Prédica: João 2.1-11
Leituras: Isaías 62.1-5 e 1 Coríntios 12.1,4-11
Autor: Heinz Ehlert
Data Litúrgica: 2º Domingo após Epifania
Data da Pregação: 15/01/1995
Proclamar Libertação – Volume: XX
1. Considerações exegéticas
O texto do trecho em pauta não apresenta maiores problemas quanto à sua tradução. A de Almeida, edição revista e atualizada no Brasil, serve perfeitamente.
Quanto ao contexto: temos imediatamente antes a informação sobre como chegaram a Jesus os seus primeiros discípulos, que termina com a afirmação significativa: (…) vereis o céu aberto e os anjos de Deus subindo e descendo sobre o Filho do homem. Seria a perspectiva da glória que se manifestará a partir do primeiro sinal (v. 2.11) que a seguir é narrado no trecho em estudo. Mas é só o começo. A perspectiva da glória perpassa o evangelho até a glorificação final. A purificação do templo, narrada logo depois de nosso trecho, também traz esta marca.
No início do trecho temos um dado cronológico e outro topográfico. Detalhes como estes emprestam ao quarto evangelho a característica de autenticidade histórica.
O local da cena, Cana da Galiléia, deveria ser o Caná a uns 12 km ao norte de Nazaré, não o K'far Kena que as cruzadas tomaram como sendo o local onde aconteceu o primeiro milagre de Jesus e onde hoje são levados os turistas. O Caná das bodas desapareceu. No tel, colina onde se encontrava a vila, nada sobrou a não ser ruínas subterrâneas.
Bodas podiam durar sete dias, mas os hóspedes não eram obrigados a participar o tempo todo, só o condutor da noiva. A quantidade de água que cabe nas talhas (2.6) previstas para o ritual de purificação permite admitir que se tratava de um casamento grande com numerosos hóspedes.
VV. 1-2: Entre os muitos hóspedes entram em cena a mãe de Jesus (não é mencionado o nome dela), o próprio Jesus e os seus discípulos. A mãe e seu filho Jesus serão personagens destacados na cena, embora o acontecido tenha atingido especialmente aos discípulos (v. 11). Nada se diz sobre o tipo de relacionamento ou grau de parentesco entre a família dos noivos e a família de Jesus.
Pela maneira como Maria fala com os serventes é possível concluir que pode ter sido um relacionamento estreito (cf. v. 5).
Vv. 3-4: Como boa dona de casa e preocupada com o funcionamento satisfatório da festa, a mãe de Jesus observa o que passou despercebido para Jesus e de certo aos diretamente responsáveis pela festa: (…) não tem mais vinho. Com a maior naturalidade se fala desta bebida como parte indispensável do que se oferece aos hóspedes. E é vinho mesmo. Contém álcool, porque pode embriagar (v. 10).
Maria acha que Jesus pode dar um jeito. Não diz por que, nem como. Sempre causou espanto como Jesus reage. Não deixa de ser um pouco áspero. Fala, então, de sua hora. Ele, portanto, tem uma hora a observar. Será que a mãe se precipitou ou se excedeu em querer apressá-lo? Ele está atento à hora'. Que hora seria essa? Nas outras passagens (cf. 7.30; 8.20; 12.23; 17.1) aponta-se mais para a hora da morte dele. Aqui não. Mesmo assim, ele segue um horário, em sintonia com o Pai, na missão que tem. O kairós, a hora oportuna para ele realizar sua obra, obedece ao calendário de Deus (cf. Gl 4.4). Se ele disse: ainda não, ela vai chegar.
V. 5: Maria foi levada a concluir que ele ainda vai fazer qualquer coisa para superar o impasse com a falta de vinho. Por isso a recomendação (ou é uma ordem?) aos serventes. Fica a expectativa.
V. 6: Agora a atenção é dirigida às talhas de pedra com água (ou agora até com falta de água). Cada uma com capacidade de 80 a 100 litros! Certamente os hóspedes entrementes haviam feito uso da água.
Vv. 7-8: Não é dito quanto tempo passou entre a recomendação de Maria e a ordem de Jesus. Os serventes devem ter ficado atentos. Vêm a ordem de Jesus e seu imediato cumprimento.
Ainda o detalhe: encheram totalmente. Como em Cana não há fonte viva, devia ser água armazenada da chuva (em cisterna). O trabalho dos serventes levou seu tempo. Uma segunda ordem se segue. Logo é executada. Será que perceberam o que aconteceu com a água? Ninguém comenta nada.
