Prédica: Mateus 22.23-33
Leituras: Isaías 35.1-10 e 2 Pedro 3.8-14
Autor: Martin Volkmann
Data Litúrgica: Dia dos Finados
Data da Pregação: 02/11/1995
Proclamar Libertação – Volume: XX
1. Introdução
O Evangelho previsto como base para a pregação já foi analisado em dois volumes anteriores de Proclamar Libertação por ocasião do Dia de Finados: no vol. VIII e no vol. XVI, neste já em combinação com as duas outras leituras sugeridas para este momento. A relação entre estes três textos, apesar das ênfases próprias, é bem evidente: em todos o olhar se volta para o que há de vir. A glória futura de Sião, para onde voltam os exilados, livres de todas as agruras (Isaías); a esperança de novos céus e nova terra para a comunidade que ameaça desanimar diante da demora do cumprimento (2 Pedro); a afirmação do Deus da vida diante dos que negam a ressurreição (Mateus). Neste dia em que a comunidade se lembra das pessoas falecidas, aspectos das duas primeiras leituras poderão contribuir para o anúncio da esperança e da presença de Deus para os vivos e para os que já vieram a falecer.
Com estas colocações já apontamos também para uma saída possível diante da controvérsia sobre qual o dia mais apropriado para se recordar as pessoas falecidas: Dia de Finados (tradição católica) ou o Ultimo Domingo do Ano Eclesiástico, o Domingo da Eternidade (tradição evangélica). Não se trata de reverenciar os mortos ou, quem sabe, procurar fazer algo por eles. Trata-se, isso sim, de, diante da realidade da morte, anunciar a vitória da vida e a presença de Deus junto aos seus na vida e na morte. E isto pode ser feito tanto no Dia de Finados quanto no Domingo da Eternidade. Não é uma questão de data, mas de ênfase.
2. O texto no seu contexto
Mt 22.23-33 faz parte do conjunto que relata a presença e atuação de Jesus em Jerusalém, antes de sua execução. Esta presença está marcada pelo confronto direto com as autoridades judaicas. Este confronto é caracterizado pelo evangelista por meio das controvérsias de Jesus com as autoridades, acrescidas de algumas parábolas (21.23-22.46) e das orientações aos seus seguidores com relação à postura e posicionamento dessas autoridades (23).
Enquanto a maior parte das controvérsias e acusações de Jesus se referem aos fariseus e aos escribas de orientação farisaica, esta passagem é a única em que se tematiza a teologia saducéia. Nos versículos precedentes (15-22), na questão do tributo, os fariseus procuram comprometer Jesus com a tendência zelota. Em contrapartida, em nossa passagem, os saduceus visam a colocar Jesus nas trincheiras farisaicas, uma vez que a questão da ressurreição é um dos pontos controversos entre ambos.
A negação da ressurreição é uma das poucas coisas que o NT nos informa sobre os saduceus (At 4.2; 23.6,8; cf. também l Co 15.12). Tal concepção baseia-se em sua compreensão da lei e da Escritura: da lei fazem parte apenas as leis escritas, assim como estão codificadas no Pentateuco. Toda a tradição oral, como interpretação e complementação da lei escrita que passou a ter caráter igualmente normativo para os fariseus, é rejeitada pelos saduceus. Lei é apenas a lei escrita. A tradição oral não pode ter o mesmo valor de Escritura Sagrada como a lei escrita.
De fato, o Antigo Testamento, em seus níveis mais antigos, não fala de uma continuidade de vida após a morte. Esta convicção só é testemunhada em passagens mais recentes da tradição vétero-testamentária: Is 26.19; Dn 12.1-3; 2 Mac 7.9; 12.43-46; 14.46. Fiéis, pois, à sua compreensão de Escritura, os saduceus não aceitam uma continuidade da existência pós-morte.
