Prédica: Mateus 5.38-48
Leituras:
Autor: Ulrico Sperb
Data Litúrgica: 18º Domingo após Trindade
Data da Pregação: 09/10/1977
Proclamar Libertação – Volume II
Tema:
I – Considerações exegéticas
A introdução a este texto está em Mt 5,17-20. Jesus diz (vers. 17): “… não vim para revogar, vim para cumprir.” Seguem-se várias frases que começam com Ouvistes que foi dito (vers.21; 27; 33). E o texto para este domingo apresenta os dois últimos ouvistes que foi dito (vers.38; 43). Jesus cita então velhas leis do povo judaico.Corrige-as ou leva-as ao extremo. Neste aspecto já notamos que nossa perícope se divide em duas partes: vers. 38-42 e vers.43-48. Na primeira Jesus corrige a lei fundamental da sobrevivência humana olho por olho, dente por dente. E na segunda parte Jesus corrige a velha tradição do amarás teu próximo e odiarás teu inimigo. Estas duas partes estão relacionadas entre si pelo fato de abordarem o relacionamento com pessoas de difícil relação.
Vers. 38: Na lei mosaica encontramos fundamentado o direito à vingança (Êx 21,24; Lv 24,20; Dt 19,21). Os juízes têm o dever de impor castigos que equivalham ao mal cometido. Não só a lei judaica, mas também a grega e a romana, além de outras, mantinham este fundamento. Esta é uma lei básica. Sem ela os códigos penais seriam fracos e ineficientes para manter a ordem na sociedade.
Vers. 39: E esta lei básica é contestada por Jesus. Eu, porém, vos digo… Jesus, porém, não instituiu o princípio da não-resistência. Também não se pode confundir este texto com fatalismo. Aqui não se trata, por outro lado, de abdicar da justiça. Jesus quer, isto sim, tirar de seus seguidores pensamentos de vingança. Os discípulos devem, portanto, aprender a suportar a injustiça. Pois quem segue a Jesus pode contar com perseguições. Oferecer a outra face é a atitude daquele que segue a Cristo. Esta é a maneira cristã de fazer frente à injustiça.
Vers. 40: Esta atitude é reforçada por Jesus: é preferível suportar do que praticar uma injustiça. A figura usada deixa claro que por causa de Deus pode ser necessário entregarmos tudo, mesmo que fiquemos despidos.
Vers. 41: Supõe-se que os rabinos exigiam dos seus discípulos o acompanhamento. O discípulo tinha o dever de ir junto com seu mestre. O que era uma lei Jesus transforma num princípio voluntário: a disposição de prestar qualquer serviço, mesmo que seja o mais simples.
Vers. 42: Sempre de novo pode-se encontrar o pedido de ajudar os necessitados. Não só na tradição israelita, mas entre todos os povos. Jesus, porém, não quer apenas citar um lugar-comum. Nesta frase Jesus quer deixar claro que seguir seus ensinamentos implica numa liberdade perante os bens materiais.
Vers. 39-42: Jesus não prega simplesmente novas virtudes. A lei mosaica estabelece antes de mais nada a relação do israelita com Deus. Nestas frases Jesus expressa que a obediência a Deus tem um cunho mais profundo do que se possa imaginar. A relação com Deus implica em todos os campos da vida e não apenas em fatos superficiais. E isto Jesus explica a seus discípulos, aos que o seguem. Seguir a Jesus, portanto, significa estar disposto a assumir um caminho difícil, o caminho da paixão.
Vers. 43: O mandamento do amor ao próximo está ancorado na lei de Moisés (Lv 19,18). Não tem, no entanto, o lugar de destaque que assume no Novo Testamento. A frase odiarás teu inimigo não encontra respaldo no VT. Jesus, entretanto, não a inventou. Ela se baseia na tradição de que o amor só vale ao próximo (irmão, parente ou amigo). O inimigo é automaticamente odiado. O amor na tradição israelita tem limites. Dirige-se ao próximo, e quem não for próximo não precisa ser amado.
