Prédica: Mateus 19.16-26
Autor: Dario G. Schaeffer
Data Litúrgica: 15º Domingo após Trindade
Data da Pregação: 18/09/1977
Proclamar Libertação – Volume: II
I – Pensamentos exegéticos
O texto, como o temos atualmente a nossa frente, é de redação bastante recente e não provém totalmente do próprio Jesus. Apenas algumas frases, contidas no todo de nossa perícope, são realmente palavras de Jesus. (Cf. o trabalho introdutório de Brakemeier e outros comentários.) Assim, compartilhamos da compreensão de que esta história foi elaborada abordando um determinado problema bem concreto da comunidade de Mateus. Pois o redator, de extraordinária força sistemática, foi um mestre em atualizar a história de Jesus para sua época (Brakemeier). No presente caso, a problemática está ligada profundamente à posse de riquezas.
O homem que quer saber o que de bom deve fazer, tem em sua memória o uso e a tradição judaica, conforme os quais com obras boas, caridade e religiosidade formal o homem pode chegar mais perto da vida eterna ou até consegui-la. Jesus, no entanto, precisa fazer uma nova colocação. Sua compreensão daquilo que é bom não corresponde à compreensão do homem. Bom é apenas Deus. Isto significa que não é possível ao homem, com sua religiosidade, com seu afã de agradar a Deus, chegar à vida eterna. Tu não consegues saber o que é bom, nem consegues ser bom, poder-se-ia parafrasear o dito de Jesus.
Além disso, existe atrás da pergunta do homem (jovem) a ideia de que se poderia fazer algo mais do que Deus já exige normalmente, algo que supere o que Deus espera do homem. Existe aí a compreensão de que há uma necessidade muito grande de supercompensar as falhas que se faz. Jesus simplesmente lhe indica os mandamentos (em nosso texto os da segunda tábua e a regra áurea – 19b). Isto é, Jesus diz com isso, claramente, que não se pode passar adi arte e além dos mandamentos. Mandamentos não são lição de casa, não devem ser apenas decorados e com isso absolvidos, superados. Ao contrário, os mandamentos são indicações de modo de vida, abrangendo e ocupando toda a existência da pessoa. Não há nada acima deles.
Entretanto, para o jovem, preocupado em agradar, em fazer com que Jesus lhe desse regras mais fortes do que as conhecidas, a lição já estava feita. Ele cumpria os mandamentos. E queria mais. Jesus lhe indica então a consequência lógica e radical de uma vida de acordo com a vontade de Deus: segui-lo. E isto implicava, para o jovem rico, em largar as amarras, em livrar-se daquela segurança que provinha de suas posses e era, ao mesmo tempo, um comprometimento existencial.
Deveria dar aos que não têm tudo o que tinha. Trocar o comprometimento, que as coisas lhe impunham, e a sua segurança, pelo comprometimento único e perfeito com o senhor das coisas, o senhor também de suas posses. Seguir Jesus significava assumir a insegurança, assim como os discípulos a tinham assumido (= abandonaram o velho pai e as redes, deixaram os mortos enterrar seus mortos; não teriam onde reclinar sua cabeça, etc.).
É evidente que com esta colocação Jesus confrontou o jovem rico com a condição de preencher o que diz o primeiro mandamento. Deus é o Senhor das coisas; se por causa dele não conseguir largar ou superar o domínio que os bens têm sobre ele, estará falhando na premissa, estará falhando na condição sine qua non para entender e aceitar os outros mandamentos. Pois apenas alguém que se compromete em primeiro lugar com Deus é capaz de aceitar e viver os mandamentos. E não fazer deles apenas uma ocupação religiosa para salvar a alma.
Pedir o cumprimento do primeiro mandamento, em sua total atualidade, foi demais para nosso personagem. Não havia como dar o passo inicial para ser perfeito. Será que havia então condições para cumprir realmente os outros mandamentos? Em todo caso, nosso texto não fala que o cumprimento dos mandamentos lhe tenha adiantado alguma coisa no seu intento de conseguir a vida eterna. Pelo contrário, a conversa de Jesus com seus discípulos deixa claro que não há condições para um rico entrar nos céus. A comparação exagerada de um camelo passando pelo fundo de uma agulha com o rico entrando no céu deixa isso mais do que claro. Mas a chance é dada. O caso é que ela não é aproveitada. Por isso talvez se possa dizer que a afirmação radical de Jesus não deva ser generalizada. Ela vale apenas para aqueles ricos que não conseguem se livrar da prisão, da opressão, da escravidão, que é sua riqueza.