No entanto, a experiência com Deus ao longo da história e o consequente alargamento da compreensão desse Deus fizeram os crentes nesse Deus da história perceber essa dimensão maior da ação e presença de Deus além dos limites da vida terrena. Por isso, afora as passagens acima, que falam expressamente de ressurreição, outras passagens apontam para a presença e poder de Deus sobre o reino da morte: SI 15.10; 48.16; Ez 37. Jesus é a confirmação e consumação dessa experiência da presença de Deus na morte; mais ainda, da vitória sobre a morte e da oferta de nova vida, já agora. Este é o cerne da mensagem do Novo Testamento. E esta mensagem também deverá ser o cerne do anúncio neste Dia de Finados.
Para tentar demonstrar a absurdidade dessa crença, os saduceus fundamentam sua argumentação com o mandamento do levirato (Dt 25.5ss.; cf. Gn 38.8; Rt 4.5,10). Tomando como ponto de partida o mandamento da lei, eles constróem uma história que comprova, por um lado, que na lei não há base para a crença na ressurreição e, por outro lado, que esta crença é absurda. A história dos sete irmãos que casam com a mesma mulher não deixa de ter certa dose de ironia — o que vem a reforçar a absurdidade de se defender a ideia da ressurreição —, pois, no final, apesar dos múltiplos casamentos, o objetivo não é atingido: todos eles morrem sem gerar descendência. O auge da ironia está na pergunta final: Na ressurreição, de qual dos sete será esposa? porque todos a desposaram.
Dia dos Finados
A resposta de Jesus inicia com um categórico: Errais. Se os saduceus pensavam ter uma prova insofismável para comprovar o erro da teologia farisaica, Jesus mostra que o erro está justamente em sua teologia. E fundamenta a sua afirmação com dois argumentos: não conhecem a Escritura nem o poder de Deus. Ambos os argumentos perpassam os dois exemplos usados por Jesus para demonstrar o erro dos saduceus. Nos dois exemplos, a resposta inicia com a menção expressa da ressurreição (vv. 30 e 31).
O primeiro exemplo, com a referência aos anjos, remonta diretamente à história composta pelos saduceus. Na ressurreição não haverá casamento, porque os ressurretos serão como os anjos que também não conhecem vida conjugal. Esta é a opinião geral, como se depreende de textos apocalípticos (cf. Enoque etíope 15.7: por isso não criei para vós mulheres, ap. Gnilka, p. 159). A referência aos anjos tem, além disso, a função de corrigir os saduceus em um outro ponto de sua teologia, pois eles também negam a existência dos anjos.
O segundo exemplo ataca os saduceus exatamente num aspecto que era o seu ponto forte: a lei como base única de sua teologia. Eles haviam buscado no mandamento do levirato o argumento para construir a prova contra a ressurreição. Jesus argumenta a favor da ressurreição justamente com uma passagem da lei: Eu sou o Deus de Abraão, o Deus de Isaque e o Deus de Jacó (v. 32, cf. Ex 3.6). Contra aqueles que usam Moisés para fundamentar suas opiniões Jesus usa o próprio Moisés para mostrar justamente o oposto. O argumento contido na citação da tora parte do pressuposto de que Deus, exatamente para se auto-identifïcar (a passagem consta no relato da vocação de Moisés!), não usaria o nome de mortos. Se Deus usa o nome dos patriarcas para se autodefínir, isto significa que a sua relação com eles não é interrompida com a morte. A promessa feita a eles não é anulada pela morte; pelo contrário, perdura para a eternidade. Por isso Ele não é um Deus de mortos, e, sim, de vivos.
À semelhança do final do sermão do monte (7.28), as multidões ficam maravilhadas com a doutrina de Jesus. Enquanto as autoridades, que conhecem as Escrituras e que deveriam aderir ao mestre da Galiléia, se opõem a ele e buscam todos os meios para comprovar a falsidade de sua doutrina, o povo simples se empolga com a sua doutrina. Eles percebem que aqui fala alguém que de fato tem autoridade (7.29).