Vers. 44: E este esquema é questionado por Jesus. Mais ainda, Jesus rompe com esta situação da vida humana. E ele mesmo dá o exemplo, orando pelos seus algozes (Lc 23,34). Quem se propõe a seguir a Jesus tem que contar com inimigos e perseguidores. E, ao invés de reagir contra eles, deve estar disposto a amá-los e orar por eles. Isto, porém, só pode ser vivenciado. Não se pode fazer de conta como se o inimigo fosse amado.
Vers. 45: Os filhos de Deus sabem amar também aos inimigos. Deus não instalou em sua criação sistemas climáticos com capacidade de distinguir entre bons e maus, justos e injustos. A ação de Deus baseia-se na bondade. E a ação dos filhos de Deus também se baseia na bondade.
Vers. 46: Jesus de modo algum quer insinuar pensamentos calculistas nas pessoas. Ou seja: amar os amigos não traz lucros; a recompensa esta no amor aos inimigos. Trata-se, isto sim,de uma crítica ao amor interesseiro dos fariseus que somente amavam aos seus colegas e amigos. Por isso a quase irônica comparação com os publicanos. O verdadeiro amor não faz cálculos e por isso se dedica a todos. Também aos que não oferecem lucros.
Vers. 47: A saudação é mais um exemplo que Jesus usa. Ela não é apenas um gesto formal, válido para os amigos e conterrâneos. Quem segue a Jesus, quem é filho de Deus, é capaz de saudar também aos seus perseguidores e inimigos. Além disso temos que levar em consideração a saudação israelita: Paz seja contigo.
Vers. 48: Aqui não se pensa na perfeição conforme a filosofia grega: como ausência de erros. Para Jesus a perfeição reside no convívio com Deus. Ser perfeito, portanto, significa dedicar-se totalmente a Deus.
Vers. 44-48: Amar o inimigo não é uma nova virtude instituída por Cristo. £, isto sim, uma nova maneira de encarar a vida: assim como Deus é misericordioso, nós também podemos viver e ser misericordiosos. E uma nova maneira de relacionar-se com o outro, a partir de nossa relação com Deus. E nisto Jesus inclui uma nova mensagem sobre Deus; Ele é o Pai bondoso.
Vers. 38-48: Jesus anuncia neste trecho do Sermão do Monte o aspecto do Evangelho que se refere ao amor que não se vinga, nem se desforra. E ao amor que ultrapassa o limite do normal e lógico, para aceitar também o inimigo. Este é um evangelho estranho, realmente novo. Atinge e rompe estruturas de vida. As atitudes preconizadas por Cristo somente são possíveis para quem o segue e é seu discípulo. Não se pode fazer delas leis. Pois elas se tornariam estáticas. Não são exigência de vida, mas sim possibilidade de convívio. Por isso justamente são Evangelho.
II – Atualização
Seria um erro transformar as palavras de Jesus numa doutrina de virtudes e deveres ou numa ética de bens e valores. Facilmente pode-se descambar para o legalismo neste texto.
A perícope é puro Evangelho: ela mostra uma possibilidade de vida completamente nova.
É uma ilusão pensarmos que vivemos num mundo melhor do que o mundo de Jesus de Nazaré. Também hoje imperam a vingança e o ódio ao inimigo.
A – Por isso caracterizamos o mundo atual com base nos vers.38 e 43.
1. A justiça é cega: ela não precisa ver, pois para ela basta pesar a culpa e colocar como contrapeso o castigo na balança. O olho por olho, dente por dente encontramos na justiça por conta própria, quando alguém faz justiça com as próprias mãos. Encontramo-lo na justiça civil que tem caráter meramente punitivo. Encontramo-lo na justiça política que elimina de uma ou de outra forma todos que divergem da opinião oficial. Encontramo-lo na justiça econômica, onde impera a luta da concorrência. Encontramo-lo na justiça internacional, onde nações exploram outras e onde há desejos de explorar.