Em oposição ao diálogo com o jovem rico, que tinha uma sequência lógica, o diálogo com os discípulos, a seguir, não parece mais obedecer muito ã ordem anterior. Isso se deve ao modo de redigir expressões e ditos de Jesus. Por isso, é agora difícil de entender por que os discípulos se apavoram com a afirmação de Jesus e se sentem incluídos na dificuldade de entrar no reino dos céus. Sabemos perfeitamente que eles não eram ricos. Contudo, sabemos também que não renunciaram totalmente as suas posses . Também eles tinham um tesoureiro. E talvez vissem também nisso um compromisso que afasta do seguir a Cristo. Não seria já um prenúncio daquilo que aconteceu com Judas? Isto mostra que os temores dos discípulos não eram infundados.
Existe também a explicação de que este temor não provenha dos discípulos que estavam com Jesus, mas daqueles que redigiram a presente história. Pois sabiam da impossibilidade do homem conseguir, com próprias forças, entrar no reino dos céus (Kaesemann).
Em todo o caso, a resposta de Jesus não é aquela que se poderia esperar, ou seja, que ele dissesse em primeiro lugar: Vocês que sabem o que é seguir-me, estarão comigo no reino dos céus. (v.28) Mas ele responde, antes de tudo, com algo que parece tirar o fio da faca contido nos vv.23s: Para Deus é possível o que para os homens é impossível. Para Deus é possível quebrar a sistemática de que é impossível um rico ser aceito por ele. Quem tem a possibilidade de salvação e de aceitação na mão e Deus e não o homem. Para ele o impossível se torna possível. A ação de Deus é, para a compreensão humana, paradoxo, ilógica. E este paradoxo é que nos mostra a grandeza de sua misericórdia, de sua salvação.
Cabe aqui, embora muito rapidamente, algum pensamento sobre a compreensão de vida eterna, tesouro no céu e reino dos céus, que parecem se confundir em nosso texto e que provavelmente têm um significado muito aproximado. A preocupação do homem rico é a preocupação de qualquer judeu religioso: a de participar da vida completa com Deus, depois desta vida terrena. Isso é, ele está consciente da transitoriedade da vida e que deverá se preparar para o que virá. Esse modo de se preparar é incentivar e, melhor ainda, superar-se em sua religiosidade.
A compreensão, que transparece em Mateus, é que, para entrar de modo total na vida, é necessário desvencilhar-se de comprometimentos com as coisas. A fé deve levar a esta libertação. O reino dos céus, a vida etc. são compensação suficiente para aquilo que se deixa para trás. Haverá nesta nova vida pagamento pelos bens que se perdeu.
Além disso, a vida eterna é acontecimento secular também. É aqui e agora que esta vida começa. Não se pode separar vida terrena de vida eterna, não se pode separar vida diária de vida religiosa. Por isso, o rico precisa assumir a consequência da aceitação da vida eterna, ou seja, dar o que tem aos pobres.
II – Meditação
Procurou-se, na Antiguidade, minimizar a radical idade da afirmação desta passagem. Colocou-se, por exemplo, no v. 24, no lugar da palavra grega kamelos (=camelo), a palavra kamilos (= corda para amarrar navios). Ou mais recentemente, um comentarista descobriu que existia um portão no muro de Jerusalém que tinha o nome de findo de agulha. Estas colocações podem parecer um tanto simplórias, mas mostram que também a igreja estava comprometida com os ricos e, direta ou indiretamente, com as riquezas. A história da igreja também vem comprovar isto. O comprometimento com seu único Senhor deixava de ser tão firme, no momento em que, em nome dele, deveriam ser questionadas e mudadas as relações com os ricos e as riquezas.
Talvez alguém diga que isto pertence ao passado. Todavia, lendo-se comentários de hoje (vide bibliografia) encontraremos uma grande maioria (principalmente os pertencentes a uma sociedade desenvolvida, de consumo) tentando generalizar as afirmações desta passagem para toda e qualquer dependência das coisas. Num certo sentido, não deixam de ter razão esses comentaristas, pois como a riqueza, que muitas vezes domina e governa pessoas, existem inúmeras outras coisas, das quais não somos independentes. Diria que é válido, a partir deste texto, o alerta para todos os que são comprometidos com o que não é importante, com as coisas.
