Prédica: Tito 3.4-7
Leituras: Isaías 62.10-12 e Lucas 2.1-20
Autor: Gerd Uwe Kliewer
Data Litúrgica: Dia de Natal
Data da Pregação: 25/12/1994
Proclamar Libertação – Volume: XX
1. Versão do texto
Sempre parecia-me haver falta de lógica na terceira pergunta da quarta parte — Do Sacramento do Batismo — no Catecismo Menor de Lutero, versão em português em uso na IECLB, entre a resposta e a citação da carta de Tito (3.5b-7). Lutero diz: A água, em verdade, não as faz, mas a palavra de Deus que está unida à água, e a fé que confia nesta palavra de Deus com a água (…) Mas com a palavra de Deus, a água é batismo, isto é, água de vida, cheia de graça e um lavar de renascimento no Espírito Santo. E depois a citação de Tito: ' 'Deus nos salvou mediante o lavar regenerador e renovador do Espírito Santo (…).''
Lutero fala da água, unida à palavra, que faz coisas tão grandes. Mas o texto citado parece se esquecer da água. É o Espírito Santo que lava, ou melhor, Deus derrama o Espírito Santo que lava… Está aí uma boa justificativa para considerar o batismo do Espírito Santo como o mais importante e essencial. E abrem-se com isso as portas para o entusiasmo pentecostal.
Verificando no original grego, descubro que a versão de Almeida, citada no Catecismo Menor, apresenta uma tradução extremamente espiritualizante. O texto original diz: (…) salvou-nos pelo banho do renascimento e da renovação no (ou pelo) Espírito Santo (…). (Tt 3.5b.) Que banho é este? De água, naturalmente. O banho do Batismo, de graça, é um lavar de renascimento no Espírito Santo. Será que estou errado, se entendo que a origem do renascimento é esse banho — água com palavra de Deus — que então nos sujeita ao Espírito Santo? Vejo que a Carta aos Efésios entende assim, quando, em 5.26, diz que a Igreja foi purificada através do banho com água na Palavra.
Aliás, também a versão da Bíblia na Linguagem de Hoje segue essa linha espiritualizante quando traduz: (…) por meio do Espírito Santo ele nos purificou e nos fez nascer de novo (…). E também a Edição Pastoral foge do texto original: (…) fomos lavados por sua misericórdia através do poder (…) do Espírito Santo (…). Por que os tradutores fogem da água? Não me entendam mal, não se trata aqui de desvalorizar a ação do Espírito Santo, o Santificador, mas de valorizar a sensação da água do Batismo com a Palavra ouvida, para deixar bem claro que é a ação de Deus a partir de fora que salva a pessoa humana e que nada, nada mesmo, de dentro dela contribui para a salvação. Lutero insistia nisso e traduziu corretamente: (…) nos salvou pelo banho do novo nascimento (…). A Bíblia de Jerusalém traduz da mesma maneira. Vale o que J. Jeremias escreve no seu comentário: É o Deus triúno, o Pai (v. 4s.), o Filho (v. 6) e o Espirito Santo (v. 5) que no Batismo realiza o milagre do novo nascimento. (J. Jeremias, p. 76, tradução do autor.)
Feitas essas considerações, tento entender o que o autor da perícope quer nos dizer: Deus, que ama as pessoas humanas, nos revela a sua bondade. Não temos nada a apresentar a ele, nem boas obras, nem justiça. Ele nos salva, por pura misericórdia, pelo banho (Batismo) que produz o novo nascimento e nos renova pelo Espírito Santo que ele derrama abundantemente sobre nós — neste mesmo Batismo. Faz isso através de Jesus Cristo. Assim, justificados por sua graça somente, tomamo-nos herdeiros da vida eterna que esperamos.
2. Contexto
J. Jeremias (p. 74) conclui que a nossa perícope é um cântico de louvor que a comunidade cantava em agradecimento pela graça do Batismo. O que, porém, leva o autor da Carta a Tito a citar esse hino neste contexto? A Carta a Tito é uma orientação ao líder da jovem Igreja da ilha de Creta que seria Tito. Dá uma orientação bem prática sobre como liderar e organizar as comunidades da ilha, como escolher os seus dirigentes (1.5-9), como combater os que ensinam doutrinas falsas (1.10-16), como admoestar para a vida cristã (2.1-10), como comportar-se na vida diária e pública (2.11-3.2). Duas vezes o autor da carta faz destaques, isto é, diz a Tito: Isso você deve ensinar com toda a autoridade! (2.15); Nisso você deve insistir! (3.8):
a) Quando diz em 2.14: Jesus Cristo se deu a si mesmo por nós, para nos livrar de toda maldade e fazer de nós um povo puro que pertence somente a ele e que se dedica a fazer o bem.
b) Após a nossa perícope, que, em resumo, expõe que a nossa salvação é obra exclusiva de Deus, sem qualquer participação e mérito nosso, mas por pura graça e misericórdia de Deus.