Vv. 9-10: Agora é introduzido o personagem de muita importância, não só pelo fato de ser o chefe dos garçons e principal responsável pelo bom funcionamento da festa. Não. Ele será a testemunha insuspeita de que um milagre aconteceu: a transformação da água que os serventes trouxeram em ótimo vinho. Só que ele não podia saber do milagre — que no mais também não é descrito, mas apenas constatado. Para o mestre-sala'' a ótima qualidade do vinho por ele experimentado é motivo de reclamação contra o noivo (visto aqui como dono da festa). Mostra que é um mestre-sala com experiência. Sabe como se faz. Conta-nos algo sobre os costumes da época. O bom vinho deixava os convivas meio embriagados. E aí termina a história, o episódio narrado. Seguem-se a interpretação e o resultado.
V. 11: O evangelista interpreta para os leitores o significado do acontecido. Trata-se de um sinal. É sinal de um poder e de uma ação que aponta para além do que se vê agora. Bem coerente com as afirmações teológicas do início do Evangelho, o sinal mostra que Jesus, o homem em carne e sangue, que aqui entrou em ação num ambiente normal do mundo, é emissário e agente do próprio Deus que tem todo o poder. Atendendo a necessidades elementares dos homens, com este milagre estabelece o sinal da realidade transcendente que, com a vinda dele, irrompe neste mundo. É a sua hora, o momento histórico escolhido por Deus. Aos discípulos se abrem os olhos para a sua glória, e eles creram nele. Se esta fé já compreende tudo, todo o alcance da vinda de Jesus, tem que se mostrar. Contudo, o começo aí está.
2. Meditação
Jesus numa festa de casamento. Pelo visto, casamento grande e chique. Os que se uniram em matrimônio deviam ser filhos de gente abastada, o que se pode deduzir já da quantidade de água prevista para os rituais de purificação. Jesus aparentemente não considerou perda de tempo nem inconveniente para a sua missão (que já se iniciou) estar metido e envolvido nos acontecimentos importantes da vida social de uma vila, Cana da Galiléia. Pelo contrário. É oportunidade para evidenciar um pouco do sentido de sua missão neste mundo.
É para dentro da vida real, familiar, comunitária, política que o evangelho deve ser testemunhado.
O Verbo que se fez carne é mesmo colocado de forma real no mundo para participar. Não há qualquer julgamento prévio sobre a qualidade moral ou reli¬giosa desta sociedade e seus costumes. O Verbo que se fez carne é enviado justamente a um mundo que deve receber o amor de Deus, que, no mais, ninguém merece.
Casamento é coisa da ordem divina da criação. A sua celebração pode ter as mais variadas formas. Para os crentes naturalmente é relacionado com Deus. De antemão, porém, não parece ter havido nenhuma outra expectativa em relação a Jesus (e seus discípulos) senão a de tê-los entre os convivas, os hóspedes, para se alegrarem no casamento.
O especial, o excepcional ficou por conta da ' 'hora'' do Pai. No curso bem normal da vida neste mundo irrompe o extraordinário, o transcendental, sem possibilidade de ser previsto ou planejado. O inesperado acontece.
Em nossa sociedade, quer na economia, quer na política, as coisas acontecem sem muita atenção a uma vontade de Deus. Isto apesar do fato de que políticos se dizem cristãos ou homens de negócios cristãos cultivam reuniões de reflexão bíblica, ou de que o comércio se vale das datas festivas do calendário cristão. Parece que a economia e a política seguem leis bem próprias, que têm a ver mais com capital, mercadoria, meios de produção, produto, concorrência, jogo de interesses e jogo de poder do que com princípios éticos e cristãos. E como é grande a parcela da população envolvida com atividades nestas áreas! Já no plano familiar e social a presença e a lembrança de Deus são mais intensas devido à atuação das igrejas cristãs ou grupos religiosos como parte integrante da sociedade.
A hora de Deus pode acontecer e manifestar-se em qualquer momento e situação histórica, com ou sem a participação do povo fiel a Deus. Ouso apontar alguns fatos da história mais recente que, a meu ver, permitem vislumbrar algo da hora de Deus. Cito o desmoronamento do socialismo real (comunismo) nos países da Europa oriental, que teve na queda do muro de Berlim o sinal mais retumbante. Ali cristãos fiéis e obedientes a seu Senhor, apesar de oprimidos e perseguidos, tiveram uma inegável participação pacífica nas mudanças que se operaram, mesmo onde não tiveram o objetivo declarado e claro de operar mudanças radicais. Lembramos a atuação do sindicato Solidariedade na Polónia e os movimentos e orações de paz na ex-RDA (Alemanha comunista). O poder de Deus se manifesta na ex-União Soviética, onde, depois de 70 anos de pregação do ateísmo e brutal perseguição a toda e qualquer Igreja ou religião, depois da queda do socialismo (comunismo) os cristãos de diversas denominações se organizam como igrejas fortes, proclamando o Deus vivo e o senhorio de Jesus Cristo. O que presenciamos na América Latina de transformações nos últimos decénios, visando libertação de opressões as mais diversas, não se poderia imaginar sem o estudo da Bíblia nas comunidades, pelo povo simples, orientado por teólogos comprometidos com a busca da vontade de Deus hoje.
