Prédica: Lucas 22.7-20
Leituras: Jeremias 31.31-34 e Hebreus 10.11-25
Autor: Leonídio Gaede
Data Litúrgica: Quinta-feira da Paixão
Data da Pregação:13/04/1995
Proclamar Libertação – Volume: XX
1. Pra início de conversa
Vivemos entre a nossa lembrança e o nosso planejamento. A lembrança é o que temos hoje em relação ao passado e o planejamento é o que temos, também hoje, em relação ao futuro. Por isso podemos dizer que estas duas palavras, lembrança e planejamento, são parentes entre si. Apesar de uma estar para trás e a outra para a frente, há um encontro entre ambas. Elas são primas, poderíamos dizer. Na ótica dos humanos, o fato de estarmos entre essas duas palavras nos faz diferentes, destacados, na criação de Deus. Achamos que nós, humanos, temos uma capacidade especial de lembrar e planejar. O gado também tem boca, olhos, coração, nariz, estômago… As plantas também sentem, respiram… Mas lembrar e planejar, especialmente nós sabemos fazer.
Como se isso não bastasse, Deus ainda nos deu sentimentos especiais para acompanhar a nossa lembrança e o nosso planejamento. Para acompanhar a nossa lembrança, recebemos a saudade, e para acompanhar o planejamento, recebemos a esperança. Saudade e esperança, por isso, também são parentes. Também são primas. E, para continuar descrevendo esta família, podemos agora dizer: se tanto a lembrança e o planejamento como a saudade e a esperança são primos entre si, então a lembrança e a saudade são irmãs, como também são irmãos o planejamento e a esperança.
E agora vem o passo seguinte: a noite da Quinta-Feira da Paixão é o momento na história da fé cristã em que se encontra e se beija essa família de primos e irmãos.
Em Lc 22.7-20 temos uma ata desse encontro familiar. Segundo o evangelho, chegou o dia dos pães asmos em que importava comemorar a páscoa (v. 7). Eis a chave: pães asmos e Páscoa.
2. Pães asmos
A lesta dos pães asmos era uma lembrança da qual Jesus leve saudade tia quinta-feira santa de noite. O objeto dessa lembrança era muito antigo. Segundo as Escrituras Sagradas, o grupo de Moisés, quando conseguiu fugir do Egito (Ex 14.5), já lembrou com saudade dessa festa e a celebrou (Êx 12.15-20).
A origem de uma festa em que se comia pão sem fermento só pode estar ligada ao meio agrícola. Deve estar ligada à colheita. A festa da colheita era o momento em que se passava do consumo do grão antigo (da colheita passada) para o consumo do grão novo (da colheita que estava sendo festejada). Nessa troca de grãos era importante que não acontecesse uma mistura do antigo com o novo. Misturando os grãos antigos com os grãos novos, um espírito antigo contagiaria um espírito novo e aí, é lógico, acabaria não havendo o novo tão esperado. Como evitar essa mistura, se o fermento do pão que se come hoje vem da massa guardada e, portanto, feita com a farinha velha? Não tinha outro jeito: jogava-se o fermento fora e, enquanto o fermento do grão novo não estava no ponto, comia-se pão sem fermento. Tempo vai e tempo vem, comer pão sem fermento virou festa com esse bonito sentido de despedida do que é velho e de saudação do novo que chega.
3. Páscoa
Celebrar a Páscoa no tempo de Jesus também era dar asas à saudade de uma lembrança muito antiga. Segundo as Sagradas Escrituras, ela também já fora lembrada na ocasião em que o grupo de Moisés escapou das garras do faraó opressor do Egito, aproximadamente em 1255 a.C. (Êx 12.1-14).
A origem de uma festa em que se comia a carne de um cordeiro e se fazia algum rito com o seu sangue deve estar ligada à pecuária de uma época bem anterior à saída do Egito. Talvez algo ligado à primeira cria de um animal. Quando a fêmea passa pelo primeiro parto, ela inaugura uma nova fase em sua vida: sai de uma fase improdutiva e passa para uma fase produtiva. Essa passagem da velha situação estéril para a nova situação da multiplicação de vida está marcada com sangue. O pecuarista da época diferenciava essas duas fases na vida de seus animais como se estivesse apartando dois espíritos incompatíveis entre si. Quando uma ovelha dava sua primeira cria, o acampamento mudava de lugar e acontecia um rito que envolvia sangue e as estacas da barraca.
