Prédica: Lucas 24.1-12
Autor: Gottfried Brakemeier
Data Litúrgica: Domingo de Páscoa
Data da Pregação: 10/04/1977
Proclamar Libertação – Volume: II
Tema: Páscoa
I – Da verdade da Páscoa depende a fé cristã. “…se cristo não ressuscitou, é vã a nossa pregação e vã a vossa fé”(I Co 15,14). Sem a Páscoa, a cruz de Jesus Cristo nada mais seria do que o exemplo de mais uma tragédia humana. Ela seria apenas a confirmação de que o mal costuma triunfar por sobre o bem e que a morte é onipotente. Entretanto, a Páscoa é “incrível” em sentido literal, pois conflita com as nossas experiências, com o que vemos dia-a-dia.. Quem nos garante que a notícia da ressurreição de Jesus não seja mera “conversa” (Lc 24.11)? Páscoa, realidade ou ficção?
O pregador não pode fugir desta pergunta. Certamente ele mesmo se defronta com ela. Em todos os casos, porém, ele deve resposta à comunidade e, através dela, também à sociedade. Em toda pessoa se esconde potencialmente um Tomé incrédulo (João 20.24ss) que procura por evidências. E isto de modo é de modo algum condenável. Pois a incredulidade de Tomé e de seus semelhantes faz jus ao fato de a Páscoa se totalmente anormal neste mundo. Fé pascal só existe como incredulidade vencida – assim as histórias de Páscoa nô-lo mostram. Se crer na ressurreição for fácil, é certo que a Páscoa não foi entendida em todo o seu alcance. Importa suportar o escândalo que a mensagem pascal representa (cf. Atos 17,31ss). Ela também não permite o desvio para uma interpretação que lhe extrai apenas verdades gerais ou um significado metafórico. A Páscoa não diz que após as chuvas o sol voltará a brilhar para todos, ela não significa que seremos vitoriosos a despeito de a causa justa finalmente ser coroada de êxito desde que a persigamos com tenacidade. A Páscoa nem fala em primeiro lugar de nós, mas da ressurreição de Jesus, de um acontecimento, portanto, que teve lugar num determinado momento da história, “no terceiro dia” após aquela sexta-feira, na qual Jesus morreu (I Co 15.4), ou seja, no primeiro dia da semana (Mc 16.2; Lc 24.1). Está claro que este acontecimento se reveste de profundo significado para a humanidade, pois abre o caminho para a verdadeira esperança. Más é impossível isolar o significado da Páscoa do acontecimento que o fundamenta. Que sabemos a respei¬to dele, e qual é a realidade a ser testemunhada?
A resposta é dificultada pelas divergências entre os evangelistas, especialmente flagrantes nos relatos da Páscoa. O testemunho mais antigo é de Paulo, que menciona uma série de aparições do Jesus ressuscitado (l Co 15, 3b ss). Em comparação com esta notícia sucinta, os relatos pascais dos evangelistas apresentam, em escala bem maior, reflexão da comunidade. Os evangelistas (e já a tradição por eles usada) fundiram a notícia da Páscoa com o seu próprio testemunho. Mas vejamos isto na perícope proposta como texto de prédica.
II. O conteúdo de Lc 2,1-12 é, em síntese, o seguinte: Na madrugada do primeiro dia da semana, tendo observado a lei do descanso no sábado, mulheres vão ao túmulo de Jesus com a intenção de embalsamá-lo. Os nomes de três delas são mencionados no v. 10. Encontram a pedra removida e o túmulo vazio. Estando elas ainda perplexas, aparecem dois jovens, cujas vestes brilhantes os identificam como mensageiros de Deus e que explicam o fenômeno: Por que buscais entre os mortos ao que vive? Ele não está aqui, mas ressuscitou (v. 5b.6a). Lembram eles que Jesus, estando ainda na Galiléia, falava a respeito da necessidade de o Filho do homem ser entregue nas mãos de pecadores, ser crucificado e ressuscitado. As mulheres entendem e voltam aos onze discípulos, anunciando-lhes o que viram e ouviram. Mas estes consideram as suas palavras como conversa tola e não lhes dão crédito. Pedro, porém, corre ao sepulcro, vê apenas lençóis de linho e se admira. Aliás, é possível que o v.12 seja inclusão posterior no texto de Lucas. Ele falta em alguns manuscritos e parece ser formulado a partir de João 20 ,3ss. Mas a inclusão não altera o sentido texto de Lucas: A descoberta não produz em Pedro a fé, ele permanece tão incrédulo como os demais ao terem ouvido as palavras das mulheres.
