Prédica: Atos 14.8-18
Leituras: Apocalipse 21.10-14,22-23 e João 14.23-29
Autora: Wanda Deifelt
Data Litúrgica: 6º Domingo da Páscoa
Data da Pregação: 21/05/1995
Proclamar Libertação – Volume: XX
O texto de At 14.8-18 encontra-se dentro do contexto maior da missão da Igreja primitiva. Trata-se de um episódio relatado por Lucas, situando a narrativa dentro da transição do cristianismo como uma seita do judaísmo para uma religião de perspectiva própria e mais ampla. Dentro deste cenário, Lucas descreve o crescimento do cristianismo. A data da redação é incerta. Há quem situe o texto tão cedo como 70 d.C, mas há possibilidades de o texto ter sido escrito até 90 d.C.
O livro foi erroneamente intitulado Atos dos Apóstolos dentro do processo de canonização. O termo apóstolo é empregado por Lucas para designar somente o círculo dos discípulos de Jesus. Neste sentido, o termo não inclui Paulo, que não pertencia a esse circulo e se converteu ao cristianismo posteriormente. Além disso, Lucas não conta a história de todos os apóstolos que levaram adiante a mensagem do cristianismo no século I. Prioridade é dada a Paulo e Pedro, de forma que muitas atividades importantes de outros apóstolos não são mencionadas.
Originalmente, o texto teria feito parte do Evangelho de Lucas, como dois volumes de uma mesma obra que foram depois separados por motivos estilísticos. Esta informação é importante, pois Lucas não escreve história como nós a conhecemos e interpretamos. Não se trata de uma cronologia objetiva do movimento cristão no século I. Suas colocações são, antes de tudo, afirmações de fé necessárias para o contexto de sua época. A história e o evangelho não se separam.
1.O contexto histórico e literário
Lucas tem um interesse específico em relatar os eventos. Sua tendência é de ciai um tom de vitória e de conquista gradativa de espaço por parte do cristianismo. Na época dele ocorriam perseguições violentas por parte do poder romano a quem se identificasse com o cristianismo. Quando Lucas escreve, Paulo já havia sido executado, Tiago, irmão de Jesus, havia morrido como mártir, pessoas cristãs eram queimadas vivas (como tochas humanas) nos jardins ik-Nem, Jerusalém já havia sido destruída e o templo estava em ruínas.
Apesar de tudo, Lucas tenta manter alto o espírito da comunidade. Não só isto, mas ele inverte completamente o papel do cristianismo: de grupo persegui do, Lucas descreve o cristianismo como um movimento que não fica relegado aos becos e esquinas, mas passa a ocupar o lugar central. O cristianismo não é mera crendice ou fanfarronice de pregadores itinerantes. Trata-se de uma religião de respeito, digna de ter como interlocutores até os mais cultos cidadãos do Império Romano.
Lucas tem uma posição ambígua com relação aos romanos. Muitos comentários já descrevem a maneira benevolente com que estes são tratados. Wengst compara duas abordagens distintas com relação ao Império Romano durante o século I. Uma, encontrada no livro do Apocalipse, usa uma linguagem simbólica para traçar críticas ferrenhas ao sistema romano e à perseguição do cristianismo. Este é visto como uma resistência aos poderes malignos. Uma perspectiva dis-tinga encontra-se em Lucas, onde a tendência é de adaptar, subverter de dentro, mostrar as possibilidades que os romanos oferecem para o cristianismo tornar-se renomado e ultrapassar as fronteiras do judaísmo. É importante relembrar que o cristianismo, nos seus primórdios, não passava de um grupo dentro do judaísmo.
Para tornar-se atraente aos romanos é necessário mudar a retórica e a tática. O cristianismo é descrito como um movimento crescente: a partir da vinda do Espírito Santo, testemunhas atuarão em Jerusalém, em toda a Judéia e Samaria, e até os confins da terra (At 1.8). Confins da terra inclui, obviamente, todo o Império Romano. Lucas quer provar que isso está acontecendo, apesar das perseguições. Para tal, faz uma leitura dos eventos que favorece seu ponto de vista. Em alguns casos, há até contradições entre o texto de Atos e o que o próprio Paulo escreve (At 9.3-30 e Gl 1.13-17; At 15 e Gl 2.1-10).
Em tudo Lucas vê a oportunidade de demonstrar a grandeza, os milagres e os grandes feitos. Mais importante, o relato de Atos quer demonstrar a presença constante do Espírito Santo nas atividades de apóstolos e discípulos. O período entre a ascensão de Jesus e seu regresso não é visto como uma espera passiva. É, isto sim, a oportunidade de mostrar o poder de Deus por meio dos seus feitos na história. Assim, Lucas conta a história do cristianismo não apontando para o passado, mas para o futuro, para o que ainda precisa ser feito.