A ' 'hora'' de Deus, destacada em nosso trecho, lembra de maneira enfática que, em última análise, não são os homens que estão no comando da história, mas Deus.
Mas a hora de Deus lembra também que o reino proclamado por seu Filho não é deste mundo, não é igual nem se identifica com qualquer reino deste mundo que homens pudessem idealizar e estabelecer. A hora de Deus recorda que a hora do Filho de Deus que veio à carne não é apenas aquela em que ele demonstra o seu poder por um sinal, um milagre, mas a hora em que é entregue nas mãos dos pecadores. O mesmo Senhor que realiza o milagre de abundância para a festa, realiza a obra redentora em favor da humanidade, justamente na hora em que o Verbo feito carne sofre a morte na cruz, isto é, na ignomínia. Mas é glória porque o maligno não só é julgado, mas é vencido. É o triunfo de Deus, confirmado pelo sinal da ressurreição do Cristo, sendo ele as primícias dos que dormem (l Co 15.20), inaugurando o último capítulo (o eschaton) da história salvífica para que Deus seja tudo em todos (l Co 15.28).
Como discípulos deste Cristo temos a autorização e, portanto, a tarefa e a autoridade de testemunhar e proclamar este fato, este evangelho, para dentro do mundo em que vivemos, quer seja (ou pareça) oportuno, quer não. Pois nós não podemos deixar de falar das cousas que vimos e ouvimos. (At 4.20.)
3. Indicações para a prédica
Tema: Toda hora é hora de Deus — na vida e no mundo.
Roteiro:
A presença de Jesus faz toda a diferença nos pontos altos e baixos da vida como nas bodas de Cana.
Deus intervém — nos meus planos, na história, mas é para o bem, visa a salvação. Os crentes o percebem e recebem ânimo para continuar, lutar e viver.
Os sinais da hora de Deus acontecem também hoje, mostrando que de determina o horário do mundo, apesar e mesmo contra os poderes.
4. Indicações litúrgicas
O presente auxílio homilético se destina para o 2o Domingo após Epifania.
Hinos que encontramos em HPD referentes à época, portanto, são apropriados para o culto neste domingo.
A oração de coleta poderia ser como a seguinte: Adoramos-te, Deus eterno, porque tu te revelaste aos homens durante a história. Enviaste o teu Filho como luz para o mundo. Fala conosco nesta hora, para que se tome uma hora oportuna, abençoada por ti. Queremos ouvir como discípulos. Em nome de Jesus. Amém.
Caso se adote só um dos textos indicados para a leitura bíblica no altar, recomendo usar l Co 12.1,4-11. É que fala dos dons espirituais, isto é, da presença atuante do Espírito Santo na comunidade. É uma maneira como hoje acontece epifania.
Na oração final podem ser lembradas situações concretas de comemoração e festa (aniversário, aniversário de casamento, bodas e outros), mas também problemas concretos dos membros ou da comunidade, da cidade. Pedir aos membros que coloquem motivos para a intercessão. Não se esquecer dos dias que eivemos, da situação do nosso povo e dos povos do mundo. Valer-se de notícias recentes veiculadas nos meios de comunicação.
5. Bibliografia
AITMANN, Walter. Meditação sobre João 2.1-11. In: KIRST, Nelson, comp. Proclamar Libertação. São Leopoldo, Sinodal, 1983. v. IX, p. 41-49.
BÜCHSEL, Friedrich. Das Evangelium nach Johannes. 5. ed. Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1949. (Das Neue Testament Deutsch).
BULCK, Walter. Das Johannes Evangelium und die Gegenwart. 2. ed. Hamburg, Agentur des Rauhen Hauses, 1948.
SCHNEIDER, Johannes. Das Evangelium nach Johannes. 2. ed. Berlin, Evangelische Verlagsanstalt, 1978. (Theologischer Handkommentar zum Neuen Testament).