueu. Só existe um tempo importante para ele – e este é hoje. Hoje é de singularidade inextinguível. Unicamente hoje lhe é cedido prazo, outro não há. Agora mesmo, já, determina sobre ele para sempre. O que ora ê deixado nenhuma eternidade devolve. Se Zaqueu perde o dia de hoje, está definitivamente perdido.
Jesus se dirige a ele não cega e fatalisticamente, pois repara na vontade pessoal de Deus, a que se sujeita na vida e na morte. Nesta posição reconhece o seu plano salvífico com o mais inferior – e nisso o motivo da entrada (providencial, de verdade) em Jericó. Por meio da hospedagem comprova ao homem aquilo que este jamais tinha sonhado: ser recordado pelo próprio Deus.
2) Zaqueu, estupefato, desce a toda a pressa e recebe a Jesus com alegria. De uma só vez se lhe abrem os olhos para perceber, em tempo, que este está aqui apenas de passagem. Subitamente compunge-se-lhe o coração no sentido de que o Evangelho é como uma tromba d'água passageira (Lutero) . Lhe e dado aproveitar o instante decisivo. É sua experiência:
Não são meus os anos que o tempo me tomou. Não são meus os anos que possam chegar ainda. O momento (da presença de Jesus) é meu: e se eu tomo cuidado com ele, então é meu aquele que fez ano e eternidade. (A. Gryphius)
IV – Salvação
1) A hospedagem de Jesus traz a Zaqueu salvação, aqui e agora.
a) O maioral dos publicanos é salvo do seu passado. Jesus o perdoa. Ele extingue a maldição do crime de continuadamente precisar gerar o mal (F. v. Schiller); bem como revoga a concepção dos convencidos da moral ou dos fanáticos da reincarnação de que culpa implique em punição.
Em virtude do perdão de Jesus, Zaqueu consegue aquilo que tanta gente não consegue: fixar a vista no seu passado (Link); sim, dominá-lo, resultando em não mais recalcar nem renegar, mas francamente aceitar a sua vida estragada. Desta feita se lhe desobstrui o portão para um bom futuro. Pois o que, em regra, transforma a vida dos homens em inferno e tanto escurece as suas perspectivas são as desesperadas au-to-acusações que, sempre de novo, rememoram toda a desgraça. Nós não nos perdoamos as nossas fraquezas, os nossos fracassos, a nossa culpa – e como o poderíamos? Ao Zaqueu foi perdoado; por isso ele pode (tranquilo) receber a si próprio (Link).
b) Com a capacitação de ser livre dos aperreies do seu passado, é oferecido ao maioral dos publicanos a condição para a vida, embora não a própria vida. Para viver, se precisa mais do que perdão. Pois existir sozinho ê uma barbaridade; necessita-se do próximo. Deste, Zaqueu é privado. Comunidade e sociedade, por suas razões, o discriminaram e se retiraram dele. Conseqüentemente foi condenado a colocar a si próprio como próximo; ao que, no fim das contas, se acostumou, até gostar e preferir que nunca fosse diferente. Ao Isolamento que sofre da parte dos outros, adapta-se com seu auto-isolamento.
Hospedando-se na casa de Zaqueu, Jesus rompe o seu isolamento. Ele se apresenta como o seu próximo. Este acontecimento chama-lhe a atenção para o seu estado de incurvatus in se ipso, curvado para dentro de si e de homo versus ad se et ad sua, homem voltado para si e para o seu (Lutero). Mostra-lhe que, de agora em diante, é desnecessário ser assim. Sobretudo: já que Jesus é o seu próximo por excelência, o liberta logo desta desgraça. Zaqueu é, de forma mais simples, reintegrado ã dignidade de ser homem, de receber e dar, de ser amado e amar (Lange). Ele volta a ser sociável no sentido pleno.
2) Zaqueu comprova a sua sociabilidade ao descobrires demais próximos.
a) Ele resolve dar aos pobres – não ao templo! Muitos levam a oferta justamente para lá, tentando alcançar uma boa consciência com o emprego do resto do seu dinheiro, inclusive se for por exploração de semelhantes – e nem sequer são chamados a sua primeira responsabilidade com a transformação da estrutura da miséria e da situação dos miseráveis. Primário é mudar o mundo, secundário preservar o templo. É imperativo, pois, se livrar de qualquer “templismo”; não existe templismo bem intencionado ou ingênuo: Deus quer que lhe sirvamos nos pobres; esse é o culto verdadeiro, bem melhor e mais importante do que construir igrejas e celebrar liturgias. Não precisamos fazer boas obras para Deus nem para a Igreja, mas sim aos homens, aos homens, aos homens – não ouves? – aos homens (Lutero).
b) Zaqueu dá a metade dos seus bens – não aquilo que lhe sobra, nem da sua abundância e nem ainda apenas o dízimo! As posses se lhe revelam como centro motor da sua vida e perdem a atração sobre ele (veja l Co 6.12). A ganância de ter desaparece. O possesso dos seus bens se torna possuidor dos mesmos. Zaqueu chega à liberdade maravilhosa dos filhos de Deus (Rm 8.21): ter, como se nada tivesse (cf. 1 Co 7.30); a sua esquerda ignora o que faz a sua direita (cf. Mt 6.3) e a calamidade dos necessitados prescreve medida e alvo do seu sacrifício pessoal.
Em verdade: Maldita e condenada ao inferno seja a vida que vive exclusivamente para si mesma, pois isso é próprio do gentio, e não do cristão (Lutero).
c) O maioral dos publicanos restitui quatro vezes mais aqueles que tem defraudado. A sua justiça excede em muito a dos escribas e fariseus (Mt 5.20). Estes, apoiando-se em Lv 6.2ss, consideram bastante a restituição por inteiro mais a quinta parte.
