Prédica: Lucas 9.51-62
Leituras: 1 Reis 19. (14-18) 19-21 e Gálatas 5.1,13-25
Autor: Emílio Voigt
Data Litúrgica: 6º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 16/07/1995
Proclamar Libertação – Volume: XX
1. Introdução
O texto em apreço inicia um novo bloco dentro do Evangelho de Lucas, dedicado à viagem de Jesus para Jerusalém (9.51-19.27). Lucas sempre retratou um Jesus itinerante, com os pés na estrada (4.30,42; 5.12; 6.1,12,17; 7.1,11; 8.1). Este bloco deixa bem clara a direção dos seus passos: está a caminho de Jerusalém (9.51; 13.22,33; 17.11; 18.31). Os relatos da viagem não se prendem tanto à geografia, mas têm a intenção de servir de ensino. A viagem centra-se no acontecimento pascal. O sofrimento e a cruz são inevitáveis. Por isso é necessário instruir e animar os discípulos com vistas à atividade pós-pascal. A consciência da missão precisa ser despertada, a proposta missionária definida.
O texto proposto pode ser dividido em duas perícopes, como já aconteceu em duas edições de PL: Lc 9.51-56 (PL XV, p. 167ss.) e 9.57-62 (PL X, p. 251ss.). Nada impede, entretanto, que seja usado como um bloco. Existem ligações entre a primeira parte, o incidente em Samaria, e a segunda parte, onde Jesus faz exigências aos que querem segui-lo. O incidente em Samaria não se concentra na rejeição dos samaritanos, mas na incompreensão dos discípulos, que ainda não entenderam que o Reino é de misericórdia e que o Filho do homem não tem onde reclinar a cabeça (v. 58). As exigências que Jesus faz são consequências da sua ação, retiradas de experiências vividas. Neste sentido, os dois relatos se complementam, servindo a um propósito: a preparação dos discípulos para a missão. Partes dos vv. 55 e 56 estão ausentes dos papiros e dos grandes unciais, pelo que são considerados acréscimo. Enquanto a tradução de Almeida traz estas partes entre colchetes, a Bíblia na Linguagem de Hoje e a Edição Pastoral já as eliminaram. Sugiro a leitura destas duas últimas.
2. Análise do texto
V. 51: Com completaram-se os dias e assunção, termos tipicamente lucânicos (At 2.1; ver também At 7.23,30; Lc 9.31), está designado o conjunto do acontecimento pascal: crucificação, ressurreição, ascensão. O tempo está completo! Presenciaremos os últimos dias de Jesus. Mas, para a consumação cl;i sua obra acontecer, é extremamente necessário subir a Jerusalém (Lc 13.33).
Vv. 52-53: Como era costume no AT e entre os rabinos, algumas pessoas são enviadas na frente para anunciar a chegada e preparar a hospedagem. A viagem, entretanto, esbarra na rivalidade entre judeus e samaritanos. Esta rivalidade, da parte dos judeus, acontece por não aceitarem a mistura de raças c costumes que existe na Samaria e pelo fato de os samaritanos terem construído o seu próprio templo no Monte Garizim no século In a.C. Este templo constituía uma ameaça à hegemonia, ao absolutismo de Jerusalém.
Em 129 a.C., João Hircano destruiu o templo. Mesmo assim os samaritanos se negavam a sacrificar em Jerusalém e continuavam a olhar para o monte. Por causa da destruição do templo em Garizim, o ódio era recíproco. Os incidentes eram contínuos, às vezes até sangrentos. Peregrinos judeus que passavam pela Samaria não eram bem vistos e tampouco gozavam de boa hospitalidade. Talvez Jesus seja confundido com um peregrino, ou então com um messias que não consegue se desvincular de Jerusalém. É interessante observar que, em Lucas e João, os samaritanos ganham bastante espaço, sendo geralmente vistos com bons olhos, como exemplos a serem seguidos (Lc 10.30-37; 17.11-19; Jo 4.1ss.). O texto em questão não contradiz os outros, mas procura uma certa distância crítica, mostrando que os samaritanos, assim como os discípulos Tiago e João, ainda não compreenderam a proposta de Jesus, a ponto de tratá-lo como tratariam qualquer peregrino judeu.
