Prédica: Mateus 25.14-30
Autor: Gerd Uwe Kliewer
Data Litúrgica: Penúltimo Domingo do Ano Eclesiástico
Data da Pregação: 18/11/1977
Proclamar Libertação – Volume: II
O CAPITALISMO DO REINO DE DEUS
l – Texto e contexto
A parábola dos talentos encontra em Mateus a sua formulação mais orgânica e consistente. O relato paralelo em Lc 19,11-27 parece um pouco confuso, entremeado com outros elementos e colocado numa situação diferente. A minha meditação se baseia, por isso, no texto de Mateus, considerando Lucas só marginalmente. Se e com que propósito Jesus contou esta parábola e se as suas intenções eram as mesmas que a tradição da comunidade de Mateus deu à mesma, não ouso responder. Há concordância geral de que ela se refere ao Reino de Deus. As variantes do texto são muitas, mas nenhuma me parece ter importância exegética. A mensagem da parábola não reside tanto nas palavras quanto nas imagens e no enredo. O que ela nos diz dependerá de como transferirmos as imagens à realidade.
O enredo: Um homem, ao ausentar-se da sua terra, chama os seus três servos (hoje seriam empregados) e lhes entrega os seus bens. Dá a cada um conforme as suas capacidades e habilidades: ao primeiro 5 talentos, ao segundo 2, ao terceiro l talento (que corresponde a mais ou menos 20 kg de ouro, Cr$ 200.000,00). Não lhes dá instruções explícitas a respeito de como proceder com este dinheiro; será que supõe que eles o sabem? (Em Lucas os servos recebem a incumbência de fazer negócios com o dinheiro). Sem instruções precisas, os servos assumem atitudes diferentes a respeito do recebido: Os dois primeiros se lançam a trabalhar com o seu lote e duplicam-no. O terceiro cava um buraco na terra e esconde o talento recebido. Depois de muitos anos volta o senhor e ajusta contas com os seus empregados. Os dois primeiros, sem que nos seja relatada uma explicação ou justificativa sua (as suas palavras não expressam mais que orgulho), devolvem o dobro da soma recebida. O senhor os elogia: Muito bem, servo bom e fiel, foste fiel no pouco, sobre muito te colocarei: entra no gozo do teu senhor. Não há dúvida de que o senhor considera a atuação deles como certa. O terceiro, com temor, vem devolver o talento que guardara tão seguro na terra, explicando: Senhor, sabia que és um homem exigente, que ceifa onde não semeou, que ajunta onde não distribuiu. Tendo medo desta tua severidade, escondi bem o teu talento, para poder devolvê-lo inteirinho. Aqui está. E o senhor? Responde-lhe: Servo mau e preguiçoso! Conhecias as minhas exigências; por que não levaste então o dinheiro aos banqueiros, para que pelo menos eu o recebesse de volta com juros? Tirai-lhe, pois, o talento e dai-o ao que tem dez! – O que segue, no v. 29, já é uma interpretação, uma tentativa de refletir e resumir o significado em forma de um ditado popular (já conhecido também da explicação da parábola do semeador, Mc 4.25 pars.), e o v. 30 repete um motivo predileto de Mateus: lançai-o para as trevas, lá fora, onde haverá choro e ranger de dentes (Mt 8.12; 22.13; 24.52).
A parábola está colocada, juntamente com outras, entre o anúncio da parusia, a instituição definitiva do Reino de Deus (Mateus sempre usa Reino dos Céus), precedida pela grande tribulação, e o início da paixão do Senhor. Ela se situa, portanto, num contexto escatológico (o que, provavelmente, motivou a colocação desta perícope no fim do ano eclesiástico). Ao anúncio da parusia precedem dias de relativo sucesso e mostras de poder de Jesus em Jerusalém (entrada triunfal, purificação do templo). Isso pode ter despertado esperanças entre os seus seguidores, mas Jesus, nas suas palavras proféticas, deixa claro que o Reino de Deus ainda não está estabelecido; virão sofrimentos, perseguições, provações, morte. Ele desaparecerá, mas para voltar em glória para o juízo final. As parábolas dos caps. 24 e 25, bem como a descrição do grande julgamento, querem então ensinar e exemplificar as atitudes a serem tomadas pelos seus discípulos, durante a sua ausência. As exigências do Reino no tempo da» espera são: vigilância, preparação, dedicação, prática do amor ao próximo.