O livro do Êxodo registra a festa da Páscoa no calendário do povo de Deus, fixa a forma dos festejos e aponta a saída do povo do Egito como evento fundamental. E, de fato, tudo concorre para o mesmo sentido. Há enormes chances para a descoberta de uma mesma saudade. Tanto o rito que acontecia por ocasião da primeira cria de uma fêmea entre o rebanho, numa época anterior, como aquilo que Êx 12 registra a respeito da Instituição da Páscoa (Almeida) significaram discernimento entre um espírito estéril, inerte e de morte e um espírito fecundo, libertador e de vida. Antes de Moisés e seu grupo conseguirem escapar do faraó, foram apartados dois espíritos que não conseguem conviver, o da escravidão e o da libertação.
A Quinta-Feira da Paixão é para nós, cristãos, o dia da instituição da Santa Ceia. Neste dia comemos pão não-levedado e tomamos vinho em memória de Cristo. O texto de Lc 22.7-20 inicia dizendo que Jesus agia em memória da libertação do Egito, em memória da passagem do velho para o novo.
4. A instituição da Ceia
As palavras da instituição são o mais belo exemplo de consciência histórica. Quando Jesus reparte o pão, dizendo: este é o meu corpo, e o vinho, dizendo: este é o meu sangue, ele transcende o momento. Graficamente podemos representá-lo assim:
<-----------O--------->
Se quisermos caracterizar o movimento da transcendência inversamente, devemos dizer que ele une num mesmo ponto a saudade e a esperança. Graficamente representado, fica assim:
————->O<-----------------
Jesus estava entre a saudade e a esperança. O desejo manifesto de celebrar a Páscoa e os Pães Asmos é a prova da presença de saudade. A palavra dita ao celebrar é prova da presença de esperança. Saber colocar-se entre o passado e o futuro não é magia, é consciência histórica. Fácil seria constatar posteriormente que ali houve um sujeito histórico, isto é, alguém que fez História consciente-mente. Difícil para nós é fazer História dizendo-o. Na instituição da Santa Ceia aconteceu isso: Jesus fez e disse.
Bonhoeffer tem sido para mim ultimamente aquele que melhor trabalhou o conceito de consciência histórica. Contraditoriamente, o seu consequente viver da liberdade confinou-o entre as quatro paredes da prisão. Lá ele entendeu quão carregada de fatalismo está a pretensão de viver sem o passado (saudade) e sem o futuro (esperança). Lá refletia:
Será possível que já houve na História homens que no presente tiveram tão pouco chão debaixo dos pés — aos quais todas as alternativas do presente existentes ao alcance do possível pareciam igualmente insuportáveis, hostis à vida, sem sentido algum — homens que procuraram a fonte de suas energias tão além das presentes alternativas, somente no passado e no futuro, homens que contudo, sem serem utopistas, podiam esperar com tanta segurança e calma o êxito de sua causa — como nós? (P. 16.)
Bonhoeffer testemunha que só a partir da fé em Cristo isso se tornava possível. Por isso ele sabia que a resposta de sua pergunta era: houve, sim, na História um homem que teve tão pouco chão debaixo dos pés, etc., etc. Esse homem foi Jesus. O acontecimento narrado pelo nosso texto a respeito da Instituição da Ceia é o resumo dessa situação.
5. O culto
A celebração de minha comunidade na Semana Santa de 1994 — em que me inspiro para elaborar este auxílio homilético — caracterizou-se por esse exercício de, na reflexão, abrir o leque para os lados da saudade e da esperança. Cuidado: isto não significa fugir do momento atual ou negar a realidade do sofrimento atual. O momento presente, com todo o seu sofrimento, precisa ser enfrentado com a autoridade e a segurança de quem tem e faz História. Reduzir tudo ao Aqui e Agora traz desespero, conduz ao fatalismo e ao convencimento de que a pena de morte se justifica.
6. O ovo
O recurso simbólico usado para escapar de uma reflexão reducionista e absolutista sobre o sofrimento foi o ovo. Foi apresentada à comunidade uma caixinha cheia de ovos coloridos (as famosas casquinhas de Páscoa). A comuni¬dade ouviu a explicação de que o ovo é um símbolo de Páscoa porque se assemelha a um túmulo. Dentro do túmulo vai cal e a casca do ovo contém cal. O túmulo é fechado, o ovo também. O ovo é um objeto inerte e o túmulo é pedra fria. A Bíblia diz que vem a hora em que todos os que se acham nos túmulos ouvirão a sua voz e sairão (Jo 5.28). O ovo também, num dado momento, se abre e o pintinho sai. Assim como os familiares de pessoas falecidas enfeitam túmulos, assim enfeitamos ovos na Páscoa. O ovo e o túmulo são símbolo porque carregam a mesma contradição: aparentam morte e contêm vida.