V. 54: A irritação dos discípulos Tiago e João é tamanha que pedem autorização para castigar a aldeia samaritana. Este gesto de indignação e fé entusiasta pode ter sua inspiração em 2 Rs 1.10-14. É interessante observar que em relatos imediatamente anteriores os discípulos não tinham fé suficiente para curar um jovem possesso (Lc 9.40), mas se julgavam com autoridade para coibir tal prática em pessoas de fora do grupo (Lc 9.49). A fé dos discípulos está presa a certos esquemas, a certos moldes. Tudo o que não se enquadra em seus moldes precisa ser banalizado, punido.
Vv. 55-56: A resposta de Jesus evidencia o quanto estes moldes estão errados e não servem aos propósitos do Reino. Não é a atitude dos samaritanos que merece repreensão, mas a proposta dos discípulos. Sem reagir aos samaritanos, seguem adiante para outra aldeia. Se é ou não outra aldeia samaritana, o texto não diz. É interessante observar que Jesus não coloca em prática o conselho dado aos discípulos em 9.5 e 10.10ss.! Isso reforça a ideia de que o relato do incidente em Samaria não está centrado na atitude dos samaritanos, mas na dos discípulos. A intenção do texto não é acentuar a rejeição dos samaritanos, mas aprimorar o aprendizado dos discípulos.
Vv. 57-58: Estando eles a caminho, uma pessoa desconhecida se dispõe a seguir Jesus. Sua disposição é acentuada: por onde quer que fores! Provavelmente já existe o conhecimento de que seguir a Jesus significa estar sempre a caminho. Mas será que nessa proposta se encaixam os momentos de sofrimento, o caminho da cruz? Será que esse seguimento conta com a possibilidade de ficar sem casa, sem lugar para reclinar a cabeça?'O seguimento de Cristo exige desprendimento, não oferece segurança. Até as raposas e as aves possuem mais segurança do que o Filho do homem e seus discípulos. Estar pronto a seguir é estar pronto a se desprender dos bens materiais: casa, lugar onde reclinar a cabeça. Implica uma opção pela pobreza. Por isso, é decisão que não pode ser precipitada. O jovem rico voltou triste, parece que não aceitou a proposta (Lc 18.18ss.). Sobre este desconhecido nada se fala. E um recurso literário. O leitor, o ouvinte é quem decide.
Vv. 59-60: Agora quem chama ao seguimento é Jesus. O convite é aceito, mas o desconhecido quer primeiro sepultar o seu pai. O sepultamento é considerado um dever, que tem precedência sobre o estudo da lei, o serviço do templo, o sacrifício da páscoa. As exigências do Reino, entretanto, não levam em conta a lei. Estão acima dela. Jesus é bem mais radical. Não há tempo a perder. Se antes a exigência era desprendimento material, agora é desprendimento em relação às obrigações da lei. Para ser mensageiro do Reino, é necessário tal desprendimento.
Vv. 61-62: Outra pessoa se apresenta para seguir Jesus, porém com uma condição: quer primeiro despedir-se dos de casa. Mais uma vez Jesus reage bruscamente, exigindo desprendimento dos laços familiares. O manejo do arado na região do Lago de Genesaré era difícil e requeria muita atenção. Assim também é com o Reino. Não se pode desviar do essencial. Certos laços desviam do essencial, impedem a atenção e a dedicação. Percebemos uma progressão nas exigências feitas: desprendimento da segurança material, da lei, da estrutura familiar. Sem a libertação destes padrões, não acontecem missão e participação no Reino.
3. Reflexões sobre o texto
(Ver PL XV, sobre os vv. 51-56, e principalmente PL X, que traz uma reflexão aprofundada sobre os vv. 57-62.)