No entanto, existe um fato que não deve ser desconhecido e não pode ser minimizado, sem que se tire a autoridade desta passagem e, com isto, também a argumentação para o que se disse acima: Mateus 19.16-26 escolhe um rico, uma pessoa de muitas propriedades (v. 22) para colocar nela o alerta de Cristo. Não é qualquer um que não vai entrar no reino de Deus, mas o rico (v. 24). E se foi escolhido o rico, isto deve ter algum significado especial, além de ser exemplo para todas as outras dependências que existem. Disse na exegese que o v. 24 “vale apenas para aqueles ricos que não conseguem se livrar da prisão que é sua riqueza. A pergunta que se coloca agora, no entanto, é se existe algum rico que consegue se livrar o isso. Será que há alguém de muitas posses que seria capaz de – em consequência de sua fé – colocar a disposição de necessitados suas posses e suas propriedades? Encontrar alguém assim ser! tão difícil quanto o é para um camelo passar pelo fundo de uma agulha. Este caminho para a vida eterna está fechado para sempre. O rico, por sua própria razão ou força, não consegue se livrar do poderio da coisa.
A realidade de nossos país deixa isso muito claro. São os donos de muitas propriedades, os ricos, que têm na mão o poder. O poder de fazer leis, de fazer a política, de fazer a história de nosso povo. E é naturalmente em proveito próprio que acontece essa história. O desenvolvimento brasileiro não provém do amor ao próximo. Será que ha condições reais de se fazer unia distribuição de renda justa em nosso país? E se houver, por que deveriam os ricos, os poderosos, concordar com isso? Não há condições para que isto aconteça, enquanto houver uma compreensão de vida que só admite vida produtiva. Quanto mais produtiva a vi da,mais valor ela terá. Ou enquanto houver a compreensão de que a justiça que vale para um povo é a justiça dos ricos e poderosos. Ou enquanto a economia do país estiver baseada no lucro conseguido pela exploração da credibilidade das massas (cadernetas de poupança; vendas a crédito com consequentes juros altos e aumento de preços; o lucro do Banco do Brasil no 1o semestre de 1976 foi de 7 bilhões de cruzeiros!); ou então no uso da mão de obra barata, na qual se enquadram pelo menos 50% dos trabalhadores do Brasil.
Portanto, a escolha do jovem rico para fazer essa colocação não tem valor apenas exemplar e geral, mas tem endereço certo: aquele que além das coisas não vê mais nada.
Mesmo assim, o reino dos céus acontece parcialmente aqui no mundo. Exatamente lá onde a vida – pelo fato de ser vida criada por Deus – é levada a sério. Onde a justiça é a justiça de Deus, onde as condições de vida são boas para todos. Mas alguém que entra neste reino dos céus, nesta mentalidade, neste modo de vida, terá que assumir as consequências. Tais consequências Jesus resume em: Vai, vende o que tens e dá aos pobres.
As consequências atuais não são outras, apesar de que se possa diversifica-las. Mas para nós, povo do chamado Terceiro-Mundo, habitantes de um país subdesenvolvido, vale em termos gerais o que Jesus disse. É a mensagem radical, sem meios-termos, aos ricos e poderosos, donos do Brasil.
Será que vai mudar alguma coisa? Depende da confiança que temos no Deus, para o qual tudo é possível. Até mudar a mentalidade de um poderoso.
III – Bibliografia
– DAVIES, W. D. Die Bergpredigt. München, 1970
– KÄSEMANN. Ernst. Matthäusevangelium I. Anotações de preleção. Göttingen.
– LANGE, Ernst. Predigtstudien.V/2, l- ed. , Stuttgart-Berlin,l 971.
– NIEBERGALL,A. Meditação sobre Mt 19.16-26. In: Predigtmeditationen. Caderno 4. 1971.
– SCHABERT, Arnold. Das Markusevangelium. 1a ed., München, 196A.
– SOE, N. H. Christliche Ethik . 3a ed., München, 1965.
– ZIMMERMANN, Wolf-Dieter.Markus über Jesus. Gütersloh, 1970..