Neste momento foi apresentado um ovo simples de galinha e explicado que a comunidade faria agora essa experiência de assistir a como a vida nasce de algo (objeto, túmulo, ovo) aparentemente morto: Por uma grande coincidência temos hoje esta oportunidade de acompanhar o nascimento de um pintinho, disse o apresentador. Ele simboliza essa possibilidade da vida que sai do túmulo!
Foi apresentada então uma cesta (isto funciona como sugestão para que a comunidade vá criando antecipadamente a imagem do pintinho) e o apresentador disse que o pintinho seria colocado nela: Será o seu lar, o lugar onde ele viverá os primeiros momentos após sair do ovo.
O apresentador foi lidando cuidadosamente com o ovo, dando-lhe pequenos golpes (é bom que sejam sonoros). A comunidade ia sendo informada de cada avanço que o processo apresentava: Está quebrando a casca! Agora já consigo abrir um buraquinho! Criou-se a expectativa e então veio o crash! O ovo foi esmagado e a meleca escorreu entre os dedos para dentro da cesta (que estava devidamente preparada para não vazar). O apresentador pediu desculpas pela falha, torceu o nariz e enxugou as mãos, usando expressões como que pena, não deu certo. É importante mostrar o interior da cesta, para que pelo menos algumas pessoas possam olhar a meleca. As crianças gostam deste momento.
7. Reflexão
Segue-se uma reflexão em torno da experiência. Perguntas como as que se seguem podem ajudar: Por que não deu certo? É possível obter êxito numa experiência como esta? Provavelmente surgirão respostas como: O ovo não estava no ponto. O ovo não foi chocado. Mesmo que o ovo tivesse sido chocado, o pintinho estaria morto. O ovo esfriou. O lugar do ovo é no ninho. Etc. As respostas podem oferecer elementos para uma comparação entre o ovo que virou meleca e as esperanças que já foram frustradas na nossa vida.
8. Mensagem
O erro escandaloso, principalmente no meio rural, de pretender tirar um pintinho de um ovo em pleno culto coloca a comunidade em sintonia com uma mensagem. A reflexão constrói pontes de um assunto para outro:
a) Não é isso que o povo está enjoado de experimentar? Seus planos também não costumam virar meleca? O que acontecia com os planos de Cristo, quando o seu suor pingava como sangue (Lc 22.44)? Quando disse: Passa de mim este cálice! (Lc 22.42)? Ou quando exclamou: Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste! (Mt 27.46)? Quantas vezes já não estivemos na situação de ver nosso planejamento escorrer por entre os dedos? Desde a frustração de safra até a morte inesperada de alguém cheio de vigor, saúde e bons planos… Tudo é um tipo de êxito esperado que virou meleca.
b) Alguém poderia, a partir da experiência realizada com o ovo na igreja, afirmar que de ovos jamais nascem pintinhos? (Pois foi esta a constatação da experiência realizada.) Não! Evidentemente, a existência de galinhas é uma prova de que de ovos continuam nascendo pintinhos (apesar de nossa constatação frustrante). Também aquilo que na vida planejamos e não deu certo não serve para afirmar que nada mais dará certo.
c) Vamos fazer uma lista de tudo aquilo que existe hoje e que imaginamos ser resultado de um planejamento. Chegaremos à conclusão de que até o furo do tubo de nossa pasta de dente foi planejado. Há provas suficientes de que planejamentos alcançam êxito.
d) Vamos fazer uma lista de tudo que lembramos com saudade e que já deu certo em nossa comunidade.
9. Conclusão
Ao termos cumprido os quatro itens acima, estamos preparados para ceie brar a Santa Ceia, pois colocamo-nos no mesmo espírito da noite da instituição: Jesus planejou a sua entrega, com esperança, ao futuro e, através da lembrança de Páscoa e Pães Asmos, ativou a saudade da experiência de libertação.
10. Pra fim de conversa
Tenho no meu rascunho ainda um capítulo sobre sugestões para a prédica. Constato, porém, que aquilo que acabo de escrever já é quase uma prédica. Por isso, se você quiser, adapte e use o acima exposto. Se for possível, use a canção inspirada na poesia de D. Bonhoeffer, Por bons poderes… (Cancioneiro da PPL, ne 28). As informações sobre Páscoa e Pães Asmos tenho de um trabalho feito para a Faculdade de Teologia em 1982. Ele está na biblioteca da Escola Superior de Teologia (EST) justamente com este título: Páscoa e Pães Asmos. Não vou indicar aquela bibliografia pesadona. Se você preferir uma literatura de apoio, dê uma olhada em Resistência e Submissão, de Bonhoeffer, de onde tirei a citação anterior (p. 16). Resistir e submeter-se era também a questão de Jesus em Lc 22.7-20.
Que Deus abençoe a sua pregação!