Lucas 9.51-62 trata das consequências do discipulado. Discipulado existe em função do reino de Deus. E o reino de Deus tem exigências radicais. Ira/, consequências para todas as esferas da vida humana. E não poderia ser diferente. Reino de Deus representa o novo. Não é remendo novo sobre pano velho, mas é pano novo, sem remendos. O novo, o reino de Deus, entra em conflito com o velho, o mundo em que vivemos. Os dois não podem coexistir. São excludentes. Os padrões humanos não podem ditar as regras para o Reino.
Padrões humanos aparecem na proposta vingativa de Tiago e João. A proposta do Reino é diferente, exige misericórdia. Levou cá — bateu lá, toma lá — dá cá não se enquadram nesta nova maneira de relações. Procurar encaixar as pessoas em nossos esquemas também não combina com o discipula¬do verdadeiro. A atitude de rejeição dos samaritanos não é louvável. Menos ainda a proposta dos dois discípulos. Esta atitude mostra o quanto estão apegados aos padrões do mundo. Mostra o quanto olham para trás, apesar de já terem pego no arado.
Desprendimento não acontece de uma hora para outra, comprova-nos o texto. Apesar de estarem a caminho com o mestre, de passarem pelas mesmas privações, os discípulos ainda precisam aprender muito. Precisam aprender o desprendimento. Naturalmente já conseguiram avanços. Oriundos das classes mais baixas, mesmo assim deixaram para trás uma certa segurança. Deixaram família, as redes, a coletoria. Mas ainda não estão prontos. O caminho para Jerusalém será o tempo do preparo, do aperfeiçoamento.
Desprendimento é um processo, não uma ação única. É necessária, no entanto, a ação radical, uma atitude concreta de ruptura. Talvez por isso a primeira exigência de desprendimento está ligada à vida material. Ser seguidor do Reino é estar disposto a abandonar a segurança econômica que permite possuir a casa e o lugar para reclinar a cabeça. Ser seguidor do Reino não combina com seguimento da riqueza, do apego ao poder econômico. Por trás dessa pequena indicação da falta de lugar para reclinar a cabeça esconde-se uma questão maior. Se existe gente sem ter onde reclinar a cabeça, é pelo acúmulo e falta de solidariedade de alguns. A resposta de Jesus serve como denúncia. Está sem casa pela falta de hospitalidade e por causa do sistema que não permite que todos tenham casa. Sua resposta é também anúncio: a opção do Reino é justamente por aqueles que não têm onde reclinar a cabeça.
Deixar os mortos sepultar seus próprios mortos rompe laços familiares e rompe com a lei. Mostra que o Reino está preocupado com a vida, não com os mortos. Sepultar os mortos é considerado um dever, e a lei está cheia de deveres. Ao romper com o dever de sepultar os mortos, dever que tem prioridade inclusive sobre a circuncisão, Jesus rompe com toda a lei. Mostra que nem sempre os deveres da lei promovem vida e que a lei é um empecilho para a pregação do reino de Deus.
As exigências de Jesus são radicais. Quem quer ser discípulo deve pesá-las bem. Mesmo assim, são exigências praticáveis. Jesus não pede algo impossível, mas esforço para levar a cabo a missão. Se olharmos o contexto, perceberemos que são justamente essas exigências que permitem o êxito da missão. Não é sem propósito que Lucas coloca essas exigências entre as duas narrativas do envio. No primeiro envio (Lc 9.1ss.) doze são comissionados. No segundo (Lc 10.1ss.), após essas exigências, setenta são os enviados. Nos dois envios os discípulos são aconselhados a nada levarem, a curarem e a pregarem o reino de Deus. São aconselhados a permanecerem onde gozarem de hospitalidade e a não se responsabilizarem pela falta de acolhida. Algumas outras pequenas semelhanças e diferenças podem ser observadas nos dois envios. Entretanto, uma diferença é marcante: apenas o segundo envio (que teve maior número de enviados) fala do êxito da missão! Além de aumentar em número, o segundo relato fala da alegria de ver que o discipulado é uma tarefa possível e gratificante, apesar de árdua.