O pensamento básico das orientações do autor é: Deus, dando seu filho Jesus Cristo à morte na cruz, venceu o pecado e a morte e purifica, no Batismo, as pessoas que crêem nele, fazendo delas o seu povo escolhido que se dedica a lazer o bem (boas obras). Não são povo de Deus porque fazem o bem, mas fazem o bem porque são povo de Deus, foram purificados no Batismo e renovadas pelo Espírito Santo. As boas obras são consequência, não condição da salvação.
Após expor extensamente quais são essas boas obras nas diversas áreas da vida, o autor da carta tem a impressão de que todas essas orientações podem levar as comunidades jovens a um novo legalismo. E isso ele quer evitar a todo custo. Pois nas comunidades estão presentes os cristãos que vêm do judaísmo e, como tais, são adeptos da lei. Estão confundindo as pessoas, querendo transformar a liberdade que os cristãos têm em Cristo num novo legalismo. Estes e suas doutrinas erradas o autor quer ver afastados da comunidade (1.10s.). Os cristãos cretenses não devem achar que, por levarem uma vida regrada e responsável, são gente melhor do que os outros. Nós não tínhamos juízo e éramos tão maus quanto qualquer outra pessoa humana, diz o autor. Éramos escravos das paixões e do ódio. Se agora somos diferentes, não é por esforço nosso, mas graça de Deus. E então ele insere o cântico que resume a doutrina da salvação pela graça e fé que começa com o banho da purificação e se torna concreta em nossa vida pela ação do Espírito Santo que em Jesus Cristo é derramado sobre nós em abundância. Que isso tudo acontece na Igreja, na comunhão das pessoas que crêem em Jesus Cristo, é assegurado pelo uso do nós neste cântico.
3. Atualização
A tentação de procurar a salvação por obras acompanha a Igreja através dos tempos. Manifesta-se, por exemplo, na definição de um mínimo de atitudes e contribuições que as pessoas devem assumir e fazer para serem consideradas cristãs. Quem vive e trabalha na Igreja é constantemente confrontado com pessoas convencidas de que são merecedoras da graça de Deus porque frequentam cultos e reuniões, trabalham nos grémios da Igreja, contribuem com dinheiro, ajudam o próximo… A ideia do Deus contabilista que registra todos os nossos atos e os classifica entre bons e maus, tirando o balanço no fim, está muito presente. Resultam disso pessoas orgulhosas, que não vêem os seus próprios defeitos, impiedosas, propensas a julgar as outras. Quando se dispõem a alguma ação de caridade, fazem-na depender da qualidade e do bom comportamento do destinatário. Oram como o fariseu: Graças te dou, ó Deus, que não sou como os outros…
Na verdade, são elas mesmas que estabelecem o critério da sua salvação. Montam um esquema de obrigações mínimas que, assim entendem, Deus exige para que tenham a garantia de entrar no céu: pagar a contribuição à Igreja, o dízimo, balizar, confirmar, assistir ao culto de vez em quando, não roubar ou matar (pelo menos não abertamente), fornicar somente no escondido da noite… Importante é cumprir obrigações visivelmente e manter as aparências. Referem-se a Deus, mas na verdade é esta a religião do diabo, do mundo e da nossa carne, como diz Lutero.
Uma religião ou piedade assim não precisa de Batismo. Vai reduzi-lo a um ato formal ou mágico, que dá o nome à criança, a transforma em gente, protege-a do poder do diabo e do mau olhar, confere-lhe um lugar na sociedade… Sobra, talvez, uma lembrança confusa do pecado original que tem que ser lavado. Mas prevalece a ideia de que a criança que se batiza é inocente, um anjinho, que merece ser balizada por ser tão querida. Por isso o argumento frequente quando presbitério e pastor questionam pais e padrinhos quanto à seriedade da sua vivência e prática da fé: A criança não tem culpa! Isso não equivale a dizer que a criança não precisa de Batismo? O conceito vigoroso de que o Batismo significa que o velho homem em nós (…) deve ser afogado e morrer com todos os pecados e maus desejos e (…) sair e ressurgir novo homem que vive em justiça e pureza diante de Deus (M. Lutero, Catecismo Menor) não é percebido mais.
Essa piedade auto-suficiente hoje assume muitas formas. Podemos encontrá-la nos meios pentecostais e carismáticos, onde a experiência da conversão e alguns carismas experimentados individualmente parecem suprir todas as necessidades religiosas e onde o batismo pelo Espírito Santo, entendido como acontecimento separado do Batismo nas águas, suplanta este último. Muitas pessoas que viveram uma experiência de conversão entendem que agora está tudo resolvido, que já estão no céu. Que agora só precisam segurar e guardar bem o tesouro recebido e esperar pela vinda do Senhor. Esquecem-se da tarefa árdua de viver a sua salvação no dia-a-dia, no mundo, dando testemunho do amor de Deus em palavras e ações. Ou transformam essa tarefa na obediência a algumas poucas normas éticas, como não beber, não fumar, vestir-se com recato, não cortar o cabelo…
Outra piedade auto-suficiente encontramos nas diversas formas de espiritismo presentes em nosso meio e nas diversas filosofias e gnoses que proliferam ao nosso redor. Procuram a salvação no esforço de fazer boas obras, na procura do conhecimento correio e na mística de aproximar-se de Deus. Um Deus que segue o caminho inverso, torna-se humano, se aproxima das pessoas humanas e as envolve e abraça no banho do renascimento não tem nada a dizer a essas religiões. Significativamente, não encontram sentido para o Batismo nas águas.
