Prédica: Mateus 10.7-15
Autor: Baldur van Kaick
Data Litúrgica: 2º Domingo após Trindade
Data da Pregação: 19/06/1977
Proclamar Libertação – Volume: II
I – Considerações exegéticas
A perícope Mt 10.7-15 é um recorte do Sermão Missionário no capítulo 10 de Mateus. Os versículos iniciais do Sermão (vv.5-6) não foram incluídos no recorte. A restrição neles contida (não tomeis rumo aos gentios) é revogada em 28,19 (fazei discípulos de todas as nações). Importante ë observar o contexto maior do Sermão. Nos capítulos 5-7 temos o Jesus da palavra, nos capítulos 8-9 o Jesus da ação. Em 9.35, que precede o nosso texto, encontra-se um resumo desta atividade dupla de Jesus: E percorria Jesus todas as cidades e povoados, ensinando nas sinagogas, pregando o evangelho do reino e curando toda sorte de doenças e enfermidades. Segue então a descrição da situação aflitiva da multidão (9.36) e, em 10.l-5a, a convocação, capacitação e o envio dos discípulos.
A perícope 10,7-15 se divide em três partes: 1o Enviados para pregar e agir; 2o O chamado à despreocupação; 3o O procedimento dos portadores da paz.
1. Enviados para pregar e agir (vv.7-8)
Kerussein significa pregar, anunciar. O termo aparece no NT sozinho ou combinado com outra palavra: anunciar a palavra, anunciar a palavra do Senhor, anunciar o Senhor. O conteúdo da pregação aqui é: o reino dos céus está próximo. Jesus usava também uma ou outra vez, em lugar da expressão reino dos céus ou reino de Deus, a expressão vida. Assim, em Mc 10,17 herdar o reino de Deus é substituído por herdar a vida eterna. Em Mc 9.43.45 encontra-se a expressão entrar na vida. Em João o termo rei no dos céus foi substituído quase que por completo pelo termo vida, vida eterna.
O termo vida já aponta para o conteúdo do reino dos céus. São, no entanto, as bem-aventuranças que falam claramente da essência do reino dos céus. A primeira bem-aventurança anuncia aos pobres a participação no reino de Deus: “Bem-aventurados os pobres; pois deles é o reino de Deus!” As duas bem-aventuranças seguintes anunciam aos famintos que serão fartos e aos tristes que serão consolados. Se pensarmos na relação desses anúncios com a participação no reino de Deus, veremos que há apenas uma resposta: O saciar a fome e o consolo são promessas para o tempo da graça. Tudo isso ocorre quando vem o reino de Deus. Nas promissões das bem-aventuranças se desdobra, portanto, como no espectro de um arco-íris, o que é trazido pelo reino de Deus.(Goppelt, p. 102) O reino de Deus traz o consolo que afasta toda a dor e a saciedade que põe fim a toda fome. Cada um dos evangelistas acentua um aspecto específico desse estado de graça; Lucas, a fome de pão; Mateus, a fome de justiça. A promissão de Jesus, porém, se refere a fome e sofrimento de maneira tão generalizada como as tradições vétero-testamentárias que estão por trás dela. O reino de Deus, por conseguinte, traz um estado de graça corporal e espiritual, i.é, um novo mundo sem carência e sofrimento, um mundo de paz e justiça. (Goppelt, p. 102)
Eggiken não significa chegou, mas se aproximou. Os discípulos são enviados para anunciar que o reino de Deus se aproximou. O reino não está presente visivelmente ainda; ele pode e tem que ser anunciado ainda. Mas ele está tão próximo que pode ser anunciado com certeza. (Conzelmann, p. 129)
Terapeuein é a atividade de curar, tratar medicinalmente os doentes. Jesus tinha o poder de curar e incumbiu os discípulos de curar. Em 10,1 eles são antes ainda capacitados para curar. Curando, Jesus se opõe à doença, e os discípulos são instruídos e capacitados para fazerem o mesmo. Através das curas de Jesus, o reino de Deus irrompe no mundo de sofrimentos. Egeirein significa ressuscitar. Conforme Billerbeck, também aos rabinos foi reconhecida a capacidade de ressuscitar mortos. Jesus mesmo ressuscitou a filha de Jairo (Mt 9.23-26), o jovem de Naim (Lc 7.11-17) e Lázaro (Jo 11). Jesus não se curva ante a morte, mas diz a sua antipalavra. Ele ataca a morte e quebra o seu poder. Jesus transforma a situação por ela dominada. Os discípulos também são enviados para não se curvarem ante a morte. Porque Jesus não se calou, por isso os discípulos não devem calar-se, mas atacar a morte, transformar a situação por ela dominada. Eles estão a serviço da vida. Ressuscitar mortos significa promover a vida. Daimonia são espíritos independentes e intermediários que, conforme a crença popular, entram nas pessoas e causam doenças, principalmente doenças psíquicas (Bauer). Jesus expeliu demônios e mandou os discípulos fazerem o mesmo. Confira Mc 5.5, a descrição de um endemoninhado, com Mc 5.15, a descrição do estado de espírito do endemoninhado curado: Andava sempre, de noite e de dia, clamando por entre os sepulcros e pelos montes, ferindo-se com pedras. – Indo ter com Jesus viram u endemoninhado, o que tivera a legião, assentado, vestido, em perfeito juízo. Este é o efeito da expulsão de demônios: a paz volta a habitar na vida do atingido. Pertence a práxis dos discípulos expulsar os demônios que existem nos homens e que tiram a sua paz interior. Conforme 12,28, na atividade de Jesus, de expelir demônios, o reino de Deus, anunciado como próximo, se torna presente.