II – Meditação
l. O que a parábola não pretende:
a) Apesar de o v. 29 exprimir exatamente a lei do capitalismo (Ao que tem será dado e terá em abundância, mas quem não tem, até o que tem lhe será tirado – basta só observar o desenvolvimento da distribuição de renda no Brasil nos últimos anos para confirmar essa lei do nosso sistema econômico), a parábola não se presta (felizmente!) para uma defesa do sistema capitalista.
Todavia, não há dúvida que ela se refere à prática capitalista do tempo de Jesus. A expansão do Império Romano e a relativa paz estabelecida dentro dele permitiram o desenvolvimento de um comércio florescente, que dava bons lucros ao investidor hábil. Temos notícias de um sistema bancário incipiente e de um forte fluxo de mercadorias no Império, como também de urna exploração econômica efetiva. Surgiram atividades capitalistas (economias de mercado simples, pré-capitalistas, diriam os marxistas), ligadas principalmente ao comércio, que proporcionavam oportunidades de aplicação de dinheiro e de acumulação de capitais, com riscos altos, mas iguais chances de lucro. Podia-se trabalhar com o seu dinheiro. E já existiam os executivos, os oikonomoi, servos que administravam capitais alheios. A nossa parábola usa os conceitos e imagens da realidade econômica contemporânea para ilustrar uma das atitudes exigidas pelo Reino de Deus. É esta atitude que interessa, não o procedimento
econômico descrito.
b) A parábola também não se presta para mostrar como Deus distribui entre os seus os diversos talentos, isto é, dons, capacidades, inteligência etc., para depois mostrar que o importante não é quantos dons cada qual recebeu, mas se e como ele os desenvolve e aplica na vida. O talento da nossa parábola não é aptidão natural ou habilidade adquirida (Aurélio). É dinheiro, e, querer equacioná-lo com o nosso conceito atual de talento não dá certo. Por quê? Porque os três servos já têm os seus talentos, as suas aptidões e capacidades particulares (= dynamis, v.15), que servem de critério para comissionar-lhes o dinheiro em lotes correspondentes.
2. O que então a parábola pretende ensinar?
Ela ilustra um fato a respeito do Reino de Deus, já presente neste mundo, mas ainda não realizado plenamente. Qual é este fato? Procurarei uma resposta, tentando aplicar as imagens a realidade.
Os servos sem dúvida representam os discípulos de Jesus. Podemos identificar-nos com eles. O senhor que se ausenta e volta, dentro do contexto, pode ser interpretado como sendo Jesus Cristo. Ele parte e deixa os seus servos encarregados de administrar as suas posses. Jesus não faz o mesmo?
Até aí, tudo bem. Mas o que são os talentos? Em outras palavras, qual é a moeda corrente do Reino de Deus (pois dele fala a parábola)? A resposta é fundamental para o entendimento. Conforme um sociólogo alemão, N. Luhmann, os sistemas sociais complexos necessitam de meios de comunicação, códigos simbólicos, que ligam os diversos subsistemas e garantem o seu relacionamento e intercâmbio. 1) Para o sistema econômico este meio é o dinheiro o instrumento de permutação, o símbolo capaz de representar e expressar todos os valores produzidos e em uso na economia. Em termos concretos: pelo dinheiro se realiza o intercâmbio entre mão de obra, fábrica, produto e consumidor, é ele que permite o funcionamento de um sistema econômico tão complexo como o nosso. Luhmann, pensando sobre os sistemas religiosos, chega a conclusão de que o meio de comunicação destes é a fé.
Seria então a fé o equivalente real do talento? Cabe aqui outra consideração a respeito do dinheiro. Este, em especial nosso papel-moeda, não possui valor verdadeiro, mas tem o seu valor somente porque, por consenso geral e instituição oficial, representa simbolicamente valores de mercadorias reais e pode ser usado para a aquisição delas. E a fé? Conforme Mateus, ela se relaciona ao anúncio do Reino de Deus por Jesus, ao seu ensino e à prática correspondente: arrependimento e graça, cumprimento da vontade de Deus, salvação integral, a prática do amor, a dinâmica de expansão (fundamental para a estabilidade de qualquer moeda). Estão aí os valores reais que fundamentam a moeda do Reino, a fé. Deles a fé ë a representação (e a manifestação) simbólica. Que eles têm a sua situação neste mundo, nos acontecimentos do dia-a-dia, permeando todas as estruturas e sistemas, não se discute mais, basta ler os relatos dos evangelhos.