3. A temática do texto no nosso contexto
O problema da morte é tão antigo como o próprio ser humano. Não há religião que não tenha entre as suas afirmações de fé uma colocação, em relação ao tema morte. Porque a morte é a anulação da vida. A morte é a negação da existência. Por isso toda religião, que, em última análise, existe para dar sentido à vida, precisa necessariamente encontrar uma resposta para o problema que a morte coloca para o ser humano.
Ao longo da história as respostas se repetem, com algumas variações. E continuam atuais em nossos dias.
Uma resposta possível é a dos próprios saduceus: não existe vida depois da morte; não há necessidade de vida depois da morte. Tudo se limita a esta existência. Para que pensar no além se esta vida é tão boa assim? Para que se preocupar com o outro mundo se neste mundo tudo está tão bem para nós? Assim só pode falar alguém que está por cima neste mundo. Era a situação dos saduceus na época. Eles representavam a elite sacerdotal, comercial e latifundiária. Em sua vida não passavam necessidade e não havia motivos para se preocupar. Sabiam tirar proveito de sua situação e não tinham constrangimento em se adaptar às novas condições políticas mediante acordos com os governantes do momento (por exemplo, os romanos). Logo, a sua teologia servia de sustentação ideológica para toda uma situação sócio-político-econômica.
Assim a morte só passa a ser um problema quando esta vida se torna problemática. Para quem sempre está numa boa nesta vida, para este o morrer não entra em cogitação nem assusta. Mas quem está por baixo, quem passa necessidade, quem não tem como manter esta vida — para este o morrer é uma realidade ameaçadora a cada instante. E para ele há necessidade de uma resposta. A vida é só esta vida sofrida? O sentido de nossa existência é sofrimento, vazio, sem sentido? Esta é a situação das multidões que se maravilham da doutrina de Jesus e que, obviamente, estão na situação radicalmente oposta à dos saduceus, tanto em sentido político-econômico quanto no posicionamento teológico. Por isso para eles Jesus tem uma proposta, também nesta questão.
Como atualizar essa proposta de Jesus, sem desconsiderar a situação das pessoas sofridas, machucadas, deslocadas, abaladas? Pessoas que se encontram em tal situação sob o ponto de vista social, económico, emocional, relacional, conscientes de que todos estes não são independentes um do outro, mas que se condicionam mutuamente.
E como atualizar a proposta de Jesus, sem negar o específico de sua mensagem, pois ele em pessoa é a personificação de sua mensagem: na sua ressurreição está a resposta última à pergunta dos saduceus?
Por isso devemos olhar com olhos críticos também as outras respostas que são oferecidas às pessoas de nossos dias para a questão da morte.
Por exemplo, a proposta de que cada um de nós tem em si uma chama divina, seja lá qual for a denominação que se dê a isso (espirito, alma imortal), e que essa parte não é atingida pela morte, de maneira que nós continuamos no além, apenas sem as mazelas do corpo. Mas como a negatividade de nosso corpo e os vícios de nosso viver maculam a essência de nosso ser, essa chama divina precisa reencarnar-se repetidas vezes até tornar-se totalmente pura. Essa posição apresenta uma solução para o problema da morte — nós existimos desde a origem do universo e continuaremos a existir até alcançar a plenitude; a morte não atinge a essência de nosso ser. Porém ela desconsidera uma verdade fundamental da Escritura: o poder de Deus, que cria do nada, e a individualidade unira de cada pessoa como criatura de Deus.
Mas também a simples afirmação de uma nova vida, depois da morte, muito mais bela e menos sofrida do que esta, que nos faz transferir tudo para o além, esquecendo e negligenciando a vida agora — também isto não serve nem confere com a mensagem do Deus Criador e Redentor. O que o Deus Criador e Redentor quer para toda a sua criação é vida digna, de valor já aqui, apesar de nosso pecado. Por isso a redenção nada mais é do que o restabelecimento da dignidade perdida e a oferta de vida gratuita e de valor aqui e agora.