Uma dessas mudanças é com relação ao grupo-alvo da pregação. Lucas dá ênfase aos gentios, não aos judeus. Não é por acaso que a perícope em estudo está cercada por dois textos relativamente antagónicos aos judeus. At 14.1-7 faz referência à tática geralmente usada pelos discípulos: eles iam à sinagoga e pregavam. Em Icônio, tanto judeus como gregos escutaram as palavras dos discípulos e abraçaram a fé. No entanto, judeus incrédulos os indispuseram contra os discípulos, ultrajando-os e ameaçando apedrejá-los. Em At 14.19s., estes mesmos judeus, juntamente com outros de Antioquia, convencem a multidão a apedrejar Paulo e arrastá-lo para fora da cidade. Ali o deixam jogado porque o têm por morto. Lucas não perde a oportunidade e descreve a recuperação quase milagrosa de Paulo: Enquanto os discípulos o rodeavam, ele se ergueu e entrou na cidade (v. 20).
Uma nota de cautela é necessária quanto a esses episódios. A posição de Lucas com relação aos judeus não pressupõe anti-semitismo. Afinal de contas, Lucas também é semita. O que ele quer é dar exemplos concretos de que o cristianismo não deve se restringir ao judaísmo, mas deve ocupar todos os espaços disponíveis. Esses textos jamais deveriam ser entendidos como um preconceito étnico-religioso contra os judeus. A não-aceitação do cristianismo por parte dos judeus leva à pregação de Paulo aos gentios. A grande aceitação da mensagem cristã por parte de povos gentios é a oportunidade de extrapolar o universo do judaísmo.
Para Lucas, o cristianismo não deve se confinar à Palestina, mas deve se expandir por todo Império Romano. Assim, ele dá prioridade à missão entre os romanos. Mostra que Paulo discursa diante de altos funcionários do Império, como Félix e Festo, que são governadores romanos, e do rei Agripa. Até um anjo diz a Paulo que deve comparecer diante de César (At 26.26). O livro termina quando Paulo está em Roma, sob custódia, mas os versos finais continuam sendo de triunfo e esperança. Mesmo que Paulo tenha sido executado em Roma, Lucas omite a informação para mostrar que a história ainda não terminou. A história do cristianismo não termina com a morte de seus pregadores. Pelo contrário, continua na missão pelo mundo afora.
2. Comentários sobre o texto
O texto começa com a referência a uma pessoa portadora de deficiência. Para mostrar que o que vai acontecer é realmente grandioso, Lucas usa três descrições diferentes para explicar a mesma situação: trata-se de um homem aleijado dos pés desde nascença, coxo e incapaz de andar. Redundante, mas eficiente. Paulo fala às pessoas em praça pública, provavelmente em grego, e este homem escuta o que ele fala. A população da cidade, Listra, fala a língua licaônica (v. 11), mas obviamente as pessoas entendem o discurso de Paulo. Chama a atenção que o conteúdo do discurso não é mencionado. Este fato causa surpresa porque é a primeira vez que uma pregação acontece fora da sinagoga e tem como interlocutores somente gentios. Pode haver três motivos para esta omissão. Em primeiro lugar, a comunidade para a qual Lucas escreve deve saber muito bem o conteúdo dessa mensagem e não é necessário repeti-lo. Em segundo lugar, a inclusão de um discurso tiraria o efeito das palavras dirigidas ao homem e da tentativa da população de prestar sacrifício a Paulo e Barnabé. Em terceiro lugar, a menção desse discurso tiraria o efeito do discurso de Paulo no Areópago (At 17.22ss.).
A fé precede a cura, e não o contrário. Paulo só opera o milagre constata que o homem tem fé para ser curado. Há aqui um jogo interessante. () aleijado é curado porque tem fé. A multidão diz ter fé por causa do milagre. O primeiro está certo, e por isto é curado. Já a multidão erra ao interpretar o milagre como sendo a manifestação de duas divindades do panteão grego. Por isso são admoestados a abandonar seus ídolos e seguir o Deus verdadeiro. Assim, sob a ordem de Paulo para que o homem se levante sobre seus pés, ele começa a caminhar. Quanto à multidão, não sabemos o que aconteceu.
Comentaristas são unânimes em afirmar que Lucas exagera a reação da multidão que observa o milagre. Havia nessa época um grande número de curandeiros e propagandistas religiosos que operavam curas. Curas eram comuns na época. O povo via nelas um poder divino, que vinha dos deuses, mas jamais identificava os curandeiros como sendo os próprios deuses. De fato, causa surpresa que a cura de um aleijado leve a confundir os apóstolos com Zeus c Hermes. Causa admiração que a cura do aleijado leve à exclamação: Deuses em forma humana vieram até nós!