2. O amor dirigido e delimitado é normal em nossa vida. Os homens de hoje odeiam do mesmo modo como os de então. Odiar o inimigo parece tão irreal. Mas visualizemos uma vez quem tudo pode ser o inimigo: – É o vizinho que contesta as fronteiras da propriedade. É o patrão que explora o empregado. É o empregado que não corresponde as ordens do patrão. É o concorrente que impede maiores lucros. É o motorista que não deixa ultrapassar. É o cônjuge que não se adapta mais.É o filho que não se enquadra. É o pai ou a mãe que não quer entender. É o preto que estorva o branco e vice-versa. É aquele que não aceita os nossos pensamentos.
3. Vivemos tão envolvidos nas pequenas e grandes vinganças, nos pequenos e grandes ódios que já nem notamos o que se passa conosco e ao nosso redor. Com que facilidade se exige a pena de morte de uns e se aceita a liberdade de outros. Ainda hoje vale a justiça do mais forte, daquele que está no poder. Todos lutam para estar por cima. E para subir é preciso derrubar. É aí que surgem as mágoas, os ressentimentos, as vinganças e os inimigos. Isto vale tanto para a vida individual, como para a coletiva, bem como para as relações internacionais.
B – Para dentro deste mundo em que vingança e ódio são normais, é anunciada a possibilidade de romper com essa miséria. É a alternativa que não foi inventada pelo homem. Foi proclamada e exemplificada por Jesus Cristo. Não é mais preciso revolver-se no círculo vicioso das desforras. Jesus proporciona a possibilidade de libertação deste esquema. Vejamos este aspecto do Evangelho conforme os vers. 39-42 e 44-48.
1. Seguir a Jesus significa encontrar no caminho pessoas que vivem conforme os métodos descritos acima. Como exemplo quero citar quão facilmente é difamado ou até taxado de comunista o cristão que a partir de sua fé trabalha para superar as explorações sociais. Para tais pessoas Jesus anuncia que é melhor não resistir ou desistir, mas sim continuar dentro de suas convicções. Mesmo que isto signifique receber mais golpes. E assim vai surgir a liberdade frente ao que dizem e pensam de nós. Quando nos preocupamos pela nossa imagem, não estamos livres para agir.
Mesmo que a perseguição chegue ao máximo (vers. 40), o cristão sabe-se amparado por Deus (Mt 5,11.12). Jesus inclusive promete liberdade dos bens materiais. Porque os homens estão muito presos a suas posses, não conseguem viver livremente.
2.Os inimigos não devem ser amados porque merecem uma chance. Este critério seria muito subjetivo. Eles são amados por causa de nossa relação com Deus. Porque Deus é nossso Pai, nosso amor não está restrito a fronteiras por nós traçadas. O fator evangélico sobressai aqui, porque no amor ilimitado encontramos a verdadeira comunhão com Deus. Em outras palavras: amor não pode ser lei. Não posso ordenar a Outro: ame! O amor é um estado de espírito. Por isso é evangelho: é concedido a quem quer recebê-lo.
C – Ser cristão na sociedade brasileira não é tão fácil como nos pareceu até agora. Justamente porque deixamos valer ódio e vingança é que não nos batem na face, nem nos tiram a roupa, tampouco nos obrigam a trilhar caminhos preestabelecidos. Nossa pregação tem se restringido à vida individual e familiar. Não mexemos na sociedade, porque traz perseguições e inimizades. O Evangelho nos leva a amar nosso inimigo. A orar por ele. Isto são verbos que refletem ações e não somente palavras. Amar também significa corrigir, admoestar e anunciar o Evangelho. Quando alguém abusa de seu poder e de sua autoridade, então devemos dizer-lhe isto. Orar por alguém inclui ir falar com ele e não mandar Deus em nosso lugar. Significa deixar-se enviar por Deus.
Seguir a Jesus Cristo no Brasil significa dar aos que pedem e emprestar a quem o deseja. Os luteranos brasileiros de um modo geral têm um nível de vida bom. Principalmente se os compararmos com grande parcela do povo brasileiro. O que os luteranos, no entanto, não sabem muito bem é repartir e compartilhar. São muito presos ao seu dinheiro. E fun-damentam isto numa ética do esforço. É muito importante uma palavra evangélica para dentro desta situação.
