Prédica: Filipenses 3.17-4.1
Leituras: Jeremias 26.8-15 e Lucas 13.31-35
Autora: Marli Lutz
Data Litúrgica: 2º Domingo da Quaresma
Data da Pregação: 12/03/1995
Proclamar Libertação – Volume: XX
1. A comunidade de Filipos
Filipos é uma comunidade acolhedora. Nela Paulo se sente em casa, entre irmãs e irmãos. Ali se convive entre tensões e conditos, sejam internos, sejam externos. Mas as tensões não abafam a ternura e o carinho que são partilhados reciprocamente. Tem hora para xingar, para desabafar e chorar. É o que Paulo experimenta no combate aos adversários. Mas também tem bons momentos em que se partilham alegrias, dores e Iraque/as, em que se buscam consolo e fortalecimento mútuos nas orações.
Através desta carta, que na verdade é uma junção de três cartas, tomamos conhecimento do que significa para Paulo e outros/as apóstolos/as o seguimento de Jesus Cristo morto e ressurreto. Paulo é preso, torturado, sofre humilhações, é ridicularizado. Em At 16 há um relato sobre uma situação vivida em Filipos que é consequência do viver o evangelho de forma concreta e encarnada na realidade, no mundo. Em Fp 1.20 e 2.17 Paulo dá a entender que pode contar com uma eventual sentença de morte.
Em meio a esse contexto, na prisão, na perseguição e na angústia, Paulo experimenta a graça de Jesus Cristo, que transcende todos os limites da força e da brutalidade humanas. Em sua impotência e em seu sofrimento Paulo se sente próximo a Jesus; sente que tudo isso não o afasta de Jesus, mas confirma sua pertença a Ele. Percebe-se a reflexão teológica de Paulo brotando da realidade por ele vivida. Como alguém que levou o evangelho até as últimas consequências, Paulo afirma: Para mim o viver é Cristo e o morrer é lucro. (Fp 1.21.) Esta fé que brota das incertezas e fraquezas desperta a solidariedade na comunidade e a torna participante da prisão e do anúncio do evangelho com Paulo.
Sua comunhão e solidariedade são experimentadas de forma intensa, até mesmo na dimensão material. A comunidade realiza coletas para Paulo quando ele está preso. Paulo acolhe esta atitude com simpatia, mesmo que tenha como princípio o seu auto-sustento. É o único caso em que acontece essa troca fraterna. Mas essa dimensão material não teria efeito se não fosse a sua experiência a partir da graça. É, na verdade, a força que vem do aparente nada, mas que irmana os/as que agem pelo impulso do evangelho; é o poder que rompe com as forças que obstaculizam caminhos e que faz Paulo perceber: A minha graça u-basta, porque o poder se aperfeiçoa na fraqueza. De boa vontade, pois, mais nu-gloriarei nas fraquezas, para que sobre mim repouse o poder de Cristo.
Paulo não esconde que Filipos é a comunidade que mais o alegrou em suas tribulações e que ele sente saudade dela. É uma comunidade pequena. Surgiu a partir de um grupo de mulheres (At 16.13-15). Boa parte dos exegetas postula não haver ali uma sinagoga. Mas pesquisas recentes apontam para o fato de que o lugar de oração desse grupo foi uma sinagoga. Mulheres exercem forte lide¬rança dentro da comunidade. Fazem parte dos santos mencionados por Paulo no cabeçalho da carta.
Onde estão as mulheres, se Paulo não endereça a carta a elas? Mulheres não são as únicas participantes da comunidade. Há também homens. Mas nossa linguagem, como também o grego, é parcial como o predominante masculino. Elas está embutida no eles. A história é escrita como se somente homens tivessem parte nela. Também o nosso modo de pensar, moldado pelo centralismo patriarcal, impede tantas vezes uma leitura aberta e integradora. Quando lemos aos santos de…, nossa leitura tende ao género masculino. Mas, e as santas'.' As que tanto batalham nas comunidades hoje? Teria Paulo não se lembrado delas, já naqueles tempos?
O que tem favorecido essa leitura parcial (em Filipenses) é o fato de Paulo endereçar a carta aos bispos e diáconos. Sabemos que as mulheres foram perdeu do seus espaços dentro das comunidades à medida que estas foram se estruturando de forma hierárquica. O bispado ou papado passam a ser, a partir dos séculos II e III, a expressão do primado patriarcal da Igreja. Esta perspectiva androceu trica não apenas excluiu as mulheres, mas também os fracos e os que nada são, ou seja, os que estão na perspectiva da cruz.