4. A prédica
Estamos no dia, ou se for culto na véspera, na noite de Natal. Ocasião em que a comunidade fiel costuma estar presente em peso. Onde também estão presentes as pessoas que reduziram a sua vivência comunitária a um mínimo. E lambem aquelas trazidas pela nostalgia da Noite feliz…. Vêm matar saudades do seu tempo de criança. Muitas mal saíram da correria que antecede esta grande festa da cristandade. A hora do culto proporcionará um descanso merecido às pernas e à mente estressada. Os hinos de Natal produzirão no seu ânimo uma sensação de paz e amor. Da prédica esperam a confirmação de que, apesar de pecadores, não são pessoas tão ruins assim e que Deus, com um pouco de misericórdia, está satisfeito com elas. Da igreja sairão para acender as velas no pinheirinho de Natal e desembrulhar os presentes. E sentarão à mesa para a ceia ou o almoço festivo com a sensação do dever cumprido. Gozação? Não é esta a minha intenção. Pois eu mesmo tenho-o experimentado assim, muitas e muitas vezes.
O que pregar a essa comunidade a partir do texto acima? Ele evita os aspectos folclóricos do evento de Natal, os pastores, os anjos, o presépio… Também não me parece que o centro dele esteja no amor e na benignidade de Deus (v. 4). Portanto, não pregarei sobre este lema. O lema da prédica, assim entendo, é a ação de Deus que salva a humanidade — mundo perdido, Cristo nascido —, e especificamente, nesta ação, o Batismo. Sim, parece-me inevitável pregar sobre o Batismo a partir desse texto.
A pregação será bem simples e tradicional, seguindo o seguinte esquema:
— A incapacidade da pessoa humana chegar a Deus ou agradá-lo por esforço próprio. Os aspectos levantados no item 3 podem servir de material ilustrativo.
— A ação de Deus que se torna pessoa humana em Jesus Cristo para chegar a nós e nos libertar de pecado, morte e mal e dar-nos uma nova vida sob o seu governo.
— O Batismo na água, no qual Deus nos abraça e envolve sensivelmente na sua ação salvadora, nos equipa para a vida nova com o Espírito Santo e nos compromete com o seu Reino.
— A vida nova que resulta do Batismo: vida que não pertence a mim, mas a Cristo. Vida inserida no corpo de Cristo, a Igreja, dedicada ao serviço do próximo. Vida que se orienta pelos interesses, necessidades, alegrias e prazeres dos outros.
— Que esta vida nova não nasce pronta, mas precisa do poder santificador do Espírito Santo, o autor da Carta a Tito sabe muito bem. Em contrição e arrependimento diários (Lutero) deve ser construída e vivida diariamente, até alcançarmos, justificados pela graça de Deus, a vida plena.
— As pessoas balizadas presentes no culto são questionadas a respeito de como anda a vida nova que receberam no Batismo. Enterraram-na, esconderam-na até o Senhor voltar? Ou botaram-na a florescer ou produzir? Estão afastadas da comunidade? Satisfazem-se com a ilusão de que são gente reta e boa? Estão presas a seus interesses e prazeres?
— Num último passo serão desafiadas a mostrar sinais concretos da vida nova. Aponta-se para os diversos trabalhos e grupos nos quais a comunidade está envolvida. Convida-se para a visita ou culto no hospital no próximo dia, para a colaboração numa creche ou para o serviço de transporte das pessoas idosas. E dêem oportunidade para que as pessoas que foram motivadas possam firmar o seu compromisso junto a alguém do presbitério após o culto! E não se esqueçam da coleta! É a oportunidade mais próxima de dar um sinal da nova vida. Dêem uma boa motivação e mandem os/as ouvintes dar a nota de pouco valor que reservaram para a coleta ao mendigo mais próximo e tirar uma nota mais alta do bolso para depositar na coleta. A coleta deve estourar neste dia!
5. Subsídios litúrgicos
Intróito: Deus revelou a sua graça para dar a salvação a todos. Essa graça nos ensina a abandonar a vida descrente e de paixões mundanas, para vivermos neste mundo uma vida controlada, correia e dedicada a Deus. (Tt 2.11s.)
Anúncio da graça: Ele [Jesus Cristo] se deu a si mesmo por nós, para nos livrar de toda maldade e fazer de nós um povo que pertence somente a ele c que se dedica a fazer o bem. (Tt 2.14.)
Recomendo ainda consultar os subsídios litúrgicos no PL XIX, p. 186s.
6. Bibliografia
JEREMIAS, Joachim. Die Briefe an Timotheus und Titus. Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1975 (NTD, 9).
LUTERO, Martim. Catecismo Menor. São Leopoldo, Sinodal, 1991.