Prédica: João 12.12-19
Leituras: Deuteronômio 32.36-39 e Filipenses 2.5-11
Autor: Eduardo Gross
Data Litúrgica: Domingo da Paixão – Ramos
Data da Pregação:09/04/1995
Proclamar Libertação – Volume: XX
1. Considerações iniciais
Para o Domingo de Ramos estão indicados os textos de Dt 32.36-39 e Fp 2.5-11, além de Jo 12.12-19. Parece que a intenção desse conjunto de textos é realçar o aspecto da misericórdia de Deus que a vinda de Jesus representa em relação ao mundo. Especialmente o texto de Dt aponta nessa direção. É a partir dele que podemos entender a encarnação (cf. o hino cristológico de Fp) e a entrada de Jesus em Jerusalém (cf. Jo, que enfatiza bastante a consciência que Jesus tem de que ali é necessário sofrer) como manifestações do amor de Deus.
É importante fazer uma observação a respeito do método usado para caracterizar os personagens do texto. É sabido que João apresenta o seu material histórico em uma época um pouco mais tardia do que os sinóticos. Esse fato, aliado a sua intenção de elaborar teologicamente uma contextualização específica da fé cristã e de discutir alguns temas peculiares, tornam mais difícil a procura pelo Jesus histórico nesse evangelho. A partir disso, a reflexão a seguir não vai buscar em primeiro lugar os fatos históricos e sociológicos da entrada de Jesus em Jerusalém, mas os elementos literários trazidos por João. (Para uma perspectiva mais sócio-histórica, consulte a meditação de Dario Schaeffer no vol. X de Proclamar Libertação.)
2. Aspectos do contexto
W. G. Kümmel apresenta a seguinte estrutura para o Evangelho segundo João:
a) Prólogo (1.1-18)
b) A atividade de Jesus no mundo (1.19-12.50)
c) Seu retorno ao Pai (13.1-20.29)
d) Conclusão (20.30s) e suplemento final (21).
Nosso texto se situa, pois, no final da primeira parte. Nela se desenvolvem os principais sinais feitos por Jesus e os conflitos que deles resultaram pela incompreensão do sentido que têm esses sinais: apontar para a própria pessoa de Jesus. Essa incompreensão é o mesmo que incredulidade em João. Quem só vê o milagroso, não compreendeu o sentido de Jesus. O último desses grandes sinais foi a ressurreição de Lázaro. Ele prepara duas coisas presentes na nossa perícope: a admiração da multidão (a massa, o ochlos) e o ódio dos que perseguem Jesus (nesse evangelho, quase indistintamente, as autoridades, os fariseus, os judeus). No capítulo 12 temos os elementos que preparam a segunda parte do evangelho: a unção de Jesus (diferentemente de Mt e Mc, colocada aqui antes da entrada triunfal em Jerusalém! — talvez para sublinhar que Jesus é reconhecido como o Cristo não em Jerusalém, que é um lugar qualificado negativamente pelo evangelista?), a entrada em Jerusalém e um discurso que avalia e resume sua atividade anterior.
3. Aspectos do texto
V. 12: Grande multidão se reunia por ocasião das várias festas judaicas. Esse aspecto do texto é natural. Mas parece que João dá uma característica diversa a essa multidão (cf. abaixo).
V. 13: As folhas de palmeira são um símbolo messiânico. Vários autores concordam em dizer que Jerusalém não tem clima propício para essas plantas e, a partir daí, tecem considerações sobre a possível origem dos ramos aqui descritos (cf. Mt, que fala de ramos de árvores, e Mc, de palhas do campo). Isso não parece importante se atentamos para o simbolismo do texto — essencial para compreender o Evangelho de João. As folhas de palmeira expressam simbolicamente o que é dito com a citação do SI 118: aquelas pessoas estão saudando o Messias.
Vv. 14-15: A partir de Zc 9.9, Is 35.4 e 40.9 (cf. Sf 3.14s.), Jesus c apresentado como o Messias que deveria vir, de acordo com as profecias. O símbolo do rei montado em um jumento (aqui ainda no diminutivo, único no NT) lembra desde Zc um poder distinto, exercido sobre outra base.
V. 16: Uma lembrança característica de João: é só depois, só a partir da Páscoa que se pode compreender a atuação de Jesus. Para nós ele serve desde logo de lembrança: é só a partir da Páscoa que podemos entender a paixão e o Domingo de Ramos.
Vv. 17-18: Sobre a multidão, cf. abaixo. O último sinal de Jesus tem relação direta com as pessoas que o recebem. Há muita gente em Jerusalém e há muita gente se dirigindo para a festa. Mas será que muita gente receberia Jesus se não fosse pelo sinal? Esta a pergunta que o evangelista faz a si mesmo e a nós.