Já nos sumários da atividade de Jesus, em 4.23-24, e 9.35, pregar e curar aparecem lado a lado, assim como em Mt 5-7 aparece o Jesus da palavra e em Mt 8-9 o Jesus da ação. Mas agora os discípulos mesmos são incumbidos de pregar e agir. Os discípulos são continuadores da obra de Jesus, incumbidos e capacitados por ele para isso.
Mt 7.22-23 mostra que o poder de expelir demônios e fazer milagres muito depressa se desligou de uma vi vencia cristã. Há aqueles que curam, mas não fazem a vontade de Deus. Para estes vale: Apartai-vos de mim, os que praticais a iniquidade. Milagres e a prática de expulsar demônios não tornam ninguém aceitável diante de Deus. Já na comunidade primitiva houve o perigo de sobreestimar atos de poder em detrimento de uma vida cristã autêntica. Mas não é isso que nos cabe acentuar aqui. O que o texto acentua é que ao lado da palavra está a práxis evangélica, o agir terapêutico, a promoção da vida, a ação que devolve a paz ao homem transtornando. Ser enviado por Jesus significa, por isso, sempre: pregar e agir, e estar capacitado para ambos.
2. O chamado à despreocupação (vv. 9-10)
Em uma série enfática, em que cada membro da série é introduzido com um nem, os enviados recebem instruções pessoais. Chrusos, arguros e chalcos representam moedas de ouro, de prata e pequenas moedas de cobre. Os discípulos recebem instruções para não se preocuparem com dinheiro, visando talvez financiar a missão
Pera é um saco de viagem. Chiton designa uma camiseta longa, usada diretamente sobre o corpo. Uma segunda camiseta (Almeida: túnica) era levada junto como proteção contra o frio. Os enviados, descritos como missionários itinerantes, são instruídos para não levarem saco de viagem, nem sandálias, nem duas túnicas, nem bordão. Também o uso de sandálias é desrecomendado. Os discípulos devem colocar-se a caminho, levando somente o estritamente necessário. Não devem preocupar-se com coisas exteriores. Devem dedicar-se exclusivamente à sua missão. Esses versículos têm uma conotação muito forte com Mateus 6.25 e 32, onde lemos as palavras: Não andeis ansiosos pela vossa vida, quanto ao que haveis de comer ou beber; nem pelo vosso corpo quanto ao que haveis de vestir. Porque os gentios é que procuram todas estas cousas; pois vosso Pai celeste sabe que necessitais de todas elas. Os versículos contêm um convite a despreocupação.
O dito popular Porque digno é o trabalho do seu alimento”, que agora aparece como enunciado de Jesus, aponta para uma época em que a missão já é mais organizada. Já existem regras na missão (cf. 1 Co 9.4ss). Note-se, no entanto, a diferença de Lucas para Mateus. Lucas (10.7) fala de salário (mistos) onde Mateus fala de alimento (trofe). Isto é: o discípulo enviado tem direito ao alimento, mas não pode fazer de sua missão uma fonte de renda.
Assim, os discípulos são chamados à despreocupação. Devem dedicar-se integralmente à missão. Eles receberão o suficiente para viver.