O senhor, depois de equipar cada servo com uma soma de dinheiro, conforme a sua capacidade, se ausenta. Assim bem o nosso Senhor deixou este mundo, incumbindo-nos, cada qual com seu talento, de trabalhar para o Reino de Deus. Agora nós estamos na vez (cf. Mt 28.19c). E de novo vale o paralelismo com o dinheiro. Este só adquire valor real, quando for transformado em capital, isto é, em meios de produção e produtos. Abstraído do seu par, o capital produtivo, o dinheiro não é nada, é nulo, pois capital tem que ser, por definição, produtivo. O valor produzido, porém, tem que ser realizável no mercado, para o capital dar lucro. O lucro é o motor do sistema. O mercado, contudo, pode não absorver o produto, por ser mal feito, não corresponder as necessidades, etc. Transformar dinheiro em capital sempre inclui um risco dentro do sistema capitalista. A gente pode perder tudo, ir à falência, se não estiver a altura das exigências do mercado.
O talento do Reino de Deus também exige ser empregado para virar capital. Tem que ser aplicado às situações pessoais e interpessoais, as estruturas sociais e políticas, as instituições, tanto seculares quanto eclesiásticas. Então vira produto – amor ao próximo, solidariedade, misericórdia, mensagem de salvação – ou, melhor ainda, meio de produção – grupos de conscientização, SICA, CESE, DIACONIA. Assim dá lucro, cresce o Reino de Deus. Mas só colocando o talento em risco, abrindo a mão do dinheiro, se chegará a estas concretizações. Tenho que entrar no mercado com o meu lote, aceitar o desafio da concorrência – outras ideologias, instituições adversas; corro o perigo de ser derrotado, de naufragar com a minha fé, de perde-la. Sujarei as mãos no esforço de fazer produzir o meu talento, às vezes até com o sangue do meu próximo, como aconteceu com Camilo Torres e outros, que levaram o seu compromisso até a última consequência. Em casos como estes ficaremos em dúvida se o talento foi bem empregado. Talvez não nos sobrará nada mais que frustração, decepção. Mas posso também lucrar, alcançar uma vida mais plena, comunicativa, alegre, antecipação do gozo final. E, se vencer, o Senhor me contará entre os servos bons e fiéis. Ser fiel, então, não significa cuidar, guardar bem os talentos recebidos, mas pô-los em risco, à prova, livrar-se deles para fazê-los circular no mundo.
Arriscar, porém, parece não ser algo para todos, principalmente em matéria de fé. É impressionante quantos cristãos procuram, na sua religião, uma coisa segura, firme, imutável – talvez em compensação de toda a insegurança e mudança, em que forçadamente vivem. Uma moeda estável em toda essa inflação, moeda que mantém o seu valor inalterado, própria para a economia transcendental. Mas o talento do Reino de Deus não possui estabilidade absoluta. Depende, como qualquer moeda, dos valores produzidos com o capital que representa (quem produz com o capital naturalmente o homem). Há, porém, os que não se conscientizam disso, veem no talento do Reino um valor absoluto, tão precioso que resolvem guardá-lo, enterrá-lo num lugar seguro, o mais seguro que conhecem. No tempo de Jesus isso era uma cova na terra. Hoje, provavelmente, seria uma caixa-forte, de aço, à prova de fogo, com fechadura de segurança.
Enterrar o talento do Reino, que vem a ser isso? Parece-me que um lugar, onde podemos enterrá-lo hoje, são as estruturas eclesiásticas. Transformamo-las em armações rígidas, imutáveis, de concreto armado, à prova dos fogos do tempo, das intempéries do processo histórico, e depositamos nelas o talento do Reino. Lá ele está seguro, segurado por uma seguradora transcendental (o nosso grande engano!). Colocamos ainda algum pessoal especializado em cuidar dele, em mantê-lo brilhante e limpo, e depois, de vez em quando, em ocasiões especiais, nos acercamos para abrir o cobre (ou o buraco na terra), para ver se ainda está aí. Apreciamo-lo, rendemos-lhe culto, certificamo-nos de que está à disposição para o dia da prestação de contas. Aliás, não se deveria esquecer que também uma Faculdade de Teologia pode servir de cofre do talento, mantendo-o lustroso e claro, mas improdutivo.
Muitos não confiam no cofre público da igreja. Abrem o seu buraco particular, meio às escondidas, o seu círculo pietista ou bíblico, de oração, ou se empenham, neste círculo a preservar e defender a sua fé; olham, analisam, viram e reviram o seu talento, mas não o arriscam, não abrem mão dele. Ele é a garantia da sua relação com o Senhor (não foi ele quem lhos deu?). Como então desligar-se dele, pô-lo em risco?