O presente trecho tem paralelo em Mc 16,1-8 (cf. também Mt 28,1ss ; Jo 20,l1ss), mas algumas diferenças caem na vista. Lucas não mais fala da preocupação das mulheres com a remoção da pedra. Em vez de um jovem intérprete, aparecem dois. É comum a ambos os evangelistas que às mulheres é anunciada a ressurreição de Jesus, mas enquanto em Mc as mulheres são encarregadas de levar aos discípulos a ordem de se dirigirem à Galiléia, onde estes verão Jesus, em Lc os jovens apenas lembram do prenúncio de Jesus e evidenciam que os acontecimentos estão em conformidade com o plano de Deus. E finalmente há uma divergência na reação das mulheres: Conforme Marcos, ao mulheres, possuídas de temor, nada disseram a ninguém, conforme Lucas elas foram aos discípulos e relataram o acontecido sem, no entanto, poder convencer.
Não procuraremos explicar aqui as divergências. Na maioria dos casos elas deixam entrever o que para os evangelistas particularmente era importante e o que eles quiseram acentuar. Tomando por base o texto de Lucas, tentaremos mostrar o que este enfatiza e o que é válido para a história de Páscoa em geral.
Todos os evangelistas concordam na afirmação de mulheres terem descoberto o túmulo vazio na madrugada do primeiro dia da semana (João fala apenas em Maria Madalena). Mas esta descoberta em si não é o motivo para a fé na ressurreição de Jesus. Um túmulo vazio é ambíguo. Por isso existe a necessidade de interpretação, dada em Lc por dois jovens: Ele ressuscitou. O sepulcro vazio é um sinal, mas não demonstração. Como surgiu então a fé na ressurreição de Jesus? O nosso trecho não fala disto, sendo por esta razão incompleto como texto de uma prédica no domingo de Páscoa. Ele deve ser interpretado dentro do seu contexto. E aí fica claro que os discípulos chegaram a crer em virtude das aparições de Jesus (Lc 24.13ss; 34; 36 ss; I Co 1.5,3b ss) . Também a mensagem dos jovens deve ser compreendida a partir dessas aparições. Ela aponta para o que os discípulos em breve iriam experimentar e é, por isso, o centro do trecho.
Jesus, portanto, se evidencia aos discípulos como vivo. Esta evidenciação igualmente não deve ser confundida com uma demonstração da verdade da Páscoa. Tal demonstração não existe, pois as aparições pascais também poderiam ser explicadas de maneira natural, como visões subjetivas dos discípulos, etc. Mas o que não condiz com isto é o fato incontestável que todos os discípulos preferiram o martírio à negação da sua fé. Se na Páscoa nada aconteceu, isto se torna incompreensível. Há pois evidências da ressurreição de Jesus, mas não demonstrações científicas ou racionais.
Esta, porém, ainda não é toda a verdade sobre a Páscoa. Lucas, neste texto, ressalta mais dois aspectos fundamentais:
1) Desde a Páscoa Jesus deve ser procurado não entre os mortos, mas sim entre os vivos (v. 5). Isto representa uma promessa para toda a humanidade. As aparições pascais tiveram o seu tempo, elas não se repetiram em épocas posteriores (cf. l Co 15,8). E, mesmo assim, fé pascal não se baseia apenas no que os apóstolos e as mulheres disseram. Pois Jesus não deixa de revelar-se como vivo aos que nele depositam a sua confiança. A Páscoa tem duas dimensões: Ela é um acontecimento do passado e concomitantemente uma realidade dinâmica do presente. No Espírito Santo o Cristo vivo vem a nós (cf. At 2,1 ss; Jo 14,16 ss; etc.).Por isso a Páscoa não se resume numa notícia do passado, a sua verdade se nos evidencia ao experimentarmos o poder do Espírito. Em termos da nossa perícope: Desde a Páscoa não mais encontraremos Jesus entre os mortos. Quem o tratar como morto, não o achará. Quem falar de Jesus, deve falar dele como vivo. No túmulo ele não está.
2) A Páscoa abre os olhos para o verdadeiro significado do agir, do pregar e do morrer de Jesus (v.6 s). A Páscoa revela que, em Jesus, Deus mesmo agiu neste mundo. Fica evidente que Jesus não falou e agiu em qualidade particular, mas que Deus estava em sua palavra e ação. Ele esteve também na morte de Jesus, na cruz – não que Deus mesmo fosse diretamente responsável pela crucificação de Cristo. Foram os homens que assassinaram Jesus. Mas Deus entregou (!) o seu Filho nas mãos de pecadores por amor a estes (cf. Lc 20,9-18). A cruz mostra o amor daquele Deus que sacrifica a vida de seu Filho, e a Páscoa mostra que o amor de Deus vence a maldade humana. Por isso existe agora esperança: O amor de Deus é mais forte do que pecado e morte (cf. Rm 8,38 s; l Co 1,25). Não somos destinados a morrer em virtude dos nossos crimes e dos de outros. Somos destinados a viver. Deus nos ressuscitará da nossa morte. Por isso, pregar o evangelho significa anunciar em Jesus a ressurreição dentre os mortos (At 4,2).