V. 19: Os fariseus, em João, não podem ser identificados simplesmente com o grupo sociológico. Nesse evangelho fariseus, sacerdotes, judeus e termos afins são usados para caracterizar os adversários de Jesus simplesmente. Não se alentando para essa característica literária, corre-se o risco de fazer uma leitura anti-semita desse evangelho. (Sobre o mundo [kosmos], cf. abaixo.)
4. Caracterização dos personagens principais
A massa: Ao invés de falar em multidão, parece mais acertado falar em massa para descrever o que João quer expressar com o termo grego usado aqui (ochlos). A massa é uma realidade volúvel. Ela pende para o lado onde o vento c mais forte. Jo 7.43 apresenta o característico desse personagem. No cap. 7 temos uma situação análoga à presente: uma festa, onde muita gente está reunida. Mas não se trata somente de muita gente. É muita gente sem uma organização ou uma posição firme. 7.49 mostra a posição dos fariseus em relação a essa massa, mas essa posição não é essencialmente distinta da do evangelista. Esses dois versículos resumem a atuação desse personagem naquele capítulo (outras ocorrências em 7.12,20,31,32,40). Em 5.13 o mesmo personagem se reúne por um outro sinal — uma cura. Mas é no cap. 6 que encontramos um outro paralelo muito importante (6.2,5,22,24). Frente ao sinal da multiplicação dos pães, é a massa (de gente) que se deslumbra. Querem fazer de Jesus um rei (6.15 — embora justamente neste versículo o sujeito seja as pessoas/anthropoi; o contexto mostra que elas são a massa). Isso é paralelo ao nosso texto! De acordo com o evangelista, Jesus não quer ser um salvador da pátria messiânico (isso em sentido brasileiro e moderno). Se, para João, Jesus não o queria no cap. 6, teria mudado de ideia no 12? Não. Jesus está consciente do caráter ambíguo dessa massa (cf. a avaliação que ele faz na segunda metade do cap. 12; especialmente a dúvida que a massa levanta a Jesus em 12.34). No nosso capítulo esse personagem aparece em 12.9,12,17,18,29,34. Fora dessas passagens está ainda em 11.42.
O cosmo: Em grego, o kosmos não é só o mundo como nós o entendemos. Não é o planeta terra. E uma determinada ordem ou organização. Em João ele aparece como um personagem. E difícil traduzi-lo para o português. Ele é ambíguo, como a massa, mas é de uma ambiguidade diferente. O evangelho todo trata desse personagem (1.9,10,29; 3.16,17,19; 4.42; 6.14,33,51; 7.4,7; 8.12,23,26; 9.5,39; 10.36; 11.9,27; 12.19,25,31,46,47; 13.1; 14.17,19,22,27,30,31; 15.18,19; 16.8,11,20,21,28,33; 17.5,6,9,11,13,14,15,16,18,21,23,24,25; 18.20,36,37; 21.25). Como explicar passagens tão díspares como Jo 3.16 (Deus amou o cosmo e enviou o seu filho para salvá-lo), 17.14 (os discípulos não são do cosmo) e 18.36 (o Reino não é deste cosmo!)? A explicação de muita gente é: em 3.16 podemos substituir o cosmo pelo nosso próprio nome, em 17.14 e 18.36 é lembrado que o reino de Deus está no céu. Mas isso não é o que João entende; quem explica os dois textos assim não está enxergando a contradição em que cai — uma vez entendendo o termo como individualidade, outra vez como coletivo. O cosmo é, para João, uma realidade amada por Deus (cf. 3.16). Mas é também uma realidade caída. Esse cosmo tem que ser transcendido (p. ex., 16.33 c 17.21, como muitas outras passagens). Por isso ele é ambíguo. Amado por Deus, de odeia a Deus e seus mensageiros (cf. 15.18). Coloca-se sob um outro senhorio (12.31 e 14.30) — mesmo que Deus seja Deus sobre ele. A ambiguidade do cosmo em João chega perto do dualismo — um cuidado que devemos ter ao interpretar esse evangelho, que se caracteriza por polaridades (como luz/trevas, p. ex.).
Fariseus: Como representantes do poder que organiza o cosmo no tempo presente estão, no nosso texto, os fariseus. Eles temem que o cosmo siga a Jesus — isto é, que ele transcenda a sua atual estrutura. No nosso contexto essa ideia se fundamenta na adoração da massa e, logo depois, na vinda de gregos que querem, também eles, ouvir de Jesus. Mas eles continuam na luta por manter o cosmo no seu atual estado.
5. Para a pregação
O Domingo de Ramos é um dia que mostra uma característica básica do ser humano: a ambiguidade. É uma festa no meio da Quaresma. Faz a semana santa espelhar aquilo que é a vida humana: uma vida de dor que se sabe cercada pela graça divina (cf. Dt) por trás e pela frente (Ramos e Páscoa). Jesus, na sua vinda ao mundo, assumiu sobre si os efeitos dessa ambiguidade (cf. Fp 2.5-11).