3. O procedimento dos portadores da paz (vv. 11-15)
Ao entrarem em uma cidade, os discípulos devem ter por regra informar-se preliminarmente quem nela é digno. Axios (digno) designa o comportamento adequado em relação àquele que procura hospedagem. Os textos paralelos em Mc (6.10) e Lc (9.4) não mencionam esse levantamento preliminar da situação que deve ser feito pelos discípulos. O acréscimo em Mt reflete que a comunidade já fez experiências negativas na missão e pretende evitá-las no futuro. Aspazomai significa saudar. Lc 10.5 mostra que a saudação consistia no voto de paz: Paz seja nesta casa! O v. 13 torna claro que não se trata de um desejo somente, mas, ao formularem a promissão de paz» a paz se desprende dos discípulos e vem sobre os habitantes da casa. A concepção parece ser um tanto mágica. Em todo o caso: Os enviados são vistos aqui como portadores de paz, da paz que provém da proximidade do reino de Deus. Com os enviados vem a paz! Digno, no v. 13, designa a atitude de aceitação da paz oferecida. Se alguém não a aceitar, a paz voltará para os discípulos. A paz não se impõe a ninguém, ela não força a pessoa. Ela é oferecida e espera ser aceita. O gesto de sacudir o pó dos pés simboliza a supressão de toda a comunhão (Bauer) com os moradores da casa onde não foram recebidos. Onde os portadores da paz não foram aceitos, não existe possibilidade de comunhão. Também aqui se espelha uma realidade da missão da primeira comunidade. Nem sempre os missionários foram aceitos. A menção do juízo, no v.15, esclarece que não é possível recusar os discípulos e a sua palavra sem se colocar sob o juízo. Não existe uma zona neutra entre aceitação e não-aceitação. Ou se esta sob a paz, proveniente da proximidade do reino, ou se vai de encontro ao juízo.
Assim, os discípulos são pessoas que, têm algo a oferecer que ninguém mais tem a dar: a paz que provém da proximidade de Deus. A sua oferta pode ser aceita ou rejeitada. Quem a rejeita caminha de encontro ao juízo.
II – Considerações homiléticas
Qual é a verdade deste texto para nos hoje? Onde esta a sua atualidade? Será possível desdobrar em uma prédica todas as instruções que o texto contém? Ou o pregador terá que fazer uma seleção? O que pensam os membros da comunidade, por outro lado, da proximidade do reino? E se eles têm dúvidas sobre a proximidade do reino, de que adiantaria confrontá-los na prédica com a mera incumbência de anunciar a proximidade do reino? A mesma pergunta vale em relação as outras instruções que o texto contém.
Para mim a atualidade do texto está principalmente nos vv.7-8. A comunidade tem duas tarefas específicas: a de pregar e a de agir. O que ela tem que pregar e como ela deve agir, isso o texto nos poderá ajudar a dizer. Mas como só aqueles que estão imbuídos de uma verdade estão capacitados para pregar, eu não vejo outra alternativa do que a de confrontar a comunidade reunida em uma primeira parte da prédica com a própria mensagem da proximidade do reino, para, em uma segunda parte, então, confrontá-la com os imperativos do texto. Assim os que têm dúvidas ouvirão a mensagem e só então receberão as instruções para pregar e agir. Uma vez que o texto só contém imperativos, teria que ser achado, por outro lado, um meio de confrontar a comunidade com a mensagem do reino, o que poderia suceder logo com as primeiras frases da prédica, mais ou menos da seguinte maneira: Aqueles que aqui são enviados não são pessoas do passado, mas somos nós mesmos. E antes de todas as instruções, que depois também ainda receberemos, é-nos dito aqui: vocês, que são chamados para proclamar a outros que o reino de Deus está próximo, vocês mesmos são pessoas que se encontram sob esta grande promissão; para vocês mesmos vale: Deus quer chegar ao seu alvo com o mundo e com vocês – o reino de Deus está próximo.
O que esta mensagem concretamente quer dizer, poderá ser desdobrado em seguida em diversos ítens.
Sempre houve escritores e poetas que tentaram exprimir de maneira profana as esperanças dos homens por um mundo melhor. Thiago de Mello, um deles, possui em sua Antologia Poética “Faz escuro mas eu canto” um texto que exprime bem nitidamente essa esperança humana. Trata-se de um texto intitulado 'Ato Institucional Permanente', de l4 artigos, idealizado pelo autor (cf. pp.61-64). Dois dos artigos deste Ato tem o seguinte teor:
Fica decretado que agora vale a verdade, que agora vale a vida e que de mãos dadas trabalharemos todos pela vida verdadeira.(Artigo l) Por decreto irrevogável fica estabelecido o reinado permanente da justiça e da claridade, e a alegria será uma bandeira para sempre desfraldada na alma do povo. (Artigo VII)
Em diálogo com este texto poderia ser mostrado:
1o Nisto a esperança dos poetas não se distingue da esperança no NT: o mundo só terá chegado ao seu alvo, quando houver vida, quando prevalecer a verdade (cf. a exegese) ;
2° Também em um outro ponto a esperança no NT não difere da do poeta:
quando o mundo chegar ao seu alvo, então não haverá só um pouco de alegria, para alguns escolhidos, mas a alegria será alegria de todo o povo. Então não só algumas vidas serão novas, mas tudo será renovado. Haverá um estado de graça (cf. a exegese).'