Lucas costura o texto, provavelmente usando um documento onde Barnabé é exaltado por sua atuação em Antioquia (onde ele foi um grande líder). Há diversas rupturas que mostram que o texto foi trabalhado. Primeiro, a história da cura dá prioridade a Paulo e seu discurso, e não há menção até então do nome de Barnabé. Em segundo lugar, a identificação de Barnabé com Zeus e de Paulo com Hermes parece fora de contexto. Zeus é o pai de todo o panteão grego, ao passo que Hermes é um deus secundário. O milagre teria sido operado então por um deus secundário, não pelo maior de todos. Hermes era porta-voz, mas jamais falava na presença de divindades superiores. Lucas explica que Paulo é identifi¬cado com Hermes porque ele é quem falava.
No entanto, o grande assombro da população e a identificação dos dois apóstolos com divindades gregas cabem dentro da sequência de fatos que Lucas quer relatar. Ele quer mostrar que entre os gentios há grandes possibilidades de aceitação da mensagem do cristianismo. O próprio fato de Paulo ter falado em praça pública, provavelmente nos portões da cidade (ao invés de usar a antiga estratégia de abordar primeiro as sinagogas), de fazê-lo em forma de discurso (que cabe bem no conceito grego de retórica) e de se dirigir ao grupo de pessoas que dispõem de tempo para escutar discursos (as pessoas que em geral permaneciam na praça eram os cidadãos, não os trabalhadores) mostra uma transição dentro da perspectiva do cristianismo.
Como em toda tarefa de missão, há também as frustrações e os desentendimentos. Os apóstolos não só são erroneamente identificados com Zeus e Hermes — o que em si poderia ser uma anedota missionária —, mas os sacerdotes querem render-lhes uma homenagem através de sacrifício. Para tanto, trazem touros ornados com guirlandas de flores, para proceder ao sacrifício. Contudo, guirlandas de flores levam tempo para ser preparadas e touros devem ser buscados dos campos. Afinal, este episódio acontece no meio urbano, nas portas da cidade.
Mais uma vez se evidencia a intenção redacional de Lucas. Ele não está preocupado com o lado prático de sua história; a ênfase está no conteúdo. No início do texto fica claro que Paulo fala à multidão em grego, que é entendido pela população. A partir do momento em que as pessoas falam sua própria língua, a situação escapa das mãos dos apóstolos. A multidão exclama em língua licaônica que Paulo e Barnabé são Hermes e Zeus. Os sacerdotes conversam com a multidão em sua própria língua e decidem prestar-lhes um sacrifício. Somente quando os dois são informados (v. 14) do que está aconte¬cendo é que eles apresentam uma reação. E que reação! Até este momento Paulo e Barnabé parecem não saber o que está se passando, mas, quando se dão conta do que está prestes a acontecer, rasgam suas vestes em sinal de indignação e iniciam um discurso inflamado.
Em seu discurso, Paulo e Barnabé apontam para o fato de serem pessoas, gente de carne e osso, assim como a multidão que está ali para reverenciá-los. Eles não são deuses, mas enviados por Deus; não são a mensagem, mas mensageiros. A multidão é chamada à sensatez. Mencionam em parte o conteúdo do discurso proferido anteriormente. Mas é evidente que houve um problema de comunicação. A referência é com relação ao que foi dito e não cumprido: abandonar os falsos ídolos e voltar ao Deus vivo. Foi justamente o que a multidão não fez. Muito pelo contrário, identificaram como Zeus e Hermes os mensageiros do Deus do monoteísmo.
E interessante que não se fala em Jesus, mas no Deus criador, ou seja, o Deus que fez o céu, a terra, o mar e tudo que eles contêm. Por que não há menção de Jesus Cristo em todo o episódio? Talvez Lucas não queira associar o nome de Jesus com os falsos ídolos, de forma que Jesus pudesse ser colocado no mesmo patamar que as divindades gregas. Além disso, Lucas invoca o Deus criador, o que cabe dentro da concepção do judaísmo, mas não necessariamente do helenismo. Lucas e os apóstolos parecem não se dar conta de que há um grande desentendimento, que não há uma linguagem ou um universo comuns para um diálogo. O discurso parece mais apropriado para o judaísmo helenístico do que para o cristianismo.