Prontificando-se a dar o quádruplo, se coloca ao lado dos ladrões que, conforme ÊX 22,1, são obrigados a devolver quatro ou cinco vezes o roubado.
Zaqueu chega a conclusão de que a sua propriedade é roubo. Isso não o leva ao desespero, a desfazer-se dela toda bobamente e emigrar, mas o incita ao seu uso no sentido social, ajudando os espoliados a recuperar a sua dignidade. Ele descobre que propriedade particular tem caráter provisório, visto que Deus exige prestação de contas sobre seu surgimento e sua aplicação. Zaqueu é curado da ideia fixa de que ela seja santa e inviolável. Ele coloca o bem geral à frente do duvidoso direito à propriedade privada. Porque é inadmissível que um folgue enquanto o outro trabalha; que um seja rico enquanto o outro passa penúria. O que temos deve estar a serviço (do próximo); não estando a serviço, estará roubando (Lutero).
Tudo Zaqueu faz por gratidão e amor, pois é amado primeiro; recorda, pois é recordado; vê, pois é visto; procura, pois é procurado.
A liberdade e liberalidade em relação aos seus bens não é condição nem consequência, mas parte integrante da salvação. Sim, a conduta transformada de Zaqueu é a sua salvação.
Lutero: Toda a doutrina, ação e vida cristã resume-se nestas duas partes – crer e amar – pelas quais o homem é colocado entre Deus e o seu próximo, como meio que recebe de cima, e passa adiante em baixo, assemelhando-se a um vaso ou tubo através do qual deve fluir incessantemente o manancial dos bens divinos a outras pessoas.
As obras exteriores não são outra coisa que sinais da fé interior. As obras não fazem o homem crente, porém revelam que sou crente, e testemunham que a fé dentro de mim é certa”. Sendo certa a fé, segue logo a ação. Quanto maior a fé, tanto maior a ação. Nada é impossível para a fé; ela não pára nem descansa. Somente a fé justifica, mas ela jamais está só (vem sempre acompanhada do amor). Assim a fé é o agente, o amor a ação.
Coerentemente é impossível separar da fé as obras; é tão impossível como separar do fogo a chama e a luz. Por isso é fictícia a fé daqueles que gostam de ouvir e entender a doutrina da graça pura (de Deus), mas não começam a servir o semelhante, justamente como se quisessem salvar-se pela fé sem obras, não se dando conta de que sua fé não é fé, mas mera imagem de fé, comparável a uma imagem no espelho, que não é o rosto, mas a sua imagem.
V – Conclusão
Na prédica sobre a sua passagem em Jericó Jesus Cristo entra nas nossas cidades e vilas. Através dela quer, aqui e agora, trazer salvação e ganhar os murmuradores.
1) Jesus Cristo tem de ficar hoje na casa de Zaqueu, maioral dos publicanos entre nós, não (desta vez, não!) na do presidiário libertado, do homossexual, da mãe solteira, do desocupado e do boa-vida. Deus se recorda e procura com salvação:
– os que vivem à custa do suor, da fome e da fraqueza dos homens;
– os que, buscando mais lucro, calcam aos pés homens como lixo da rua;
– os que se vendem e são os seus próprios legisladores;
– os que mantêm na ignorância, retendo ou sufocando informações e troca de ideias, publicando estatísticas e dados artificiais;
– os que, correndo atrás de seu modelo de desenvolvimento, passam sobre pessoas humanas como se fossem, degraus de escada;
– os que desqualificam, caluniam, perseguem e silenciam os contestadores do seu modelo político;
– os que consideram o povinho indolente, excluindo-o da participação da renda nacional, negando-o o direito de opinar e o poder decisório sobre o seu destino.
2) Jesus Cristo convida aqueles que murmuram a se deixar abrir os olhos para a sua situação (como os abre aos Zaqueus para a deles). Pois a sua cristologia e teologia, que já os torna insensíveis quanto a Cristo, Deus e os próximos, tendem a levá-los à rejeição definitiva deles — e isso, sem nem sequer o saberem e desejarem; o que é o mais perigoso.
Movidos agora pela cristologia e teologia que Jesus Cristo vi vê, terminam de murmurar e lhes convêm se hospedar com homem(-ns) pecador(es):
assim reconhecem a sua participação na criação da criação, amada e maldita ao mesmo tempo, em que aqueles se encontram (como mais profunda exposição de todas as implicações e consequências desta situação verdadeiramente trágica me ocorre a peça de Max Frisch, Andorra. Recomendo a sua leitura, imprescindível à transposição desta parte para os nossos tempos.)
e chegam , conforme Lutero, até a ser um Cristo para o próximo, os publicanos e seus maiorais.
Depois que os Zaqueus entraram na experiência da salvação, os que deixam de murmurar tem um papel de igual envergadura: acompanhá-los na manutenção da sua vida diferente. Para tal, zelam que os tabus e anseios, convenções e ideais do seu ambiente, enfim, toda a situação social e econômica, sim, política, não cooperem para a recaída dos salvos. Se este for o caso, eles se empenham para a sua transformação. (A respeito de como a situação global em que alguém se encontra o condiciona, não conheço coisa mais elucidativa do que a obra do jovem B. Brecht, em especial A Ópera dos Três Vinténs, Mãe Coragem e seus Filhos, A Vida de Galileu. Considero igualmente a sua leitura indispensável à transposição deste detalhe para os nossos dias.)
Porque a salvação dos Zaqueus quer ser vivida doravante, precisam eles não só da solidariedade pessoal, mas também do engajamento político (no sentido mais amplo) (Link) dos que param de murmurar.