Prédica: Isaías 62.1-5
Leituras: Atos 13.16-17,22-25 e Mateus l.(l-17)18-25
Autor: Nelson Kirst
Data Litúrgica: Véspera de Natal
Data da Pregação: 24/12/1994
Proclamar Libertação – Volume: XX
O conteúdo deste auxílio homilético foi compartilhado e discutido no Seminário de Homilética (SAT), ministrado na Faculdade de Teologia da IECLB no primeiro semestre de 1994. Aproveito para agradecer ao grupo de estudantes que participaram comigo da reflexão.
A opção por Is 62.1-5 atende a uma solicitação dos editores de Proclamar Libertação: escolha livre de um texto do AT para véspera de Natal. A passagem está prevista para o Ano A do Lecionário Ecuménico ABC.
1. Aspectos introdutórios
A perícope faz parte do complexo de Is 56-66, atribuído a Tritoisaías. Este bloco foi anexado ao de Deuteroisaías, caps. 49-55. Deuteroisaías é um profeta da época do exílio babilónico, e sua mensagem é composta exclusivamente de anúncios salvíficos. Já Tritoisaías atua após o exílio, na terra de Judá. O retorno dos exilados já ocorreu e não trouxe consigo a plenitude salvffica anunciada por Deuteroisaías. O povo de Israel vive tempos extremamente difíceis: imperam insegurança, perigos e grande carência, enquanto o povo se empenha penosamente pela reconstrução. O cerne do bloco de Tritoisaías encontra-se nos caps. 60-62, onde o profeta retoma e re-atualiza a mensagem salvífica de Deuteroisaías para seus desanimados e frustrados compatriotas.
Na interpretação que se segue, tomamos por base o texto da edição revista e atualizada de Almeida.
2. O texto
V. 1: O texto inicia, anunciando uma intervenção de Javé: não calarei, não me aquietarei. Por que seria necessária a intervenção de Javé? Inimigos invadiram, arrasaram e queimaram a terra, deixando tudo em ruínas (63.28 e 64.11). É grande o abandono e a desolação (vv. 4s.). Nessa situação, o povo sente abandonado por Javé e suplica por sua intervenção (63.11-19). Por isso, Javé decide interferir, com seu próprio braço e sua própria justiça (59.16).
O versículo indica a motivação para a intervenção de Javé: por amor de Sião e por amor de Jerusalém. Sião é o monte sobre o qual se encontra o templo. Jerusalém é a capital. Devem estar mencionados aqui, simbolizando o lodo de Israel.
O por amor de (melhor seria por causa de) tem uma dupla explicação. Depreende-se do contexto que Javé decide intervir: a) porque tem uma longa história pregressa de fidelidade para com o seu povo (58.14; 63.7-9), e b) porque, com tudo o que vem acontecendo, a própria sobrevivência de Israel está em risco (57.15).
O versículo indica o objetivo dessa intervenção (lb): até que saia a sua justiça como um resplendor e a sua salvação como uma tocha acesa.
A partir do contexto, podemos entender justiça de Israel 'como um estado de relacionamento harmónico entre Israel e Javé, um relacionamento no qual Javé age em favor dos necessitados de Israel e no qual Israel busca a orientação de Javé, e, em consequência, despreza o mal, a morte e a violência, e se empenha pelos necessitados em seu meio.
Salvação, por sua vez, deve ser entendida, a partir do contexto, como uma ação de Javé em favor do seu povo, implicando libertação da violência sofrida, da desolação e das ruínas, e resultando em louvor e na prática do juízo e da justiça por parte de Israel.
Em resumo, o v. 1 diz o seguinte: agora Javé vai intervir em favor do seu povo (Ia), e essa intervenção tem por objetivo (lb) fazer com que o relacionamento harmonioso entre Javé e seu povo, assim como a libertação de toda miséria e opressão, irrompam e se manifestem com brilho e resplendor.
V. 2: Este versículo dá continuidade à dimensão de exteriorização, de manifestação, que constatamos em 1 b. Povos estranhos verão a tua justiça, verão o relacionamento harmonioso com Javé e tudo o que isso implica. E reis de outras nações verão a tua glória, ou seja (outra vez, conforme o contexto), verão a manifestação efusiva das mais impactantes qualidades de Israel, resultantes da nova situação de relacionamento harmonioso com Javé.
Na mesma linha de exteriorização e manifestação, Javé designará seu povo com um novo nome. Segundo diversas passagens deste mesmo profeta, nome é sinônimo de identidade, é representação ou símbolo da própria pessoa. É através do nome que a pessoa se torna conhecida, identificável, designável, relacionável. O novo nome representará a nova identidade de Israel, a partir da anunciada intervenção salvífica de Javé. Ou seja, depois da intervenção de Javé, esse povo terá nova identidade, será como um novo povo — e será conhecido nessa nova identidade.
V. 3: Da perspectiva ampla da nova fama de Israel entre os povos, o texto volta e concentra-se na intimidade do cuidado amoroso de Javé por seu povo. Uma coroa de ornamento (parece-nos tradução mais acurada do que coroa de glória) é algo para ser admirado, algo que seu proprietário gostará de mostrar, que o fará orgulhoso. A coroa de ornamento desperta a admiração e o cuidado de seu proprietário. Nessa figura, manifesta-se o quanto Javé estará cativado por Israel, objeto de sua paixão.
E Israel será um diadema real na concha da mão (melhor do que apenas mão) do seu Deus. Um diadema real, um objeto preciosíssimo, abrigado e protegido na concha da mão. Articulam-se aqui o amor e cuidado de Javé por seu povo.
V. 4: Aqui entra novo personagem: tua terra. Nos vv. 4 e 5 temos tu e tua terra, como duas personalidades distintas. Ambas, tu e tua terra, são vistas como parceiras femininas numa relação amorosa.
Tu, o povo de Israel representado simbolicamente por Sião e Jerusalém, não mais serás chamada Desamparada (melhor seria Abandonada). Israel, na sua situação de miséria e devastação, é a própria imagem da mulher abandonada, largada por seu homem, violentada por outros. Agora, com a intervenção de Javé, essa situação passou. Não mais serás chamada 'Abandonada'.
Tua terra' não mais será chamada 'Desolada'. Como vimos, a terra estava queimada, arrasada, em ruínas. Também essa realidade passou, não mais será.
Como se caracteriza essa nova situação de tu e tua terra?
a) Tu serás chamada Minha-Delícia ou Meu Desejo — aqui a relação amorosa entre Javé e Israel chega à sua mais ousada expressão. Incompreensivelmente, Javé ama tu, essa parceira infiel, desgarrada, opressora, assassina, prostituída (veja, entre outros, 57.1-13 e 17; 58.1-7; 59.2-15) — apesar de tudo.
b) E quanto à tua terra, ela será desposada (melhor que se desposará, Almeida). O termo desposar (ba'al) não se refere à dimensão sexual dessa união; tem, antes, o sentido mais jurídico de tomar por esposa. Fica aberta, ainda (no v. 4), a questão: tua terra será desposada por quem? Afinal, Javé já tem tu. Quem será o parceiro da tua terra?
V. 5: Vem agora a explicação. Inverte-se a ordem dos personagens. Suben¬tende-se, a partir do emprego do mesmo verbo desposar (ba'al — Almeida: esposar), que 5a se refere à tua terra. Poderíamos traduzir: Assim como um jovem toma por esposa uma moça, assim te tomarão por esposa teus filhos. Não precisamos nos preocupar em desarmar possíveis conotações incestuosas. O sentido é simples: a terra de Israel, que havia sido violentada e arrasada por invasores, será, de direito, tomada por esposa pelos filhos de Israel. Tua terra e seus filhos entrarão numa relação regulamentada e estabelecida de mútua pertença, de amparo, sustentação e responsabilidade recíprocos, assim como numa relação matrimonial. Obviamente isso engloba tudo o que está ligado a uma relação harmoniosa e responsável com a terra: trabalho, alimentação, habitação, bem-estar.
Na caracterização da relação entre Javé e tu, seu povo (5b), o aspecto puramente jurídico dá lugar à dimensão do amor apaixonado que se deleita na companheira — que a enfeita, que se enfeita para ela e se extasia com seus enfeites (61.10). As conotações de amor apaixonado do v. 4 recebem agora seu complemento lógico: alegria. Javé explode de alegria ante o prazer dessa relação, uma alegria como a de jovens que se amam (como o noivo se alegra da noiva).
Escopo: numa demonstração de inexplicável amor, Javé promete intervir
— para salvar seu povo da miséria e devastação e
— para restabelecer com ele um relacionamento harmonioso. A nova situação será caracterizada: a) por ardente amor e alegria recíprocos entre Javé e seu povo, e b) por relações íntegras entre o povo e a terra.
3. A caminho da prédica
3.1. Entre a promessa de Is 62.1-5 e a comunidade reunida na véspera de Natal aconteceu Jesus Cristo. Vejamos como fica a mensagem de nosso texto, uma vez passada pelo crivo do escopo bíblico, Jesus Cristo:
a) Depois de Jesus a intervenção de Javé não é mais mera promessa. É promessa cumprida, acontecimento real, com data, lugares e nomes (Lc 2).
b) Jesus é, num grau jamais sonhado pelo profeta, a própria intervenção cabal e definitiva de Javé em favor do seu povo, o ato extremo do inexplicável e apaixonado amor de Javé.
c) Em Jesus, a promessa veiculada por Tritoisaías se cumpre como um ' 'já-e-ainda-não.
d) Em Jesus, rompe-se a limitação nacional da promessa. Nele, Deus estendeu seu amor apaixonado a toda a humanidade.
3.2. O NT não acolhe expressamente Is 62.1-5. Alude, porém, em diversos lugares, às promessas de Deuteroisaías e Tritoisaías. Ao colocar este texto na véspera de Natal, a Igreja indica às pregadoras e aos pregadores que Is 62.1-5 nos ajuda a entender o que se passa no nascimento da criança de Belém. Is 62.1-5 ajuda a interpretar Jesus. Mostra-nos que o nascimento dessa criança:
a) é expressão do amor apaixonado de Deus por nós;
b) é a consumação de uma história pregressa de fidelidade de Deus para com seu povo;
c) é o inconformismo extremo de Deus com a miséria, o sofrimento, as injustiças sofridas por seu povo, em consequência do seu afastamento de Deus;
d) inaugura uma realidade nova, caracterizada por:
— um relacionamento harmonioso com Deus, um relacionamento de amor apaixonado, de deleite e alegria recíprocos — sem medo, infidelidade, apostasia, castigo e distanciamento;
— uma relação de mútuo sustento e mútua responsabilidade com a terra com tudo que isso implica (ganho justo pelo trabalho, sustento adequado, habitação, saúde, segurança, etc.).
3.3. O evento de Jesus já dista dois mil anos de nossos dias. A promeaa se realizou já-e-ainda-não. A tarefa da comunidade cristã hoje é semelhante àquela assumida por Tritoisaías: manter viva a afirmação do cumprimento dessa promessa — apesar da demora e contra toda a aparência.
3.4. Então, vamos, nesta noite fazer festa em família, dar presentes e cantar Noite Feliz. Mas vamos, sobretudo, lembrar com ênfase a razão de toda essa alegria.
3.5. O clima do culto será de euforia, excitação, luzes, emoção, família e solidão. A prédica precisa ser breve. Numa primeira leitura, as e os ouvintes captarão, no máximo, fragmentos esparsos do texto, ou quase nada. A prédica deverá concentrar-se apenas em um ou outro aspecto marcante do texto (sem fugir do horizonte geral do escopo, é claro), e as respectivas partes da perícope deverão ser repetidas reiteradamente.
4. Sugestões litúrgicas
Como alternativa à liturgia convencional, proponho, para essa noite, a seguinte estrutura litúrgica (não constam na relação abaixo os cantos que, obvia mente, deverão permear toda a liturgia):
Acolhida: Saudação informal. Alusão à ocasião e ao assunto específico Explicações sobre o transcorrer do culto.
Saudação apostólica.
Litania do Kyrie. Sugiro utilizar ou adaptar o Kyrie de Celebrações do Povo de Deus, p. 9, ou aquele que foi publicado no Subsídio No. 5 para o culto eucarístico referente ao tema do biênio 93/94, da IECLB. O sentido desse Kyrie é o seguinte: ao iniciar este culto de Natal, a comunidade reunida, antes de mais nada, olha para fora, para o mundo que a rodeia; dá-se conta de que está celebrando este seu encontro com Deus no meio de um mundo dilacerado; inicia, então, esta comemoração natalina, enviando a Deus as suas súplicas por este mundo que a cerca e com o qual o evangelho a compromete. Como comunidade reunida, ela reconhece, aceita e subscreve cada uma das súplicas que serão proferidas, cantando Kyrie eleison ou Tem piedade, Senhor. — Vale lembrar: na origem, Kyríe eleison é o clamor coletivo da comunidade para que Deus tenha compaixão do mundo, e não o clamor de um indivíduo para que Deus tenha compaixão de seus pecados.
Oração do dia (coleta). Trata-se de uma oração referente ao tema do dia e à circunstância de estar a comunidade reunida para o encontro com Deus.
Leitura de Lc 2.1-20 com intercalação de cantos de Natal. Use-se de criatividade na maneira de realizar a leitura. A cada poucos versículos, a comunidade interrompe a recitação com cantos natalinos tradicionais.
Texto e interpretação. Ver as considerações desenvolvidas acima (3.1-3.5). Fazer a interpretação culminar com o
Glória de Celebrações do Povo de Deus, p. 10 e 11. É uma glorificação de Deus Pai, Rei dos céus, e de Jesus, o Altíssimo, com palavras de Lc 2.14 e um texto exuberante do séc. IV. Exalta a intervenção de Deus por nós em seu Filho. Os grupos l e 2 podem ser distribuídos, por exemplo, na primeira estrofe, entre mulheres e homens, e, na segunda, entre as pessoas até 25 anos e as de mais de 25.
Oração de intercessão. Bênção e envio.