Não me entendam mal (pelo menos não mais do que necessário). Não falo contra as estruturas, os círculos, mas contra a sua transformação em cova do talento do Reino, Assim como a terra não é esconderijo, mas antes de tudo fonte de vida, de produtividade, assim as estruturas e círculos podam ser instrumentos, meios de produção no Reino de Deus, na medida em que abrem mão de seus talentos, voltando-se para fora, para o mercado. Examinemos uma vez os orçamentos das nossas comunidades e da Igreja. Que parcela da receita está voltada para dentro, para manutenção de serviços internos, preservação, e que parte vai para fora dos seus limites?
Vejo ainda outra maneira de enterrar o talento do Reino. Pois o afundá-lo na terra mesmo, isto é, nas estruturas terrenas, no Reino deste Mundo. Obtenho então uma cristandade, uma civilização cristã, uma cultura ocidental com os seus valores inspirados nos ideais cristãos. Aí então o talento também produz, mas não para o Reino de Deus. Outra vez podemos traçar um paralelo à teoria sociológica de N. Luhmann. Diz ele que também os sistemas políticos, os sistemas de poder, precisam do seu meio de comunicação, que é uma ideologia. A fé cristã pode entrar nesse papel; sim, faz e fez bons serviços como ideologia de sistemas de poder. E, se não me engano, tenho ouvido ultimamente vozes se levantando mais uma vez em defesa dos altos valores cristãos contra o ataque do comunismo.
Mas como, perguntará alguém, o talento não deverá ser aplicado neste mundo, o Reino de Deus não deverá permear as estruturas seculares? Claro que sim, respondo, mas não enterrando-se, aprisionando-se nelas. O talento feito moeda corrente do Reino deste Mundo é mais que enterrado, é falsificado, alienado. Torna-se instrumento de interesses de classe, de poderes contrários à transformação do nosso mundo, conforme a vontade de Deus. Se alia com o status quo. O talento, para gerar os produtos correspondentes, tem que ficar moeda do Reino de Deus.
Resta dar uma olhada para os três servos reunidos perante o seu senhor. Os dois que duplicaram seu capital de giro se manifestam. Entram para a festa final, suponho eu, e se aproveitam (será que eles já não se aproveitaram antes? Será que entregaram todo o lucro?). Somente o terceiro sente-se impelido a justificar-se : Senhor, sabendo quanto valor dás aos teus bens, conhecendo a tua severidade, não ousei arriscar o teu talento. Aí tens o que era e continua teu. Não é este quem maior respeito mostrou para com a dádiva recebida? O medo de que fala deve tê-lo acompanhado todo o tempo da ausência do Senhor. (E não observamos, frequentemente, este medo naqueles que tão ansiosamente se empenham a guardar, a defender a sua fé?) Era justificado este medo do senhor? É verdade, ele é exigente, severo, zeloso para com os seus bens. Mas não no sentido em que o servo o entendeu. Ele não quer temor, respeito, reverência a sua dádiva. Não quer vê-la transformada em símbolo da sua existência em garantia de sua volta. Quer vê-la transformada em capital, em obras de amor, de esperança, em sinais do Reino de Deus. Não se incomoda que o talento original se perca, desde que em lugar dele lhe sejam devolvidos outros tantos. O servo não conheceu bem o seu senhor, não entendeu o que ele pretendia ao distribuir os seus bens. E por isso perde tudo e termina lá fora, nas trevas, onde haverá choro e ranger de dentes. Sinto dó dele. Não seria a hora da misericórdia, da graça? Obviamente não. É hora de juízo. De graça , nesta parábola, não se fala.
III – Para a prédica
A parábola é um conto, que, de forma alegórica, procura explicitar uma realidade, uma mensagem superior ao seu enredo. Usei novas imagens alegóricas para aproximar-me a esta mensagem. Parece-me que o texto se oferece para contar casos, isto é, concretizar ainda mais as comparações feitas na meditação, aumentá-las e transformá-las, sempre partindo da realidade sócio-econômica e religiosa do ouvinte. Este deverá reconhecer, nas imagens e nos casos apresentados, as atitudes suas e de seu grupo, para formar, no melhor dos casos, critérios de auto-avaliação.
1) Cf. N. Luhmann, Gesellschaftliche Evolution und religiöse Dogmatik (Manuscrito mimeografado).