III. Páscoa, realidade ou ficção? Depende do que reconhecemos como sendo a realidade. Existe a realidade da cruz de Jesus Cristo. Ela está presente em toda a parte: Traição, suborno, violência, abuso do poder, ódio, cinismo, sadismo e assassínio de um lado, e sofrimento, abandono de Deus e morte horrível de outro. Todos experimentam de uma ou de outra forma o que na história da paixão de Jesus é descrito, uns mais, outros menos. Uns participam dos crimes praticados por Judas, os sumo-sacerdotes, Pilatos, os soldados romanos, outros são vítimas e participam do sofrimento de Jesus. A rigor, participamos todos de ambas as coisas, tanto dos crimes como também do sofrimento, embora em proporções diferentes. Assassinar e morrer, causar e aguentar sofrimento, trair e ser traído, vencer e ser vencido – é esta a realidade determinante neste mundo? Ela é tão forte e tão óbvia que nos faz duvidar da Páscoa.
No entanto, a Páscoa justamente quer levar-nos a duvidarmos desta realidade. Não como se ela não existisse. A Páscoa não declara a cruz de Jesus inexistente, mas ela vence a cruz. Naquele primeiro dia da semana, há quase dois mil anos atrás, uma outra realidade surgiu neste mundo, mais forte do que os poderes que matam, mas poderosa do que a morte. É o poder de Deus que ressuscitou ao Senhor Jesus e que também a nós ressuscitará (l Co 6,14). Solidão, inferno, sofri-mento, opressão e morte – não é necessário demonstrar que tudo isto é muito real. Mas a pergunta é em qual das realidades nós cremos: Na onipotência da morte ou na onipotência de Deus? Nós nos conformamos com o jugo de pecado e morte neste mundo ou temos a coragem de nos fiar na realidade da Páscoa?
Se a Páscoa se tornar a realidade determinante para nós, a nossa vida muda. Seremos capazes de aguentar o aspecto da morte e não mais precisamos fugir dela. Um dos principais problemas do ser humano é que ele se encontra em permanente fuga da morte: Procuramos suprimir o pensamento da morte em nós e nos portamos como se fôssemos imortais. Evitamos na medida do possível o contato com o que nos lembra a morte, com doentes, com a miséria e com os desesperados. Nutrimos esperanças vãs, temos medo do envelhecer e nos refugiamos no mundo dos nossos sonhos. Cada um procura construir o seu paraíso como pode – não raro às custas dos outros. Fugimos da morte em vez de oferecer resistência a ela, fugimos, porque somos fracos e sabemos que qualquer dia seremos a sua presa. Fugimos enquanto dá. Onde estão os que são capazes de ver e de aguentar a morte, porque nela não precisam crer? Por que não há mais combate ao assassínio, à injustiça, ao ódio, à violência, em suma, à morte neste mundo? Queira Deus perdoar-nos por vivermos tantas vezes como se a Páscoa não existisse e como se Jesus estivesse ainda entre os mortos. Graças a Deus, não somos nós que devemos produzir a Páscoa neste mundo. Deus fez a Páscoa para nós e ele pode ressuscitar-nos dos nossos fracassos tão bem como do túmulo que em qualquer parte já nos aguarda.
IV. A prédica poderá tomar o seu ponto de partida na men¬sagem dos jovens: Por que buscais entre os mortos ao que vive? Pois aqui entram em colisão a nova realidade e a velha. O sepulcro é o símbolo da onipotência da morte, mas: Ele não está aqui – estas palavras denunciam a derrota da morte. Que Jesus ressuscitou, que o seu túmulo está vazio, disto vive comunidade cristã. O pregador não deveria problematizar excessivamente a questão histórica da ressurreição de Jesus, por outro lado, porém, ele também não deveria abrandar ou minimizar o escândalo, ou seja, o desafio que a Páscoa representa. Somente sendo o realmente novo, a Páscoa terá força para mudar a nossa situação. Para ressaltar isto, o pregador deverá procurar por concreticidade inspirada na situação específica de sua comunidade. Como se manifesta a antiga realidade na sua existência, como ela experimenta o jugo da morte, ao qual Jesus na cruz se submeteu? E o que significa a Páscoa nesta situação? Prédica de Páscoa deve ser realista e não obstante (ou justamente por isto) estar imbuída da certeza da vitória que Deus nos dá através do nosso Senhor Jesus Cristo (l Co 15,55.57).
Proclamar Libertação 02
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia