Prédica: Marcos 9.43-48
Autor: Silvio Schneider
Data Litúrgica: 7º Domingo após Trindade
Data da Pregação: 24/07/1977
Proclamar Libertação – Volume: II
I – Texto
43- Se tua mão te faz tropeçar, corta-a.
É melhor entrares maneta na vida do que,
tendo as duas mãos, ires para o inferno,
para o fogo inextinguível.
45- E, se teu pé te faz tropeçar, corta-o.
E melhor entrares aleijado na vida do que,
tendo os dois pés, seres lançado no inferno.
47- E, se um de teus olhos te faz tropeçar, arranca-o.
E melhor entrares no Reino de Deus com um dos teus olhos do que,
tendo os dois, seres lançado no inferno,
48- onde não lhes morre o verme nem o fogo se apaga.
II – Observações relacionadas ao texto
Nestle omite os vv.44 e 46, idênticos ao v. 48, uma citação de Is 66.24. Os manuscritos que apresentam os vv. 44 e 46 são secundários. O v. 43d também pode ser relacionado com Is 66.24. Assim, proponho que por ocasião da leitura do texto na prédica sejam omitidos os vv. 44 e 46. Aponto ainda para a boa tradução (apesar de já ser interpretação!) de A BÍBLIA NA LINGUAGEM DE HOJE, pág. 129.
III – Considerações exegéticas
Mc 9.43-48 pertence à categoria das palavras de advertência de Jesus. Conforme R. Bultmann (Gesch. der syn. Trad., pág. 80) pertencem ainda ao mesmo gênero Lc 4.23;6.31;16.9; Mt 10.l6b ; 11.24; etc.
No texto em apreço, temos uma sequência de três palavras, sobre a mão, o pé e o olho, apresentados como membros que podem conduzir o homem ao pecado. Trata-se, portanto, de três estrofes, cada uma estruturada da seguinte maneira:
a – o tropeço de um dos membros.
b – o imperativo radical para a mutilação.
c – a razão da mutilação.
Observe-se que a mesma advertência também consta em Mt 5.29-30 e Mt 18.8-9, em contextos completamente diferentes do apresentado por Marcos. A contraposição em Mt 5.29-30, por exemplo, é feita assim: E melhor você perder um membro do seu corpo,do que todo o seu corpo ir para o inferno. A alternativa é: Um membro ou todo o corpo. A ênfase reside em que o homem evite ir para o inferno.
Já em Mc 9.43-48 a contraposição é feita assim: E melhor você perder uma mão do que ter as duas e não ter vida = ser lançado no inferno. O mesmo é dito sobre o pé. Na ultima estrofe é explicado o que se entende por vida, a saber, entrar no Reino de Deus: E melhor você perder um olho do que ter dois e não entrar no Reino de Deus.
Marcos apresenta uma concepção mais positiva e com menor sabor legalista do que Mateus. Por se tratar da vida, da participação no Reino de Deus, não importa que um dos membros se perca. A obtenção da vida é tão incomensuravelmente maravilhosa e preciosa que sua perda seria irreparável. Perder um membro ainda é insignificante diante do valor da vida. A ênfase reside na obtenção da vida (zoe),que entenderemos como causa, e não no ir para o inferno (geena), que entenderemos como efeito. A dimensão positiva desta palavra de Jesus ainda pode ser observada formalmente quando da substituição do termo vida (zoe) nos vv. 43 e 45 por Reino de Deus (basileia tou theou) no v. 47. Ambos os termos descrevem a mesma grandeza e se explicam mutuamente: trata-se da vida eterna que é ofertada com a vinda do Reino de Deus em e com a pessoa de Jesus. Em outras passagens no NT esta mesma grandeza é descrita com outros termos, como chara (Mt 25.21), doxa (Mc 10.37), eirene (Rm 14.17).
A partir daí, o ouvinte ou leitor de Mc 9.43-48 já pode ter uma ideia do que efetivamente está em jogo: a sua vida.
Em contraposição à vida (zoe), ao Reino de Deus (basileia tou theou), é colocada a Geena, o inferno. O termo Geena, traduzido por inferno, corresponde ao termo hebraico Ge-ben-hinnon, literalmente Vale do Filho de Hinnon. Designa uma localidade, um vale ao Sul de Jerusalém (cf. Js 15.8; 18.16), onde eram ofertados sacrifícios a divindades pagãs. Mais tarde o lugar foi alvo de advertências e ameaças de profetas (Jr 7.32; 19.6), que lhe designariam de Vale da Matança. No período da apocalíptica surgiu a crença de que ali ocorreria o Juízo Final. Posteriormente passou a ser o local em que eram executados os condenados, os ímpios. A partir daí pode-se ter uma ideia do que significaria para um judeu ir para a Geena: maior vergonha e abandono era inconcebível. Ninguém desejava ir para a Geena. Desse modo se torna compreensível a citação de Is 66.24, onde diz assim: Eles (toda a carne que virá adorar perante mim) sairão e verão os cadáveres dos homens que prevaricaram contra mim; porque o seu verme nunca morrerá, nem o seu fogo se apagaria; e eles serão um horror para toda a carne, diz o SENHOR. Viver distante de Deus, sem sua comunhão, sem participação no seu povo é o mesmo que viver na Geena, ou não viver.
Jesus não enfatiza a crença no fogo do inferno, muito menos em termos de ameaça, mas a preciosidade de sua oferta, a participação na vida, no Reino de Deus. O fogo do inferno não pode ser usado na prédica como elemento de ameaça sobre os ouvintes, como alternativa à oferta da vida. Seria bom, no preparo da prédica, ler Rm 11.32 e/ou l Tm 2.4.
Como, então, entender a advertência de Jesus? A alternativa esta entre a perda de um membro e a participação no Reino de Deus. Qual o significado dessa colocação radical?
Qual o sentido de decepar uma mão, um pé, ou arrancar um olho? Segundo Dt 25.11ss, o decepar de uma mão tem caráter de punição. Desse modo se estaria antecipando uma puni¬ção que ainda deveria vir sobre o homem. Os rabinos também entendiam o decepar de uma mão como uma punição, algo como uma compensação por uma infração cometida. Nachum de Gimzo (Billerbeck l, pag. 779s) relata que almejou ficar cego, sem mãos, pés e olhos, e ainda leproso, porque seus olhos, mãos e pés não se compadeceram de um pobre. Nesse relato se pode observar que os sofrimentos do presente são uma for¬ma de compensação da punição que aguarda uma pessoa na eter-nidade, causada por sua impiedade nesse mundo.
Mc 9.43-48 não permite compreendermos a mutilação como uma forma de compensação do castigo vindouro. Por um lado porque a mutilação só ocorria como pena judicial na época de Jesus. E por outro lado porque tal compreensão estaria imediatamente associada com a salvação por obras meritórias. Nesse sentido Mc 9.43-48 estaria completamente isolado dentro da tradição das primeiras comunidades.
Mc 9.43-48 não está interessado em dizer o que deve sei feito depois de o pecado ter sido cometido, pois nesse caso deveriam ser mencionadas outras situações) Enfatiza,entretanto, o que o discípulo deve fazer para evitar o pecado. A mutilação de membros não objetiva que o homem se puna a si próprio por pecados cometidos. De que adiantaria arrancar um olho? Sempre permaneceria o outro para conduzir o homem ao pecado. Por isso a advertência de Jesus sobre as mãos, os pés e os olhos é expressão da necessidade de o cristão lutar contra si próprio para evitar o pecado. Segundo concepção palestina, os membros do corpo assumem o lugar do próprio homem, e por isso a luta não é contra um ou outro membro do corpo (estes apenas obedecem ao comando do coração!), mas contra o próprio homem inclinado para o pecado.