O texto pode nos fazer refletir em várias direções. Uma é a eclesiologia. Quem somos nós como Igreja? Quem é a nossa comunidade? Uma resposta rápida sempre é: a Igreja invisível (por trás está: nós, os mais santos, mais verdadeiramente crentes, engajados, militantes, convertidos…) transcende a massa. Mas é preciso cuidado! Sem essa massa (e aí vem junto a necessária e tão mal falada estrutura) a Igreja invisível não existe. O texto nos mostra que também nós como Igreja somos ambíguos. Não nos livramos da incoerência. Também queremos aceitar salvadores messiânicos. Não só politicamente. Se falamos só de uma salvação a-histórica também esperamos uma mágica. Resumindo: nós sempre precisamos de algo imanente (nem que seja só uma emoção barata) que nos revele o transcendente. A partir disso, em cada comunidade se pode pregar sobre os casos específicos que ali entram em questão. Aquilo do que está mais perto o teu coração, esse é o teu Messias.
Um segundo aspecto que pode ser abordado a partir do texto é a inconstância com que recebemos a mensagem evangélica. Â massa revela a ambiguidade da festa de Ramos — ainda estamos na Quaresma. Uma aceitação rigorosa dessa mensagem evangélica nos faz pessoas preocupadas com o destino do cosmo — enquanto realidade social, política, ecológica, psíquica. Aceitar a mensagem de Jesus além de uma euforia momentânea nos faz assumir também o amor de Deus pelo cosmo (Jo 3.16). Aí está um papel que temos como comunidade: ser uma organização que mostre dentro de si sinais de que quer superar um mundo doente e que se reúne em função desse mundo que está fora.
A partir disso outro tema fundamental pode ser abordado: é a cruz que está entre Ramos e Páscoa. Aceitar a cruz é dolorido, mas indispensável. Sobre isso vale sempre o lembrete: cruz também é uma realidade histórica; também a cruz de Cristo (imanente enquanto realidade fatual, apesar de distante de nós pela história) precisa nos fazer olhar as cruzes do nosso mundo de hoje.
O versículo 16 nos lembra uma outra possibilidade. Não só em termos exegéticos, como formulou Bultmann (só podemos conhecer a pregação sobre Jesus, não a de Jesus). Toda a vida cristã se vive nesse espaço entre o presente e o futuro. A festa de Ramos é antecipação do eschaton. Por isso só pode ser entendida a partir da Páscoa — a irrupção do eschaton no presente. Por isso esse domingo é fundamental para a vida cristã.
A figura do burrinho não está por acaso no nosso texto. Ela nos mostra o que há de mais verdadeiro na nossa perícope: Jesus, apesar de adorado de uma forma ambígua, é mesmo o Messias. O burrinho aponta para o caráter desse reinado: humildade e paz. O cosmo que Jesus quer é bem diferente. Não é assim como nós vivemos. O símbolo evoca um rei diferente, que não monte cavalos de guerra, mas um animal de carga, um instrumento de trabalho. Aqui está a misericórdia da qual fala o Dt. Em Jesus, Deus assume a forma de servo (Fp); ele trabalha por nós. Qualquer que seja o tema da pregação, esse acento na misericórdia de Deus, que supera a nossa ambiguidade humana, não pode ser esquecido.
Na minha comunidade de origem a confirmação acontece tradicionalmente no Domingo de Ramos. Sei que também em outras é assim. Penso que também nesse caso o texto se aplica bem. Deixo algumas sugestões:
— Confirmação é confessar Jesus como o Cristo.
— Toda confissão humana é ambígua:
a) Apesar da nossa confissão, nunca podemos nos achar os santos (mesmo que sejamos os santos).
b) Só na graça de Deus podemos fazer a nossa confissão. E a misericórdia de Deus que no-lo permite.
— A confissão de Jesus como o Cristo é compromisso de ação no cosmo (cf. Jo 17.18). A confirmação é compromisso com a mensagem do Reino.
6. Bibliografia
BULTMANN, R. Das Evangelium des Johannes. 11. Aufl. Göttingen, Vandenhoeck A Kuprecht, 1950.
KÜMMEL, W. G. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo, Paulinas, 1982.
SCHAEFFER, D. Domingo de Ramos; João 12.12-19. In: KIRST, N.; MALSCHITZKY, II.; SCHWANTES, M., coords. Proclamar Libertação. São Leopoldo, Sinodal, 1984. v. X.
SCHNEIDER, J. Das Evangelium nach Johannes. 2. Aufl. Berlin, Evangelische Verlagsanstalt, 1978.
STRATHMANN, H. & STÄHLIN, G. Das Evangelium nach Johannes. Apostelgeschichte. Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1971.