Exatamente isso as pessoas sofridas, marginalizadas, doentes e rejeitadas sentiram no encontro com Jesus nos caminhos da Galiléia. E exatamente isso também pessoas experimentam repetidas vezes no confronto com o Ressurreto. A ressurreição de Jesus é a comprovação de que vida plena, digna é possível e é oferecida para todos. Por isso tal vida não acaba na morte. Para quem se sabe agraciado por Deus com tal sentido de vida a morte não é a última palavra. Tal vida tem continuidade na presença de Deus.
Mas como imaginar essa continuidade? A referência aos anjos não é uma boa ajuda. Sem dúvida, o próprio texto busca responder a pergunta dos fariseus com esta referência. Porém ela é motivada pela história montada pelos saduceus e pela presença dos próprios, que não aceitam a existência de anjos. Mas ela não nos deve levar a querer, a partir daí, explicar como será a vida na ressurreição. E, mais ainda, como foi feito ao longo da história, não nos deve induzir a uma postura de menosprezo e até de rejeição do matrimónio e da sexualidade na vida agora. Pelo contrário, a referência aos anjos aponta para a presença junto a Deus.
Assim, o Dia de Finados nos lembra das pessoas que nos foram caras e que já faleceram e, simultaneamente, nos coloca diante da pergunta de como nós vemos a nossa vida sempre ameaçada pela morte e que também vai ao encontro da morte. A mensagem da Bíblia é ressurreição.
Mas enquanto as diversas propostas de solução para o problema da morte são uma tentativa de explicar o como da continuidade, nós, ao falarmos de ressurreição, não buscamos explicar como se dará a ressurreição ou como será a vida na ressurreição. Mas a nossa atenção se volta para o poder de Deus que é capaz de criar vida nova da morte, assim como ele cria a vida do nada. Porque Deus, como aquele que é a própria vida, não é um Deus de mortos, e, sim, de vivos.
4. A pregação do texto
A situação determina a temática da pregação. Dia de Finados não pode deixar de falar de morte. Mas falar de morte, depois da ressurreição de Jesus, implica necessariamente falar da vida. Da nossa vida agora e da vida depois da morte, da qual participam também os que já morreram. Evidentemente, à base da fé no Ressurreto.
O texto, com a menção dos saduceus, nos oferece o gancho para a referência a formas de malentender a vida e a morte. A resposta de Jesus, por sua vez, nos desafia a anunciar o poder de Deus que cria vida em meio à morte.
Assim seria possível estruturar a pregação em torno dos seguintes tópicos:
a. A realidade da morte
— nas pessoas já falecidas
— no dia-a-dia de nossa vida
b. A realidade da morte lança a pergunta pela vida
— qual o sentido da vida?
— como viver sem temer o morrer?
— o que virá depois da morte?
c. Respostas possíveis
— a resposta dos saduceus
— outras respostas
d. A resposta de Jesus
— mensagem transformadora para a vida agora
— vida transformada que não acaba com a morte.
5. Bibliografia
Além dos exemplares de PL já mencionados e da literatura indicada naqueles exemplares, menciono as seguintes obras:
GNILKA, J. Das Evangelium nach Markus (Mk 8.27-16.20). Neukirchen-Vluyn, Neukirchener, 1979. (Evangelisch-Katholischer Kommentar zum Neuen Testament, n.2).
STRACK, H. L. & BILLERBECK, P. Kommentar zum Neuen Testament aus Talmud und Midrasch. 9. Aufl. München, C. H. Beck, 1986. v. 1.
VOLKMANN, M. Jesus e o Templo; uma Leitura Sociológica de Marcos 11.15-19. São Leopoldo, Sinodal; São Paulo, Paulinas, 1992. p. 118-119 (referente aos saduceus).