Jesus Cristo viveu de uma maneira bem simples para anunciar a mensagem de seu Pai. E nós, pelo contrário, temos muitas exigências na vida. Por isso ficamos presos ao campo de força do olho por olho e do ódio ao inimigo. Porque nos amamos demais, não conseguimos a verdadeira (perfeita) comunhão com Deus. E conseqüentemente não temos a relação correta com os outros.
Certa vez ouvi a frase: a ausência de perseguições à Igreja é muito perigosa. Quando tudo vai bem, caímos facilmente na tentação do acomodamento. Esta é a situação aparente no Brasil. Digo aparente, porque ou a Igreja não é autêntica ou os autênticos são perseguidos. Muitos que procuram vivenciar o Evangelho são perseguidos. E as vezes em nome do próprio Jesus Cristo. Há cristãos que no sul do Brasil já nem podem ser mencionados. E o que faz com que não desistam? Sua própria vontade ou será que não é Deus quem os impulsiona?
O Evangelho tem grandes verdades a nos revelar. Ele nos faz encarar a vida e o mundo com maior (auto-)crítica. Se dissermos que não temos inimigos, enganamo-nos a nós mesmos. Pois Jesus sabia muito bem o quanto provocava a inimizade dos poderosos com suas palavras.
E se não estamos incomodando os poderosos, então estamos incomodando os oprimidos. Alguém em todos os casos está sofrendo com nossa omissão.
III – Prédica
A pregação sobre esta perícope necessariamente acarretará em alguns problemas ao pregador. Ou ele agradará a comunidade e desvirtuará as palavras de Jesus. Ou ele pregará aquilo que tem a dizer e com isto cairá no desagrado dos ouvintes. O Evangelho desmascara muitas situações, com as quais somos coniventes.
Alguns aspectos que podemos abordar em nossa prédica.
1. O caminho do cristão não é marcha triunfal. O caminho do cristão passa pelo fracasso da cruz, é árduo e escandaloso. A liberdade do cristão está no perdão de Deus. A cruz leva em seu aparente fracasso até Deus. É necessário, porém, que aceitemos esta cruz.
2. Jesus Cristo anunciou nova vida a todos que querem segui-lo. É muito importante para nós que superemos preconceitos, para de fato irmos ao encontro daqueles que normalmente desprezamos e marginalizamos. E muitas vezes os tratamos pior do que a um inimigo. Para o cristão, inimigo é aquele que impede ou persegue por causa da fé. Doravante podemos amá-lo e orar por ele. Pois ele ainda não chegou onde nós estamos: com Deus. Os inimigos no Brasil são os que não querem mudar sua vida para o bem de todos. São os gananciosos que relegam milhões a condição de sub-vida.
3. Jesus Cristo anunciou a alternativa ao ódio. Esta é uma nova justiça – a do perdão. A alegria consiste em perdoarmos, em não resistirmos. Ela não reside na satisfação da vingança. No Brasil os difamadores e acusadores são os que nos batem na face. A eles podemos tranquilamente oferecer a outra face. Pois eles não nos podem separar de Deus.
4. Seguir a Jesus Cristo à luz deste texto liberta do ódio e da vingança – ocasiona paz. Paz que provém do convívio com Deus. E este deve ser o ponto chave da pregação. Por causa de nossa relação com Deus, estamos livres da vingança e do ódio. Mais ainda, estamos em condições de ajudar a todos indistintamente.
Bibliografia
– BRAKEMEIER, G. Observações introdutórias referentes ao evangelho de Mateus, publicado neste livro.
– BULTMANN, R. Jesus. Munique, 1964.
– BULTMANN, R. Theologie des Neuen Testaments. 6- ed., Tuebingen, 1968.
– SCHNIEWIND, J. Das Evangelium nach Matthäus. Götttingen, 1964.
– THIELICKE.H. Das Leben kann noch einmal beginnen. Stuttgart , 1965, págs. 65-80.
Proclamar Libertação 02
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia