Prédica: Jeremias 23.2-6
Leituras: Colossenses 1.13-20 e Lucas 23.35-43
Autor: Nelson Kilpp
Data Litúrgica: Último Domingo do Ano Eclesiástico (Cristo Rei)
Data da Pregação: 26/11/1995
Proclamar Libertação – Volume: XX
1. O momento litúrgico
O dia de Cristo Rei foi instituído pelo papa Pio XI, em 1925, dentro do amplo projeto da Ação Católica que pretendia congregar as forças da Igreja Católica em torno de um avivamento de princípios católicos na vida individual, familiar e social, principalmente contra as forças do liberalismo (em especial do Estado francês, que proibia a atuação do clero nas escolas públicas), mas também contra tendências ecumênicas que tentavam aglutinar-se em conselhos internacionais. Por outro lado, o papa Pio XI também se manifestou contra o nacional-socialismo alemão e em favor do estreitamento dos laços ecuménicos com a Igreja Ortodoxa.
Neste contexto é de se perguntar: por que as igrejas luteranas adotaram essa decisão, na origem não muito ecuménica, de lembrar Jesus Cristo, o Rei, no último domingo do ano eclesiástico? As comunidades luteranas no Brasil estavam acostumadas a lembrar, neste domingo, as últimas coisas, o fim dos tempos, a eternidade. Certamente não foi por motivos históricos que as igrejas luteranas adotaram o dia de Cristo Rei. Consigo vislumbrar os seguintes motivos teológicos:
a) A vinculação do dia de Cristo Rei com o último domingo do ano eclesiástico conseguia fazer uma boa ponte entre o fim de um e o começo de outro ano da Igreja. Jesus é o Cristo, ou seja, o Messias, o Rei esperado e anunciado no Advento e nascido na manjedoura de Belém. Afinal, Messias ou Cristo, ambos são sinónimos de Rei.
b) Há a necessidade de proclamar mais claramente o senhorio de Cristo sobre o mundo. Numa época em que os poderes políticos e econômicos do mundo e, em especial, do nosso país mostram a sua verdadeira cara e os cidadãos de bem estão cada vez mais perplexos com as falcatruas, corrupções e descasos criminosos, os cristãos são desafiados a testemunhar com gestos, palavras e atos que Jesus Cristo não é somente a força que anima a comunidade cristã, mas lambem o poder que conduz a história a uma meta.
c) Como se mostra esse poder de Cristo, o Rei? A vinculação com o período natalino subsequente dá alguns critérios. O Rei dos reinos celestiais é o menino nascido no desdém. A realeza de Jesus Cristo não se evidencia nas demonstrações conhecidas de sucesso económico e realização pessoal, nem nos programas políticos que visam a preservação do poder nas mãos dos que se já se acostumaram a usufruir do poder. A realeza de Cristo está marcada pela manjedoura e pela cruz. A comunidade cristã é desafiada a testemunhar este escândalo.
2. As leituras do dia
As três leituras em epígrafe querem apontar para diversos aspectos da mesma confissão: Jesus Cristo é Rei. A epístola aos Colossenses (Cl 1.13-20) é a que, a meu ver, mais claramente coloca essa confissão. Ela fala do reino do seu Filho amado, que nele foram criadas todas as coisas, até mesmo os tronos, soberanias, principados, autoridades. Este hino cristológico de Cl 1.13-20, apesar de não ser tão conhecido e famoso quanto o de Fp 2.5-11, traz aspectos muito ricos e pertinentes ao dia. O Evangelho, Lc 23.35-43, enfoca o letreiro na cruz de Jesus: Este é o Rei dos judeus. Este letreiro mostra como se manifesta a realeza de Jesus também em nossos dias. A leitura do Antigo Testamento é, nas igrejas luteranas, Jr 23.2-6 (o anúncio de um renovo justo) e, na Igreja Católica Romana, 2 Sm 5.1-3 (Davi é ungido rei sobre todo o Israel).
Para as interligações entre os três textos de leitura remeto às excelentes observações de Hans Trein em Proclamar Libertação XVII (p. 248ss.). Nesta meditação o autor também aponta para eventuais motivos teológicos por que as igrejas luteranas não aceitaram a leitura veterotestamentária original prevista para o dia de Cristo Rei, 2 Sm 5.1-3, substituindo-a por um texto messiânico, a saber, Jr 23.2-6.
O texto veterotestamentário (Jr 23) foi escolhido para ser priorizado na pregação do dia, neste ano. Além da meditação mencionada acima, o texto já foi tratado em PL VI, por Walter Altmann, PL XII, por João A. M. da Silva, e PL XVI, por Marlon R. Fluck. Altmann e Silva tentam interpretar o texto do profeta Jeremias no contexto litúrgico do Primeiro Domingo de Advento, como o previa a série de textos de pregação da Igreja Evangélica da Alemanha. Fluck interpreta o mesmo texto para a situação do 9e Domingo após Pentecostes — Ano B (as ovelhas sem pastor). Todas essas três interpretações de Jr 23 trazem muitas sugestões para a pregação.
3. As dificuldades do texto de Jr 23.2-6
O texto contém linguagem e figuras estranhas e desconhecidas. Talvez seja necessário estar consciente da estranheza das diversas imagens e permitir que se dê vazão às associações que elas comumente suscitam.
a) Poucos conhecem um verdadeiro pastor de ovelhas, um pastor que, de manhã, leva o rebanho de ovelhas ao pasto e, à noite, o reúne e traz de volta para casa, o cercado ou aprisco. A maioria das pessoas conhecerá o sentido figurado de pastor: o líder religioso de uma congregação ou Igreja protestante, em geral pentecostal. A imagem que se tem desses pastores é muito diversificada. Em todo caso, na atualidade ela não é mais exclusivamente positiva. No entanto, dificilmente alguém associaria o pastor com um líder político, um governante ou até mesmo um rei — como o entendem o Antigo Testamento e o texto em pauta.
Em ambiente de cunho cristão a imagem do pastor foi geralmente influenciada pela figura do Bom Pastor. No Sl 23, o próprio Deus é o pastor que cuida de seu rebanho. Em Lc 15, Jesus compara a sua atuação com a de um pastor; em Jo 10.11, ele afirma: Eu sou o Bom Pastor. À minha mente vem logo aquela conhecida figura nas certidões de Batismo: um pastor, de cajado e chapéu, segura em seus braços uma pequena ovelha indefesa. Este tipo ideal desperta um sentimento de aconchego e confiança nesse pastor que se importa com os mais fracos. O texto de Jeremias conhece pastores que fazem exatamente o contrário.
b) De Davi tem-se uma imagem antes indefinida. As duas histórias bíblicas mais conhecidas sobre Davi são certamente a cena da luta com Golias e a do caso com Bat Seba. Via de regra, no entanto, esta última história não chega a denegrir a imagem em geral positiva e até idealizada que se tem do rei Davi: um governante justo e bom, sempre obediente a Deus. Geralmente não se vincula Davi com o princípio dinástico que orientava os impérios e reinos do passado. Por isso, poucos entenderão qual a função de Davi dentro do texto: levantar a Davi um Renovo justo. A frase remete a um outro campo, o da botânica: o broto que nasce do tronco. A semelhança com a profecia de Isaías 11.1 faz com que muitos sintam o clima pré-natalino (' 'Da cepa brotou a rama, da rama brotou a flor).
Israel provavelmente será identificado com o atual Estado de Israel. Judá pode ser associado com judeus. A vinculação com um país moderno atrapalha bastante a pregação sobre a perícope de Jr 23.2-6. Muitos comentadores alemães têm dificuldades em abstrair a promessa contida no texto da atual situação de Israel. Alguns afirmam que os vv. 7-8 (sabiamente não incluídos em nossa perícope) já se concretizaram com o estabelecimento do atual Estado de Israel.
c) Também o termo rei evoca um misto de reações em nós. Reis, rainhas e princesas aparecem em contos de fada ou cm novelas (Que rei sou eu?). A época dos imperadores D. Pedro I e II não deixou marcas visíveis a não ser em Petrópolis, para os turistas. No plebiscito de 1993 os responsáveis pela campanha em prol da monarquia parlamentarista tentaram em vão evocar os aspectos um tanto românticos da realeza. Em geral, pessoas mais realistas associam o rei com despotismo e arbitrariedade. Talvez seja um tanto difícil fazer a ponte do rei para os governantes modernos que governam em sistemas políticos mais ou menos democráticos.
d) Além das dificuldades que nascem da distância entre os leitores e/ou pregadores de hoje e a visão que transparece no texto, há um problema hermenêutico básico. O texto de Jr 23.2-6 é um anúncio profético de salvação dito a um povo que, por culpa de seus governantes e reis, havia sido exilado e disperso em muitos lugares. O anúncio de salvação promete também novos governantes que saibam governar bem o povo de Israel. Em particular, um descendente de Davi governará como rei sobre esse povo e será conhecido como Senhor, Justiça Nossa. A Igreja cristã interpretou esta promessa como tendo sido realizada em Jesus. Aliás, esta é a confissão básica da comunidade cristã: Jesus é o Cristo (= o Messias, o Rei prometido). Por este motivo é que o texto pôde e pode servir de base para pregação na época de Advento, quando se espera e prepara a vinda do Rei.
Mas não estamos mais à espera do Cristo. Ele já veio. Desta forma, teríamos que alterar a perspectiva do texto profético: Jesus não é somente o Cristo que vem, mas ele é o Rei que reina, agora e de fato, com justiça sobre o seu (?) povo. Esta confissão ousada — o próprio tema do dia de Cristo Rei (cf. l Co 15.24s.; Fp 2.9-11; l Tm 6.15) —, quando colocada no fim do Ano da Igreja, torna-se de novo esperança escatológica: o reino de Cristo ainda não está totalmente instalado neste nosso mundo; só no fim dos tempos é que esse reino se mostrará de forma clara e unívoca. Fecha-se o ciclo; estamos novamente na fase da promessa veterotestamentária. Essa complicada volta hermenêutica, sem dúvida, dificulta em muito a tarefa do pregador ou da pregadora. As trilhas apontadas a seguir são apenas humildes tentativas de contemplar toda a riqueza resultante da inter-relação entre texto, realidade e momento litúrgico.
4. Rumando em direção à prédica
a) No Credo Apostólico a antiga Igreja cristã confessa que Jesus Cristo está sentado à direita de Deus Pai, todo-poderoso. Esta confissão resume as diversas tradições sobre o Cristo que, depois de sua ascensão, sentado no seu trono, reina soberano, ao lado de Deus, sobre todo o universo. Essas tradições sobre Cristo, o Rei, nunca foram muito populares em nosso meio. As igrejas orientais parece que tinham mais afinidade com essa afirmação do Credo. A arte cristã da Igreja bizantina amiúde representa o Cristo cosmocrator sentado num trono elevado, às vezes ladeado de duas conselheiras — a justiça e a misericórdia —, abençoando monarcas terrenos (geralmente dois), que se encontram, de pé, diante do trono celestial. Cristo, o Rei celestial, instala os monarcas dos diversos povos, dando-lhes, através da bênção, algo do próprio poder divino.
As igrejas cristãs entendiam esse tipo de arte como uma afirmação teológica: Cristo é maior do que os reis humanos. Sem Cristo nenhum governante pode ler sucesso. Nenhum governante pode ousar governar contra os preceitos e a vontade de Cristo. Com o tempo, no entanto, esse Cristo entronizado entre as nuvens tornou-se um Cristo longínquo e distante do povo e da realidade. Afinal de contas, o monarca do universo teria olhos e tempo para os problemas banais do povo simples e pobre? A confissão audaciosa de que Cristo é Rei sobre o universo não mais condizia com a realidade visível e experimentável pela maioria das pessoas. Aí a confissão corre o risco de tornar-se ilusão.
b) Lembro aqui a interpretação que A. Dürer faz da ascensão de Jesus aos céus. Creio que ela cabe neste contexto, já que o tema da entronização de Cristo estava originalmente vinculado à ascensão. Em uma gravura em madeira, Dürer retrata os discípulos olhando para o céu, onde Jesus desaparece por entre as nuvens. Parece que ninguém vê o que o artista coloca bem no centro de sua obra de arte: na pedra da qual Jesus inicia sua subida ao céu, estão bem visíveis as pegadas do Rei. Os discípulos não precisam mais olhar para cima, para o Cristo que logo mais estará totalmente ausente. Os olhos da fé encontrarão as pegadas de Jesus na terra. A representação de Dürer quer que os discípulos não se esqueçam de que eles vivem no mundo; e é no mundo que irão encontrar Cristo, o Rei. Tudo é uma questão de direcionamento dos olhos. Esta concepção é um pouco mais simpática do que a do Cristo cosmocrator, pois não corre o perigo de ser entendida como alienante. Resta saber se temos critérios para dizer onde e quando podem ser vistas as pegadas de Cristo, o Rei, em nosso dia-a-dia.
c) Não esqueci o texto bíblico. A ele recorremos agora. A figura que predomina é a do pastor. Os pastores, ou seja, os líderes políticos de Israel, não cumpriram sua tarefa de cuidar das ovelhas. Por isso, Deus vai congregar as ovelhas dispersas e colocar sobre elas governantes capazes de apascentar o rebanho. A figura do pastor coloca em relevo a função dos governantes de dar proteção e bem-estar ao seus governados. Lembro a figura do Bom Pastor de R. Schäfer, que aparecia nas lembranças de Batismo, muito difundidas no passado. O pastor, rodeado por seu rebanho, traz em sua mão direita um longo cajado e no braço esquerdo, parcialmente coberta pela capa, uma pequena ovelha. O seu rosto é sério, mas todo o seu ser inspira confiança e tranquilidade. Jesus é o pastor misericordioso que protege a ovelha fraca e vai em busca da perdida, trazendo-a intacta de volta para casa.
Essa identificação do pastor com Cristo, no entanto, não deixa de apresentar alguns problemas. Não devemos esquecer que, conforme o texto bíblico, Deus promete levantar pastores (plural!!) que as apascentem. O texto permanece bastante na esfera terrena e política. Quem crê que Cristo é o Pastor e o Rei — não só da comunidade, mas também dos povos do mundo — não precisa deixar de crer que também necessitamos de líderes políticos que saibam e queiram apascentar'' o povo. Cristo nos dá critérios para escolher os nossos líderes políticos.
Eles devem agir com sabedoria e executar o juízo e a justiça (v. 5). Parece que o campo semântico justo, juízo, justiça é, além do pastor, pastoreio, o determinante no texto. Também o renovo deve ser justo. A antiga tradição oriental de que o rei é responsável pela justiça no povo está na base dessa promessa. No Antigo Testamento a justiça não se resume a um determinado número de leis com valor mais ou menos eterno. Justiça é tudo aquilo que promove a comunidade, a convivência harmoniosa, a comunhão de todos os membros da sociedade. Israel experimentou, em sua história, que a prática da justiça pode ser facilmente corrompida. Muito conhecido é o caso da vinha de Nabote (l Rs 21). Mas as constantes recomendações de não faltar à verdade nos julgamentos (cf. o Oitavo Mandamento) atestam a amplitude da corrupção no sistema judiciário da época (cf. também as denúncias de Amos). Esperava-se que a autoridade humana máxima correspondesse aos anseios de justiça. Bem cedo, no entanto, se notou que também os monarcas punham um fim às injustiças. Para Jeremias, um rei deveria ser julgado pelo seu esforço em fazer justiça (Jr 22.15).
Javé, justiça nossa — este será o epíteto real do rei futuro, do Messias. O Cristo não é somente o Imanuel, o Deus conosco, mas também o Deus — justiça nossa. Em Cristo, Deus se nos revela como um Deus que, além de misericordioso, também é justo. Bem dito, ele é justiça; ele não nos dá a justiça; ele pode fazer aios de justiça. Ele é, portanto, paradigma do que deve ser justiça; e somos convocados a estabelecer a justiça na terra nos moldes da justiça revelada no amor de Cristo. Naturalmente que isso se torna necessário tanto no nível da comunidade quanto no nível de país.
e) Por fim, não consigo deixar de pensar naqueles soldados romanos que vestiram Jesus com um manto vermelho, lhe deram um caniço e lhe colocaram uma coroa de espinhos. A ironia é clara: ele não é Rei de verdade, mas apenas na cabeça de alguns loucos. E não foram somente os soldados. Também há a palavra daquele malfeitor que pendia ao lado da cruz de Jesus: Não és tu o Cristo? Salva-te a ti mesmo e a nós também. A epígrafe INRI resume toda a contradição: quem é (considerado) rei não consegue nem mesmo resistir às potências políticas existentes. Este é o nosso Rei; um rei que sofre por nós. O sofrimento é, aos olhos humanos, sinónimo de fraqueza. Na verdade, entretanto, o sofrimento solidário é uma força que não deve ser subestimada. Mais importante ainda: o nosso Rei se mostra poderoso entre os que hoje sofrem por falta de justiça. Isto não é, hoje, menos escandaloso do que o foi há 1.960 anos.