Por outro lado, a menção em primeiro lugar do Deus criador (ao invés de Jesus Cristo, como se deveria esperar) é uma tentativa de construir uma ponte até a realidade da multidão. Parte-se do que as pessoas conhecem e remete-se ao Deus que criou essas coisas. Como em Gn 1.1-2.4, a ênfase está em desacreditar as divindades locais como falsos ídolos e de identificar seus seguidores como pessoas que se atêm a coisas fúteis e insignificantes. Esses ídolos e seus cultos só existiram porque Deus o permitiu até aquele momento. Porém é chegada a hora da mudança. Apesar de não seguirem o verdadeiro Deus, este não excluiu as pessoas de seus benefícios: dispensando chuvas, provendo estações férteis, saciando as pessoas com alimento e dando felicidade aos corações. Todos os aspectos do ser humano, suas necessidades físicas e emocionais, são supridas por esse Deus.
Se não soubéssemos, poderíamos pensar que Paulo e Barnabé estão fazendo um discurso a favor do judaísmo, pois Jesus Cristo não entra nessa construção teológica. Qual é a ligação imediata entre o salvador do mundo e o Deus criador. Como se trata da primeira tentativa de missão entre um grupo estritamente gentio, a retórica de ambos os denuncia. Eles ainda não sabem exatamente como falar para um grupo não-associado ao monoteísmo. Lucas dá a entender que este é o primeiro passo para tornar-se cristão: seguir somente um Deus.
Contudo, indiretamente ele retoma uma polémica corrente no século I: se as pessoas, para se tornar cristãs, tinham que passar primeiro pelo judaísmo e seguir suas práticas Paulo era de opinião que não, mas obviamente, na hora do aperto, Barnabé r Paulo não hesitavam em fazer uso de conceitos-chaves do judaísmo para melhor explicar o cristianismo.
3. Pistas para uma atualização
At 14.8-18 fala de missão. Dentro da perspectiva gloriosa de Lucas, o cristianismo (apesar das perseguições e dos martírios) é visto como um movimento de crescimento contínuo. Porém o próprio Lucas se depara com as dificuldades subjacentes à missão. Apesar de querer mostrar o grande potencial missionário que os gentios oferecem e a aceitação que à primeira vista é demonstrada, há também muitas dificuldades. Desta forma, o texto termina com o comentário de que a muito custo Paulo e Barnabé conseguiram impedir o sacrifício. A pergunta que clama por resposta é se a multidão finalmente se tornou cristã. Se Lucas não responde, é porque a resposta certamente é negativa.
Mas, então, a missão fracassou totalmente? Se temos a tendência de Lucas de querer ver o cristianismo como um movimento grandioso, que rapidamente vai conquistando seu espaço dentro do Império Romano, então a resposta é sim. O episódio com a multidão, a identificação dos apóstolos com divindades gregas, o total desentendimento da mensagem e a tentativa de prestar-lhes sacrifício levam à conclusão de que se trata de uma missão de tal forma frustrada que nem merece a menção do nome de Jesus Cristo.
Por outro lado, se vemos o cristianismo como um movimento de escravos, de mulheres e crianças (como foi acusado de ser), então a grandiosidade é supérflua. A missão cumpriu seu propósito: um aleijado foi curado porque teve fé. Lucas até parece se esquecer disso no seu relato, na pressa de chegar logo à multidão. Se uma pessoa teve fé suficiente para ser curada, então a pregação e a missão já cumpriram o seu propósito. Para Lucas, no entanto, este não parece sei o caso. A cura não tem um fim em si, mas serve como um motivo para o episódio que se segue. Lucas nem ao menos menciona o nome do homem que foi curado. No entanto, ele foi curado porque Deus teve compaixão de seu sofrimento e deu-lhe fé suficiente para ser curado.
O texto é escrito em um momento crítico do cristianismo. Por um lado, há a necessidade de manter a fidelidade à mensagem de Jesus Cristo, de valorizar os pobres, caminhar junto de quem sofre, pregar a morte na cruz e a ressurreição. Mas, por outro lado, há o ímpeto de querer crescer e tornar-se importante, de conquistar espaço dentro do Império. Essa tensão está presente no texto. Para nós seria importante saber qual foram a reação e o comentário de Barnabé e Paulo depois deste incidente. E evidente que a estratégia e a pregação tinham que ser avaliados criticamente. Também o grupo-alvo mereceria um comentário. Por que o cristianismo era menos atraente para os cidadãos romanos do que era para mulheres, doentes, escravos e escravas? Não está aí uma pergunta básica sobre missão também em nossos dias?
4. Bibliografia
COMBLIN, José. Atos dos Apóstolos. Petrópolis, Vozes, 1988. v. n.
HAENCHEN, Ernst. The Acts of the Apostles: a Commentary. Philadelphia, Westminster, 1971.
NEWSOM, Carol A. & RINGE, Sharon H., eds. The Women's Bible Commentary. London, SPCK, 1992.
WENGST, Klaus. Pax Romana and the Peace of Jesus Christ. London, SCM, 1987.