2. Uma comunidade de mulheres, hierárquica?
A força que reside na fraqueza do crucificado, como Paulo o experimentou, não depende do poder das hierarquias humanas. O testemunho da cruz e ressurreição segue através dos tempos. É levado adiante por mulheres e homens agraciadas/os e fortalecidas/os, assim tornando a memória libertadora do evangelho forte e resistente. Faz parte da nossa tarefa hoje redescobrir essa memória de mulheres que Jesus deixou como herança delas (Mt 26.13). Por que não ouvir no hino cristológico a voz de mulheres assim como cantaram Ana, Maria? Por que não seriam também mulheres que cantam este hino (Fp 2.5-11) na comunidade de Filipos?
Em torno de 40 a 50 depois de Cristo, quando foram escritas as cartas aos filipenses, ainda não havia nenhuma ordem eclesiástica hierárquica. Filipenses l.l é a menção mais antiga da existência de bispos e diáconos, porém sem o caráter de autoridade que vem a adquirir no século II. O apóstolo Paulo inclusive laia em bispos (plural), do que se conclui que não se tratava de um episcopado. A partir de outras cartas (l Co 12) se sabe que havia certa divisão de tarefas e funções, mas predomina a ideia de corpo, onde as diferentes tarefas contribuem para a unidade e igualdade. Nisto, o que confere autoridade não é o cargo em si, mas o serviço realizado através dele.
A função de bispo não estava ligada a um cargo especial dentro da comunidade. O termo episkopos era usado no mundo, grego para designar funcionários administrativos nas cidades. Seria uma espécie de coordenador, gerente. Mas a comunidade de Filipos ainda não está tão estruturada para já necessitar de pessoas (bispos) que a gerenciem. Inclusive em outras comunidades, Paulo tem necessidade de chamar a atenção para haver certa ordem nos cultos, o que é prova dessa falta de uma estrutura mais organizada. Entende-se a tarefa dos bispos a partir de l Ts 5.12, onde o presidir está ligado ao admoestar. Em Filipenses a função dos bispos se realiza através da proclamação e não de uma função administrativa. Diácono/a, de modo diferente do que muitas vezes é interpretado, é a pessoa que proclama, que faz a pregação da Palavra, é a/o missionária/o, tarefa assumida por várias mulheres no Novo Testamento.
Traçando paralelos, bispos e diáconos seriam hoje os membros engajados nas comunidades que exercem liderança. É interessante observar que também hoje as mulheres, fora das hierarquias, são dinâmicas e engajadas tanto no serviço quanto na proclamação do evangelho.
3. Comentários sobre o texto
3.17: Os versículos que se seguem dão continuidade ao tema abordado nos versículos precedentes. O ambiente está pesado. Há sérias contradições quanto à forma de interpretar e viver o evangelho. Paulo chega a apelar, chamando a atenção sobre si mesmo como modelo a ser seguido. Ele faz isto na tentativa de evitar a manipulação por parte de alguns pregadores, que estão influenciando a comunidade negativamente, conforme a descrição no cap. 3 e nos versículos seguintes (18-19).
Mas toda essa discussão não gira em torno de um projeto personalista, como se a pessoa de Paulo fosse o grande ideal a ser imitado. Também não se trata de um determinado tipo de comportamento. O apóstolo aqui está discutindo prioridades, definidas a partir da cruz de Cristo. O modelo é Cristo, e diante disso tudo o que o próprio Paulo buscou a partir de si mesmo, seguindo a tradição farisaica, passa a ser considerado supérfluo (3.8).
3.18: Não é a primeira vez que Paulo alerta a comunidade sobre essa situação. Mas parece que no momento o quadro se agravou. A pressão sobre a comunidade deve ler aumentado, o que emociona Paulo a ponto de chorar. Quem está pressionando a comunidade são os adversários, as pessoas tachadas de inimigos da cruz. Quem são elas?
De acordo com a descrição dos vv. 2-16, trata-se principalmente de judeus convertidos ao cristianismo, ainda ligados a uma religiosidade legalista, que acreditam no advento da justiça através da própria piedade e da busca da perfeição através de suas obras. Em Gl 6.12 Paulo critica os judaico-cristãos por pregarem e viverem a partir desses sinais externos, como a circuncisão, justamente para não sofrerem represálias e perseguições por causa da cruz de Cristo.
3.19: São anunciadas, através de quatro características, as consequências que irão sofrer esses inimigos da cruz:
a) Seu destino é a perdição: esta característica tem um caráter teológico bem geral. Ela reflete a polémica contra os que caminham em direção a seu próprio fim, por buscarem a salvação a partir de si mesmos. A sua condenação está ligada ao juízo de Deus, que parte da própria vivência e ação do ser humano. O ser justo, ou tornar-se justo, como obra meritória, não leva à salvação. O que vale é o compromisso com o próximo que é consequência do amor a Deus (Ml 25.31-46).
b) Seu deus é o ventre: mais uma vez a acusação contra eles está ligada à sua preocupação com sua própria segurança e seu próprio bem-estar. Enquanto que Paulo está sofrendo humilhação, ridicularização, preso com os pés no tronco como se fosse uma pessoa altamente perigosa, esses falsos pregadores anunciam uma religiosidade desvinculada de um compromisso concreto, uma religiosidade voltada para si mesma e fechada para o mundo.
c) Sua glória está na sua infâmia: seu futuro está de fato comprometido, sem perspectivas. Infâmia é a ruína vergonhosa que recai sobre os maus no dia do juízo. É o castigo que também os profetas anunciaram sobre aqueles que não souberam levar adiante o projeto de paz e justiça.
d) Sua preocupação está voltada para as coisas terrenas: esta quarta característica vem confirmar que os inimigos da cruz de Cristo, os adversários que Paulo está combatendo, são os legalistas, os que se consideram perfeitos e por isso já salvos. Mas, exatamente por acreditarem já ter alcançado a salvação a partir da observância minuciosa de leis e tradições, seu projeto é incompleto, não tem futuro. Nele falta o principal: as coisas que vêm do alto, que transcendem as limitações dos projetos humanos, que não são passageiras nem transitórias, mas eternas porque vêm de Deus.
3.20-21: Nestes versículos, em contraste com os anteriores, são colocadas as características e o destino das pessoas que estão no caminho do evangelho. Por se apresentar de forma poética, diversos pesquisadores supõem que se trate de um hino, ou, pelo menos, de uma tradição consolidada. Por esta razão aparecem conceitos até incomuns na teologia de Paulo. O que se quer transmitir é: n) o caráter escatológico da salvação, que não é produto humano, mas vem de Deus. b) Por vir de Deus, é eterna e não passageira, segura e não vulnerável, c) O senhorio de Jesus Cristo supera todos os limites da própria vida e, assim, transcende todas as nossas possibilidades, d) A redenção em Cristo integra o universo inteiro, não só o ser humano, e a transformação será integral.
4.1: Na conclusão deste texto mais uma vez predomina a linguagem do sentimento, do carinho, da alegria. Em meio a todo esse conflito, há espaço para o amor e a ternura. É nesta troca de afeto que ambos, Paulo e a comunidade, se fortalecem. Em si, outra coisa não é do que aceitar livremente a dádiva da graça e do amor de Jesus Cristo. É dessa dádiva que brotam a força e a esperança para lutar e transformar, para enfrentar e recuar, para resistir em meio a tantas tribulações. Permaneçam firmes é a recomendação de Paulo, não a partir de si, pois não se trata de uma demonstração de força, mas sim, permaneçam firmes no Senhor.
4. Propostas para uso deste texto na nossa pastoral
Refletir sobre nosso projeto como comunidade/Igreja: o que nos faz comunidade missionária? Somos comunidade aberta para a sociedade e inserida na realidade? Ou somos comunidade/igreja do rito, da tradição, das leis?
Refletir sobre a nossa proposta (o que Paulo discutia como modelo): somos cristãos e cristãs frios e calculistas do tipo arrogantes, donos de si, que a partir de sua suposta perfeição só vêem cisco no olho dos outros? Distantes da realidade? Alienados? Ou engajados na realidade e nas lutas para transformá-la? Cristãos e cristãs que sabem viver a partir do amor incondicional de Deus, que sabem se perdoar, reconhecer erros, se fortalecer mutuamente, ser amorosos e carinhosos, capacitados para transmitir a fé com ternura?
Não poderíamos deixar de perguntar pelo papel da mulher hoje, como missionária, agente de transformação e lançar o desafio de rebuscar sua memória nas cartas paulinas, a começar por Filipenses.
5. Bibliografia
BARTH, Gerhard. A Carta aos Filipenses. São Leopoldo, Sinodal, 1983.
BORTOLINI, José. A Carta aos Filipenses. São Paulo, Paulinas, 1991. (Série Como Ler a Bíblia).
COMBLIN, José. A Composição Sociológica da Comunidade de Filipos. Estudos Bíblicos, Petrópolis, 1990.