3o Só em um ponto o poeta não tem razão: Ele espera tudo como um Ato Institucional Permanente. O que aqui, no entanto, é decretado por homens, para Jesus está ligado ao nome 'Deus’. O que para o poeta é o resultado de uma ação humana, para Jesus será atingido quando Deus tiver chegado ao seu alvo com o mundo. Isto é: quando Deus tiver estabelecido no mundo a sua justiça, então também o homem terá alcançado a justiça, a vida, a caridade e terá chegado ao seu alvo.
No final da primeira parte da prédica o ouvinte poderia ser confrontado com as primeiras consequências desta mensagem: Se isso tudo é verdade, que o reino de Deus se aproxima – e esta é a promissão de Jesus – e com ele o reinado da justiça, da vida, então só uma coisa tem ainda sentido: não continuar a cultivar as nossas pequenas esperanças e continuar desanimados, esperando tão pouco de nós e quase nada de Deus, mas levantar e caminhar e confiar de maneira bem nova!
Na segunda parte da prédica poderiam ser verbalizadas agora as instruções que o texto contém,
1o Enviados para pregar;
2o Enviados para agir;
3° Portadores da paz.
A primeira parte poderia ser iniciada com urna referência ao anterior: Ver o nosso mundo assim, ver as nossas vidas como vidas que vão de encontro a um alvo, isto tira de nós toda a mudez! A comunidade cristã é porta-voz de uma mensagem de esperança. Discute-se na igreja o que pregar. O nosso texto é claro: Que o reino de Deus está próximo. Que Deus quer chegar ao seu alvo com o mundo!
Segundo: Ver o mundo assim, isto significa por outro lado: Não cruzar os braços, mas agir! A comunidade cristã tem uma tarefa, a tarefa de (a) agir de maneira terapêutica no mundo e (b) de promover a vida. Só uma coisa não e possível: Não fazer nada. Estar acomodado. Aqui poderia ser desenvolvido o que foi descoberto na exegese. Nós sabemos hoje, por outro lado, que o poder da morte se manifesta já em meio a nossa vida como agressão contra nós mesmos ou contra outros. Ressuscitar mortos significa por isso também promover em outro a vontade de viver, e evitar comportamentos que desintegram a vida alheia. Aqui poderia ser mencionado que a comunidade cristã vê com solidariedade o trabalho de médicos, enfermeiras, trabalhadores sociais, aconselhadores, etc. Aliás, também na oração final eles deveriam ser lembrados. Ser cristão significa ter um compromisso com a vida!
Na terceira parte poderia ser destacado o que diferencia a comunidade crista de outros que agem de maneira semelhante: Muitos outros também agem assim. Isto tudo não é comportamento exclusivo dos cristãos. Eles inclusive têm muito a aprender de outros, de humanistas, etc. Os cristãos, no entanto, estão comprometidos com estas atitudes, devem empenhar-se neste sentido (cf. vv.9-10), e eles participam destas atividades como portadores de algo que ninguém mais pode oferecer: como portadores da paz. Não se trata de uma paz psicológica ou social. A paz que os cristãos recebem para transmitir adiante é a paz que provém da proximidade do reino de Deus, a paz que provém de Deus mesmo. Porque o reino de Deus esta próximo, por isso os cristãos têm paz a oferecer. De modo que o reino não é um reino em um futuro distante, mas já agora somos presenteados com a paz que provém de sua proximidade – e podemos dar esta paz adiante.
Nem sempre esgotamos em uma prédica um texto. Ou dizemos menos do que o texto expressou na situação original, ou dizemos mais, pois as situações não são mais simplesmente as mesmas. O esboço acima traçado de pregar a partir deste texto é uma possibilidade entre outras. Cada pregador, considerando a sua situação específica, terá que achar o seu próprio caminho – e então talvez outros aspectos do texto ainda venham a falar.
III – Bibliografia
– CONZEIMANN, Hans. Grundriss der Theologie des Neuen Testaments. München, Chr. Kaiser Verlag, 1968.
– GOPPELT, Leonhard. Teologia do Novo Testamento, l. São Leopoldo/Petrópolis, Sinodal/Vozes, 1976.
– KÄSEMANN, Ernst. Mathäusevangelium. (preleção não autorizada pelo autor). Göttingen.
– MELLO. Thiago de. Faz escuro mas eu canto. A canção do amor armado. Rio, Civilização Brasileira, 1966.
– STEPHAN, Gerhard. Meditação sobre Mt 10.5-15- In: Für Arbeit und Besinnung. Ano 25. 1971, pp. 229-236.