Observando a perícope em apreço em seu contexto, pode-se observar que esta palavra é endereçada aos discípulos. Estes, portanto, são vocacionados para se decidirem a um discipulado radical e a uma luta contra o que oprime o homem, o pecado, e com isso, conscientizados de que devem combater as causas, e não contentar-se em remediar efeitos. Essa luta começa consigo mesmo. Desse modo a presente perícope che¬ga objetivamente perto dos textos sobre o discipulado de Mc 8.34ss. Mc 9.43-48 pode ser entendido como concretização de Mc 8.34ss. A mesma radical idade no discipulado a Jesus também ê verificável no Sermão do Monte (Mt 5-7), cujo escopo pode ser assim enunciado: NO OUVIR E NO PRATICAR DA PA¬LAVRA DE JESUS DECIDE-SE QUEM, AFINAL, É DISCÍPULO, isto é, QUEM CONSTRÓI SUA CASA SOBRE ROCHA E QUEM CONSTRÓI SUA CASA SOBRE A AREIA. (Mt 7.24ss)
IV – Meditação
A vocação ao discipulado é chamado à salvação, à vida. Por se tratar da vida, isto é, do saber-se participante do Reino de Deus, nenhum sacrifício é grande demais. Não signi-fica que o Reino de Deus possa ser conseguido mediante a mutilação de um ou mais membros do próprio corpo. Mas o prazer de um momento, ou a inclinação egoística, o tirar vantagem para si próprio, o transformar os outros em objetos de sua tirania e soberania não podem fazer com que se menospreze ou minimize a grande dádiva de Jesus. A palavra de Mc 9.43ss quer fazer com que os discípulos levem extremamente a serio a promissão da vida. Para exemplificar isso, observe-se a Parábola do Tesouro Oculto, Mt 13.44ss. Uma vez que alguém descobriu a grandeza e a importância do Reino de Deus, não poupará meios nem esforços para conseguir mantê-lo.Será tarefa da prédica desenvolver esse aspecto do texto: a oferta do Reino de Deus coloca o homem perante uma consequente decisão pelo seguir a Jesus. Mc 9.43ss concretiza essa decisão na luta do cristão contra o pecado, isto é, contra o próprio coração pecaminoso, mencionando mãos, pés e olhos. Não é dito diretamente como esses membros fazem o homem tropeçar. Poderá ser desenvolvido concretamente na prédica, sem cair em falsos moralismos. O imperativo do texto está firmemente ancorado no indicativo do discipulado e da oferta do Reino de Deus. E esta concreticidade pode ser enunciada a partir da observação do campo de vivência de um cristão. Seu relacionamento com cristãos e não-cristãos é o contexto em que se decide seu discipulado. O relacionamento inter-humano é o campo concreto em que se decide o discipulado, no serviço (Mc 9.35) no reconhecimento da pessoal idade e humanidade do outro (9.41), na possibilidade de engajamento do outro no Reino de Deus (Mc 9.42) e, com isso, no saber-se co-responsável por e com ele (Mc 9.37 e 42). A questão sem-pre é; Ou combatemos causas, ou contentamo-nos em remediar efeitos. Nesse sentido caberia refletirmos aqui a célebre questão Homem x Estrutura. Programas políticos e ideologias se caracterizam por entenderem que mudando estruturas, quaisquer que sejam, podemos tornar o homem mais feliz. Boa parte de cristãos rebatem tal posicionamento afirmando que não é a estrutura que deve ser modificada, mas o próprio homem. Surge daí uma compreensão de fé cristã apática e alheia ao mundo em que vivemos. Mc 9.43-48 não permite, nesse sentido, compreendermos a questão Homem e Estrutura como alternativas. O homem vocacionado por Jesus ao discipulado, que se conscientiza da dádiva do Reino de Deus, também saberá valorizar tal dádiva e vivê-la autenticamente transformando o mundo em que vive, e isto implica em combater estruturas pecaminosas que oprimem e fazem o homem tropeçar. Nesse sentido cabe ao pregador enunciar o que, a nível individual e coletivo, no seu contexto oprime e faz o homem tropeçar. Não raras vezes a estrutura de vida de um contexto faz com que as pessoas minimizem o ser cristão, procurando justificativas para a sua apatia e de toda a sua comunidade com afirmações que já se tornaram lugar-comum: Todo mundo só pensa em dinheiro, em ficar rico, todo mundo explora; porque todo mundo faz, vale também para nós? Ser discípulo implica em sacrifícios, e nenhum é grande demais quando se trata de viver a verdadeira vida, os valores do Reino de Deus, no relacionamento com os outros. A pergunta é: Preciso sempre ganhar à custa da derrota do outro? A fé cristã não entende a vida como competição: podemos ganhar juntos, desde que juntos levemos a sério o ser cristão, o discipulado.
V – Bibliografia
– BARTH, Gerhard. Auxílio homilético sobre Mc 9,43-48. In: Eichholz/Falkenroth, eds. Hören und Fragen.Vol.5. Neukirchen-Vluyn, Neukirchener Verlag, 1967.
– BULTMANN, Rudolf. Die Geschichte der synoptische Tradition. Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht.
– SCHWEIZER, Eduard. Das Evangelium nach Markus. Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1967.
– SCHLATTER, Adolf. Das Evangelium nach Markus und Lukas. In: Schlatters Erläuterungen zum Neuen Testament. Stuttgart.