4. Prédica
Lanço alguns pensamentos que poderiam servir de base para uma prédica:
O novo do reino de Deus assusta. As suas exigências são demasiado radicais. Existe uma certa barreira, causada pelo medo do desprendimento, do novo. O medo do novo já nos faz chorar assim que nascemos. Mas é necessário sair do útero, senão não há vida. O caminho para Jerusalém ensina a ruptura, ensina os discípulos a sair do útero.
A comunidade de Cristo hoje se encontra a caminho. Está aprendendo, se aperfeiçoando. Mas também se encontra na encruzilhada: ir para Jerusalém, seguindo as exigências do Reino, ou ficar na Galiléia, evitando o conflito, retardando o desprendimento.
Como os discípulos, a comunidade está presa aos seus padrões. Tudo o que não se encaixa neles é banalizado, desprezado, às vezes até punido. Nesses padrões enquadram-se a liturgia, os cânticos, a estrutura do culto, a pregação, a estrutura comunitária, a membresia. Em padrões muito fechados, envolvimento com questões sociais e políticas, a superação da miséria, reforma agrária, questão indígena, racismo, não fazem parte da vida do grupo de seguidores de Jesus (cf. Lc 9.49).
Quando a comunidade tende a enquadrar a fé e a missão em caixinhas, vai desprezar tudo o que não cabe nelas. Formará um grupo seleto, fechado, muito distante da vida e das exigências do reino de Deus.
As caixinhas são também um obstáculo ao desprendimento. O que Jesus propõe é novidade, pano novo. Propõe uma nova relação económica, não de ganância, de acúmulo, mas de partilha. Propõe uma nova família, não fundamentada na ligação de sangue, mas na solidariedade do Reino. Propõe uma lei que defenda a vida em primeiro lugar e não cause a morte. Este novo é, por sua vez, dinâmico. Não se prende a uma determinada fórmula. Nunca poderá ser enquadrado em qualquer caixinha ou padrão humano. Isso nos chama a avaliarmos constantemente nossas posições e relações.
Sugiro, como recurso visual, providenciar algumas caixas e incentivar a comunidade a refletir sobre os padrões que regem sua vida. Quais são as caixinhas, ou, o que cabe e o que não cabe em nossas caixinhas? O que fazemos com opiniões e pessoas que não se enquadram em nossos padrões? Estamos dispostos a sermos dinâmicos como o Reino? Damos espaço para inovações, reavaliações de pensamentos, estruturas, posições?
As duas leituras bíblicas poderiam ser brevemente comentadas. Sugiro omitir os vv. 14-18 da leitura de l Rs. Chamamento já existia desde do AT. Ali, todavia, ainda era permitido despedir-se dos pais. Não havia tanta pressa. O desprendimento não era tão radical. Já em Gálatas aparecem bem claro as exigências de desprendimento. Ser discípulo é estar liberto das caixinhas deste mundo. Não há lugar para os princípios do Reino e os padrões humanos. Ambos são excludentes. A comunidade de Cristo, que fez a opção pelo Reino, é chamada a sempre renovar esta opção e a não olhar para trás, para não correr o risco de se deixar enquadrar pelas obras da carne.
5. Bibliografia
DAENECKE, P. Meditação sobre Lucas 9.57-62. In: KIRST, N. et ai., eds. Proclamar Libertação. 1984. v. X, p. 251-257.
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MORRIS, Leon L. O Evangelho de Lucas; Introdução e Comentário. São Paulo, Vida Nova/Mundo Cristão, 1983.
SCHWEIZER, E. Das Evangelium nach Lukas. 19. Aufl. Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1986 (NTD, 3).
WIEFEL, W. Das Evangelium nach Lukas. Berlin, Evangelische Verlagsanstalt, 1988. (Theologischer Handkommentar zum Neuen Testament).